Brumadinho, a cidade onde todos perderam algo
Brumadinho está viva, mas em estado de choque e, como os seus, também procura por uma carteira de identidade
Estadão Conteúdo
Publicado em 3 de fevereiro de 2019 às 11h27.
Última atualização em 3 de fevereiro de 2019 às 11h27.
Brumadim. Há algo de intimidade na fala mineira. Em uma palavra, revela mais que um sotaque ou diminutivo. Põe para fora o acolhimento dessa gente e sua relação com terra, famílias, casas ruas e trilhas. Muito disso se perdeu na lama.
Brumadinho está viva, mas em estado de choque e, como os seus, também procura por uma carteira de identidade. A Brumadim, a cidadezinha pacata onde “nada acontece nunca”, viu sua memória desaparecer em poucos minutos na sexta-feira, levada por uma avalanche de rejeitos. Seus 40 mil habitantes não reconhecem mais o rosto da cidade, que se transformou em outra coisa. E não sabem mais como será daqui para a frente.
No balcão improvisado do Sindicato de Oficiais de Registro Civil de Minas Gerais, no bairro de Casa Branca, um ponto próximo da barragem, duas voluntárias estão a postos para atender vítimas que perderam documentos. Em um formulário, anotam os dados das pessoas para emitir a segunda via de certidões de nascimento e casamento. “Certidões de óbito, também”, diz a atendente Denise Parreira. No primeiro dia de trabalho, só duas pessoas passaram por ali para pedir certidões. “Essa procura pelos documentos ainda vai demorar.”
Pela estrada de terra que leva até a região das barragens da Vale, um grupo de mais de 20 ciclistas transpirava na manhã de ontem. Alguns comércios voltaram a abrir as portas. Na noite de sexta, um restaurante, que ficou dias fechado, colocou plaqueta na porta para avisar que estava funcionando, mas que não haveria música ao vivo. “Estamos em luto pelas famílias atingidas pela tragédia. Paz”.
Em Brumadinho, todos perderam alguém ou alguma coisa. Por onde se olha na cidade, se colhem os relatos sobre parentes e amigos desaparecidos ou mortos. A cidade segue obstruída. As três principais estradas que a ligavam a outros municípios do interior e a Belo Horizonte estão cobertas pelo barro. Na sexta, agentes da prefeitura começaram a retirar a lama de uma delas, na tentativa de abrir o caminho.
Tiveram de paralisar os serviços logo de início, porque encontraram uma vítima. Foi preciso chamar o Corpo de Bombeiros. Nas outras duas estradas, o prazo para recolher todo o barro ainda é desconhecido, dado o volume descomunal do lixo podre.
No calor dos fatos, a prefeitura da cidade jurou que, concluídos os trabalhos de busca pelas mais de 200 pessoas que permanecem desaparecidas, a Vale terá de retirar cada grama de rejeito que lançou sobre o município. A ver. Com seus 70 anos de idade, Ernestina Rodrigues de Miranda, nascida em Brumadinho, espera menos que isso. “Eles têm de tirar a lama, pelo menos, dos lugares pra gente passar, não é mesmo? Senão fica difícil demais assim.”
Jiló
Nos pequenos sítios, trabalhadores começam a voltar lentamente ao trabalho. O gado que sobreviveu e se espalhou pelas montanhas tem sido recolhido pelos donos. De enxada em punho, Nilton Geraldo Rodrigues capina a grama em volta de sua plantação de jiló, bem ao lado do lamaçal da Vale. “O jiló está vivo, olha só. Isso aqui, meu amigo, você coloca num franguinho refogado. Fica uma coisa.”
A onda de rejeitos que invadiu o sítio devastou cinco hectares de sua plantação de cana. A pequena lagoa onde ele pescava com os três netos está agora debaixo de mais dez metros de lama. “Pra nós, tem um antes e um depois. Esse lugar nunca mais vai ser igual”, diz o camponês. “Só resta pra gente trabalhar e tocar a vida.”
Ninguém mais espera que Brumadinho volte a ser a mesma cidade. Seu povo diz que, depois da catástrofe, será outra. “A esperança é de que volte a ser um lugar bom pra gente viver”, diz Rodrigues. O desejo é de que volte a ser Brumadim.
Ele saiu para ajudar em uma causa: salvar as abelhas
Um esparadrapo é usado para fazer um “X” em uma árvore que ainda está de pé, na beira do lamaçal. Maurício de Oliveira rastreia a vegetação que não foi tomada pelo barro. É o seu primeiro dia na rua, desde que recebeu a notícia de que sua irmã, Lecilda Oliveira, analista de operações da Vale no Córrego do Feijão, está entre os mais de 200 desaparecidos da tragédia.
O rapaz passou os últimos dias à espera de notícias em casa, na companhia da mãe, que entrou em desespero ao saber da filha, mas resolveu sair para ajudar em uma causa. “Minha irmã era tudo para mim. Eu senti que precisava fazer algo, mas não tinha como entrar na lama. Então, revolvi vir atrás das abelhas, fazer um georreferenciamento das colônias, para poder resgatá-las.”
Ao lado do amigo Walasse Breno, voluntário da Defesa Civil, Maurício caminha pelas margens dos rejeitos à procura das colmeias. Já encontrou duas pela manhã, marcou os locais com fitas adesivas e fez o mapeamento com o celular. “Não estão resgatando os animais? A abelha também é um ser vivo que precisa ser resgatado. É ela que vai dar continuidade a tudo, vai fazer a polinização.”
Recentemente, Maurício montou um centro de resgate de abelhas nativas em sua casa. Ele retira as colônias de lugares de risco, em Brumadinho, e doa os insetos para quem tiver interesse. “Tem muita procura. As pessoas que moram em casas e sítios gostam muito de criar a Jataí, que não tem ferrão e faz um mel que é bom para os olhos, para a pele.” Segue pela mata. No dia seguinte, voltará para buscar seus sobreviventes.