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Brasil tem de abandonar o ‘terceiro-mundismo’

Ex-embaixador Roberto Abdenur explica que o país tem de aproveitar os foros internacionais para avançar na luta por mais espaço no cenário internacional

Abdenur: "país tem de continuar a buscar seu espaço, mas sem estripulias" (VEJA)
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Da Redação

Publicado em 27 de janeiro de 2011 às 22h00.

A reforma do sistema decisório nos organismos multilaterais é um pleito antigo dos países emergentes. Contudo, nos últimos anos, com o aumento da importância desses países na economia mundial, a adoção de mudanças se tornou urgente. O alerta é do ex-embaixador Roberto Abdenur, 68 anos. A participação do Brasil nessa polêmica durante o governo Lula, segundo ele, foi correta em suas intenções. "Na verdade, ele encampou objetivos que há muito tempo o país persegue", diz o diplomata.

Segundo Abdenur, no entanto, a condução dos assuntos diplomáticos foi equivocada. Ele espera que a presidente Dilma retome a pressão por maior representatividade no mercado internacional, mas sem a estridência e as estripulias do presidente Lula. O ex-embaixador aconselha ainda a revisão dos conceitos antigos de oposição entre pobres e ricos para abraçar o entendimento de que o mundo hoje é mais complexo e entrelaçado. Com uma trajetória marcante na diplomacia desde os anos 60, Abdenur decidiu se aposentar em 2007, quando ocupava o cargo de embaixador do Brasil nos Estados Unidos, em Washington. O motivo, diz ele, foi o desencantamento com o Itamaraty, que, no governo Lula, sofreu com os excessos da infiltração ideológica.

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Uma das principais discussões deste fórum de Davos é a representatividade dos países em desenvolvimento nos organismos multilaterais. Esse problema tem se agravado por conta do rápido crescimento dos emergentes. Qual sua avaliação sobre esse pleito?

Desde o início da minha carreira, nos anos sessenta, até minha aposentadoria, em 2007, fui testemunha ocular da inércia desses organismos multilaterais. Principalmente dos financeiros, como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial. Muito antes de serem potências, os países em desenvolvimento lutavam por justiça e uma distribuição melhor do poder nesses órgãos, de modo a torná-los mais sensíveis às suas postulações. Esse foi, inclusive, o grande tema do chamado ‘diálogo Norte-Sul’, que marcou o esforço dessas nações, iniciado na década de 60, para discutir mudanças nessas regras do jogo.

O grande foro desse diálogo sempre foi a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento, a Unctad, que ainda subsiste – mas apenas como uma espécie de centro de análise de temas econômicos. Hoje, graças ao processo de globalização e às lições que países como o Brasil aprenderam ante o impacto de diversas crises, os emergentes têm mais poder efetivo na economia internacional. É interessante perceber que o foro de diálogo em prol de uma aceleração deste processo de redistribuição do poder migrou para o G20. Dentro dele, há um grupo meio estranho, mas que, mal ou bem, funciona, que são os BRICs (Brasil, Rússia, Índia e China). É legítima e urgente a articulação que fazem por maior representatividade.

É perceptível o esforço do Brasil nos últimos anos em tentar ser visto como protagonista do cenário internacional. As estratégias para isso foram adequadas?

Considero positivos muitos dos esforços que foram feitos, como a busca de um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU. O país, há muitas gerações, almeja este posto, o que considero legítimo e correto. Se conquistado, o país certamente seria alçado um status diferenciado no plano internacional. Esse tema, eminentemente político, será talvez o último capítulo dessa redistribuição do poder. O ponto é que a resistência a uma ampliação deste órgão não vem só dos poderes ditos ‘ocidentais’, mas da própria China e da Rússia, que temem ver diluída a sua influência. Ao contrário do que pensam algumas pessoas, esse problema não é mais ‘Norte-Sul’. É bem mais complexo que isso, porque há instâncias do chamado ‘Sul’ que se opõem a mudanças. O governo Lula não errou nas intenções.

Na verdade, encampou objetivos que há muito tempo o país persegue. É a maneira como as políticas foram conduzidas que merece críticas. O governo Lula se atrapalhou e acabou, como se diz no futebol, pisando na bola. Cometeu equívocos muito graves como no episódio das negociações em torno do programa nuclear iraniano, em que se negou apoiar as sanções do Conselho de Segurança da ONU, e ainda abstendo-se de condenar as flagrantes violações dos direitos humanos praticadas pelo país. Em menor escala, destaco os arroubos excessivos com regimes autoritários de nossas região, como Cuba e Venezuela, e a desastrosa condução do episódio de Honduras. Outra ‘mancada’ do ex-presidente foi dizer que era ‘gostoso’ ver a crise dos Estados Unidos e da Europa, sendo que, na realidade, este quadro é extremamente prejudicial aos interesses do Brasil. Em geral, houve afastamento dos princípios da universalidade dos direitos humanos e da defesa da importância da democracia.

Isso o governo Lula jogou pela janela. Tantos erros acabaram prejudicando boas intenções, destacadamente a meta de conquistar uma vaga no Conselho de Segurança. A sorte do ex-presidente foi a criação, no final do governo Bush, do G20, que está sendo um veículo importante para acelerar as transformações na ordem internacional, de modo a torná-la mais conseqüente com as mudanças reais.


Qual sua expectativa para a atuação do novo governo neste campo?

Estou otimista. Acredito que o novo governo vai dar continuidade ao que houve de bom no anterior, mas sem as estripulias do presidente Lula.

Qual a estratégia eficiente para que o governo Dilma consiga avançar de forma significativa no cenário político internacional? O país teria de, por exemplo, centrar esforços num determinado órgão?

A diplomacia internacional é composta de uma ‘constelação’ de foros de discussão. Não creio que o governo deva focar em um ou outro, mas sim prosseguir seu trabalho de ir avançando nas diversas frentes. Mais que uma estratégia horizontal, é preciso saber agir diferentemente para cada órgão diferente. Nas instituições originárias dos Acordos de Bretton Woods, como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, felizmente tem havido avanços importantes nos últimos dois anos. Com a crise financeira de 2008, que sacudiu as relações econômicas em todo o planeta, os países europeus e os Estados Unidos correram para organizar a primeira reunião de cúpula do G20. Foi o marco do fortalecimento deste grupo, em que os emergentes possuem mais peso. Tem havido um processo natural de reformatação do sistema internacional na área de economia e o Brasil precisa aproveitar o momento para continuar ganhando terreno.

Outro campo complemente distinto é o político, que trata de questões de segurança e da paz mundial. Como disse anteriormente, o governo está correto em buscar um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU e não pode se dar ao luxo de repetir as trapalhadas da administração Lula. Hoje, considero que todo aquele constrangimento – não só com os Estados Unidos, mas também com os países árabes, os europeus, e mesmo com a Rússia e China – está superado. Se for confirmada a opção do governo Dilma por um maior pragmatismo neste campo, vamos seguir avançando. Por fim, acredito que o país não pode se esquecer que existem outros foros que são menores, mas que são importantes e não devem se negligenciados.

Quais, por exemplo?

A Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), por exemplo. Trata-se de um órgão muito importante como palco de discussão das melhoras práticas de políticas públicas e econômicas. O Brasil começou a dialogar com a OCDE através de mim, em 1994, quando eu era secretário-geral do Itamaraty no governo Itamar Franco. Desde então, o país passou a integrar vários grupos de trabalho e ser beneficiado pelos estudos que a OCDE realiza. Isso já é um avanço. Porém, ao longo do segundo mandato do governo Lula, o Brasil recebeu convites seguidos do secretário-geral, Miguel Angel Gurria, para se tornar membro efetivo da organização. Todos foram recusados pelo antigo governo. E por que? Por um apego exagerado ao ‘terceiro-mundismo’. O país precisa se desvencilhar destas idéias, que já fizeram sentido um dia, mas que hoje são rasas ante a complexidade que as relações internacionais adquiriram.

Hoje, o mundo é muito mais entrelaçado e não comporta conceitos simplificados de oposição entre Norte e Sul, entre pobres e ricos. O maior temor do governo Lula era transmitir a idéia de “passou para o lado dos ricos”, já que a OCDE por muito tempo foi composta pela nata das nações industrializadas, com destaque para os países europeus, os Estados Unidos e o Japão. Mas, mesmo isso, já mudou muito. Desde os anos 90, países como México, Chile e Polônia ingressaram. A Colômbia está sabiamente em plena campanha para ser aceita. Por que o Brasil não deveria? O governo Dilma, ao meu ver, tem de ser conseqüente e aceitar reavaliar essa posição.

Em Davos, um assunto que deve render discussão é a chamada guerra cambial. Muitas nações estão descontentes não só com a política praticada pela China, que já é criticada faz tempo, mas também com o que tem ocorrido nos Estados Unidos. Os países têm mecanismos para impor uma revisão destas políticas?

A China vem praticando essa política de manter o yuan desvalorizado ante o dólar há décadas e isto foi fator fundamental para que se firmasse como exportadora de produtos manufaturados. Já os Estados Unidos estão em sua mais grave crise desde os anos 30. Não estou defendendo nem um nem outro, mas compreendo suas razões. Nos próximos encontros do G20, não há dúvidas de que o Brasil vai engrossar a voz tanto no diálogo direto com Pequim quanto no âmbito dos BRICs. Mas é preciso que o governo tenha clareza de que este problema não será resolvido de uma hora para outra. Nem é possível realizar uma guinada súbita. Está claro para mim que na China o governo, pouco a pouco, elevará o peso da demanda doméstica como fator de crescimento econômico. O consumo interno não tem acompanhado o ritmo do PIB e há uma série de novos anseios da população chinesa que tendem a levar o regime para essa direção.

O país não ficará indefinidamente nesta dependência tão acentuada de exportações e investimentos. Para isso é preciso permitir que o yuan se valorize, o que já tem acontecido, de forma muito gradual. Quanto aos Estados Unidos, precisamos torcer para que sua economia, ainda a maior do mundo, possa se recuperar. Sou otimista que alguma solução para o problema, no médio prazo, virá tanto da própria negociação entre EUA e China, quando de pressões de outros blocos. Aora, nada de significativo será feito nesta reunião de Davos, nem na próxima reunião do G20.

Diante dessa expectativa de que a guerra cambial não poderá ser resolvida a curto prazo, como avalia a idéia do ministro Guido Mantega de levar o assunto para a OMC?

Não parece adequado. É um tema muito etéreo e que não se encaixa numa investigação típica de política comercial. Mesmo que o país queira abrir uma ação contra a China ou Estados Unidos, a questão é tão complexa que demandaria anos para se analisada e para se chegar a alguma conclusão. Então, não acredito que isso seja possível. O Brasil pode fazer barulho na OMC e isso até ajuda. O simples fato de aventar essa hipótese dá alguma força ao nosso pleito. Mas o próprio diretor-geral, Pascal Lamy, tem refutado a possibilidade de tratar deste tema no âmbito da organização.

No G20, o Brasil está hoje ao lado dos Estados Unidos no combate à proposta francesa de regular os preços das commodities por meio da criação de um estoque de vários produtos. Ao mesmo tempo que esse assunto nos aproxima do país mais rico do mundo, o Brasil bate de frente com os interesses de outros grandes emergentes, como China e Índia, que são importadores de alimentos. Como resolver essa contradição?

Contradições de interesse entre o Brasil e a China, entre o Brasil e a Índia, entre a China e os Estados Unidos, etc, sempre aconteceram e continuarão acontecer o tempo todo. O importante é o país agir para capitalizar os momentos em que a convergência de interesse é proveitosa, além de ter a sabedoria de administrar as diferenças de maneira a minimizar seus efeitos negativos. Esse é o cerne do que a diplomacia faz todos os dias. Para ter uma voz ativa em defesa de certos interesses dos emergentes o Brasil não precisa concordar com esses países em tudo, nem temer posições claras de discordância com eles.

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