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Brasil, um país sem alvará

Seja em Santa Maria, São Paulo ou qualquer outra cidade do Brasil, a chance de uma boate ou bar ter alvará é pequena. Após a tragédia no RS, o Brasil quer mudar essa realidade


	A licença de funcionamento dada pelo poder público é mais exceção do que regra no Brasil. O assunto voltou com o incêndio de Santa Maria, em que 236 pessoas morreram
 (Marcin Wichary/Flickr/Creative Commons)

A licença de funcionamento dada pelo poder público é mais exceção do que regra no Brasil. O assunto voltou com o incêndio de Santa Maria, em que 236 pessoas morreram (Marcin Wichary/Flickr/Creative Commons)

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Da Redação

Publicado em 3 de fevereiro de 2013 às 08h00.

São Paulo – Em meados de 2012, a Prefeitura de São Paulo tomou uma decisão corajosa: resolveu que não toleraria mais a existência de shoppings centers sem alvarás, aqueles documentos que atestam que o empreendimento em questão atende às normas de segurança e zoneamento da cidade e que voltaram ao centro do debate público com o incêndio de Santa Maria (RS).

Ao exigir de maneira intransigente o papel que é ou deveria ser sinônimo de tranquilidade para os clientes, o poder público fez parecer que, a partir daquele momento, faria as regras na capital paulista serem cumpridas, com o interesse e a segurança da população acima de questões econômicas.

Mas aí os shoppings, quase 20, começaram a se defender. E a realidade – surpresa - não era tão dividida entre mocinhos e vilões, como se supunha.

Um deles, em particular, mostrou que havia submetido o processo para análise da Prefeitura havia quase 20 meses. E embora não haja regra municipal em São Paulo que estipule um prazo, a União considera 60 dias como o limite para dar resposta a um pedido protocolado por uma pessoa, física ou jurídica.

Porém, mesmo sem sinal de uma resposta em todo o período, o estabelecimento corria o risco de fechar antes do fim daquela semana.

A justiça, no entanto, concedeu uma liminar que garantia o funcionamento do shopping. Afinal, como querer fechá-lo por não ter alvará se quem deveria concedê-lo nem mesmo o analisou?

Infelizmente, a história acima é daquelas parábolas que extrapolam o território onde ocorreu e serve de retrato para todo o Brasil, evidenciando uma ferida aberta agora pela tragédia que terminou com a morte de 236 pessoas na boate Kiss. A casa noturna de Santa Maria até tinha o alvará da prefeitura, mas não aquele emitido pelo Corpo de Bombeiros.

No município gaúcho, assim como em algumas cidades do país, o atestado da Prefeitura independe do dos bombeiros. Em outras, como São Paulo, o primeiro só sai depois que o segundo foi emitido. Nos dois casos, porém, a vistoria militar é obrigatória.

“É muito difícil ter alvará. Tanto é que quem tem pendura como um troféu. Tem estabelecimentos que abrem e fecham, depois de dois ou três anos, sem nunca terem conseguido”, reclama o diretor da Associação Brasileira de Gastronomia, Hospedagem e Turismo (Abresi), Edison Pinto.

A Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel) diz que se as prefeituras resolvessem fechar os estabelecimentos sem o documento, ficariam abertos apenas 2 de cada 10 de seus associados.

Quando se trata de boates, São Paulo, famosa pela vida noturna, tem apenas 169 delas com alvará. Outros 600 processos estão correndo na Prefeitura.

No Estado do Rio de Janeiro, a situação é parecida: na caça às bruxas por casas noturnas irregulares nesta semana, os bombeiros encontraram apenas 10 delas totalmente em dia com a administração pública. O universo vistoriado: 209.


É fato, portanto. Ao entrar em um bar, restaurante ou uma boate, a chance de que ele tenha alvará é pequena. Mesmo assim, os empresários se eximem de qualquer responsabilidade.

“Ninguém faz um aporte financeiro para trabalhar de forma irregular, com o risco de ter o negócio fechado ou autuado a qualquer momento”, afirma Edison, da Abresi.

Mas os empresários não são sempre os mocinhos. Na própria decisão favorável ao shopping citado na abertura deste texto, o juiz constatou que o “estabelecimento preferiu permanecer de forma irregular” e ficou “inerte” durante todo o lapso temporal da expiração do alvará. Não agiu para mudar a situação, enfim.

Para o promotor de Justiça da Habitação do Ministério Público de São Paulo, José Carlos de Freitas, a falha parte sim em grande parte do setor público, que não dá conta da demanda, mas não é possível isentar certa parcela do empresariado que, em busca do retorno do investimento, abre o negócio sem os documentos ou sem seguir todas as regras previstas.

“Às vezes o empresário tem alvará, mas faz reformas e não submete essas alterações à prefeitura, passando a ser irregular”, afirma o promotor.

O revestimento acústico do teto da boate Kiss, em Santa Maria, por exemplo, foi alterado pelos proprietários. Depois da troca, o projeto com material altamente inflamável não havia ainda sido aprovado pelos bombeiros – e nem poderia, claro.

As demandas

Mas o caso da Kiss faz parecer que todo estabelecimento sem alvará é uma casa do terror pronta para causar mortes. Não é verdade.

Em São Paulo, segundo a Abresi, alguns empresários até obtém o Auto de Vistoria do Corpo de Bombeiros, mas ficam sem o alvará da Prefeitura. A razão, em 90% dos casos, de acordo com a associação, são problemas com o projeto original do edifício. Muitas vezes, um puxadinho atrás do terreno, por onde não circulam pessoas, impede a obtenção do documento.


O problema é que como muitos dos locais são alugados, as adaptações demandadas são inviáveis para quem não é dono do imóvel.

Empresários de todo o país reclamam também da burocracia para conseguir o documento, um terreno fértil em que muitas vezes são criadas dificuldades para vender facilidades – um mar cheio para a corrupção.

Mudanças?

A promessa agora é de mudança. Na mesma direção que muitos outros prefeitos do Brasil, o petista Fernando Haddad se reuniu na última semana com empresários do setor para receber sugestões de como resolver o problema. Uma das metas é encurtar o prazo de análise do alvará, que hoje chega a absurdos quatro anos em alguns casos.

Para o promotor José Carlos de Freitas, é preciso também modernizar a fiscalização de boates e similares, não atuando apenas sob provocação.

“Teria que ter uma cobrança periódica, com tecnologia moderna para mostrar na tela do fiscal quais alvarás não estão funcionando. É preciso também ter calendário”, sugere o promotor.

Enquanto o cenário não mudar, o poder público vai continuar não podendo fechar ou multar com rigor comércios irregulares, sob o risco de parar o setor de serviços do país. Tal modo de agir, no entanto, abre brecha para aquela pequena parcela dos empresários que se beneficia de um ambiente sem regras. E pune a maioria que quer investir com segurança.

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