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Batalha pelo ouro roxo: conflito do açaí no Pará envolve até milícias

Apesar de ter conquistado, em todas as esferas, o título de demarcação, uma comunidade quilombola continua sendo ameaçada por uma fazenda

Açaí debulhado (Marajonida/Wikimedia Commons)

Açaí debulhado (Marajonida/Wikimedia Commons)

João Pedro Caleiro

João Pedro Caleiro

Publicado em 13 de outubro de 2019 às 08h00.

Última atualização em 13 de outubro de 2019 às 08h00.

Alfredo Batista Cunha contorna o mapa com os dedos para mostrar a terra pleiteada pela comunidade remanescente de quilombo do Gurupá, na Ilha do Marajó, uma região no Pará de mais de 10 mil hectares disputada por pretos quilombolas e brancos fazendeiros.

A titulação do território, já conquistada pelos quilombolas na Justiça, envolve a disputa do açaí, conhecido como “ouro roxo” paraense.

Para mostrar uma das consequências dessa disputa fundiária, Alfredo acompanha a reportagem da Agência Pública em uma viagem de mais de meia hora de rabeta, nome dado aos pequenos barcos com motor de popa, até um acampamento nas margens do rio Arari.

Lá o apanhador de açaí Gilberto Amador, um homem tímido, de voz quase inaudível, mostra uma cicatriz no quadril, onde até hoje se encontra alojada a bala disparada no dia 29 de setembro de 2016 pelo administrador da fazenda São Joaquim Agropecuária Ltda., Assis da Silva Leal.

Gil, como Gilberto é conhecido, conta que cerca de 30 seguranças da fazenda chegaram em barcos, atirando com pistolas e espingardas de dois canos. “Diziam: ‘Mata esse filho da puta’. Era pra matar. Mandaram eu me deitar no chão”, completou, ainda com timidez. A mesma versão consta em seu depoimento no Boletim de Ocorrência (BO), numa investigação que ainda não foi concluída.

Gil é uma das vítimas de uma disputa de mais de meio século com a fazenda São Joaquim. Ao mesmo conflito a comunidade atribui o assassinato de dois quilombolas, um paralisado em cadeira de rodas, além de inúmeras autuações por furto do açaí em terras que a fazenda diz ser dela – ao contrário do que decidiu a Justiça.

E apesar de ter conquistado, em todas as esferas, o título de demarcação, a comunidade Gurupá continua sendo ameaçada pela São Joaquim, afirmam os entrevistados pela reportagem.

Seus donos, o falecido Liberato Magno de Castro e seus herdeiros, se autodenominam proprietários de quase metade da área titulada, incluindo todos os açaizais margeados pelo rio Arari. Relatórios públicos já apontaram, no entanto, que a área foi grilada por Liberato.

Do processo de titulação do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), resta a desintrusão, ou seja, a expulsão dos não quilombolas daquele território. A lentidão no processo levou a Advocacia-Geral da União (AGU) a entrar, no último dia 26 de setembro, com uma ação de reintegração de posse para anular o título de propriedade e cancelar os registros imobiliários da fazenda São Joaquim.

Para o Ministério Público Federal (MPF), este é um dos conflitos mais graves envolvendo quilombolas em todo o estado do Pará. A história da comunidade, localizada nas margens do rio que a nomeia [Gurupá], remonta à fuga de pessoas escravizadas em meados do século 19 em uma fazenda na beira oposta do rio Arari, onde o Gurupá deságua.

Com o passar das décadas, as três famílias originárias da comunidade, uma delas a Batista, ascendência de Alfredo, tornaram-se uma comunidade de 47 famílias, cuja subsistência sempre foi tirada da floresta amazônica, retirando o açaí para consumo. No início dos anos 1970, a chegada do fazendeiro Liberato na região mudou tudo, explica Alfredo.

Advogado e pecuarista de renome no Marajó, Liberato também teve ascendentes que participaram do período escravocrata, caso de sua bisavó, a baronesa Maria Leopoldina Lobato de Miranda. Historicismo à parte, os quase 900 quilombolas de Gurupá lembram, por vivência ou por relatos, quando o fazendeiro chegou dizendo que aquelas terras rasgadas por águas lhe pertenciam, e seus empregados atearam fogo nas casas de seus familiares.

À época, as famílias foram expulsas para as margens do rio Gurupá e, desde então, a fazenda explora os recursos disponíveis no resto da região. “Minha tia Joana, quando chegou da roça, viu sua casa toda em chamas e suas coisas debaixo das árvores”, conta Alfredo.

Se antes as famílias viviam espalhadas por diversos igarapés repletos de açaizais, hoje dezenas de casinhas margeiam as curvas do Gurupá, único lugar liberado pelo fazendeiro para exploração do açaí. O conflito pela “posse” do fruto se intensificou na última década com a valorização do preço, cuja polpa, principal fonte de renda da comunidade quilombola, é exportada do Pará para o mundo todo.

Em 2018, o Pará exportou 2,3 mil toneladas do ouro roxo, cuja rota chega a quase todos os continentes, de acordo com a Federação das Indústrias do Estado (Fiepa).

Grilagem x titulação

A safra do açaí tem início no mês de julho e vai até dezembro, e é quando os quilombolas conseguem tirar a maior parte de sua renda, dos açaizais que ficam na área protegida pelo administrador da São Joaquim, Assis da Silva Leal. Anualmente, a fazenda arrenda os açaizais para trabalhadores trazidos de outras comunidades, que trabalham como meeiros, ou seja, deixando metade do lucro para os proprietários da fazenda.

Em processo de demarcação desde 2008, a portaria de reconhecimento da Gurupá já foi publicada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), em dezembro de 2014, e assinada em Decreto pela Presidência da República, em abril de 2016. A suposta propriedade da São Joaquim, por sua vez, é considerada pela Secretaria de Patrimônio da União (SPU) terra pública desde o final de 2017.

Concluiu-se que os documentos apresentados por Liberato não apenas são inválidos na atualidade, por remontarem até mesmo às cartas de sesmarias distribuídas às famílias nobres pelo império português, mas, na verdade, dizem respeito a outra área, de outro município.

Os antecedentes do fazendeiro, além de serem considerados nobres, têm um longo histórico de participação na política estadual. Já Liberato, além de proprietário da São Joaquim, foi sócio de um consórcio de fazendas chamado Itaqui Agropecuária Ltda., filiada à Associação Brasileira dos Criadores de Zebu (ABCZ), e sócio de um escritório de advocacia em Belém.

O fazendeiro chegou a ser citado no livro Donos da terra: trajetórias da União Democrática Ruralista (UDR), da historiadora Marcionila Fernandes, como membro da sede marajoara da UDR.

Apesar de sua morte no início de 2018, seus herdeiros seguem brigando pela propriedade da terra. Uma das filhas de Liberato, Consuelo Castro, foi prefeita do município de Ponta de Pedras, vizinho a Cachoeira do Arari, entre 2012 e 2016, pelo PSDB. Outro filho, Leão Neto, coleciona diversas postagens no Facebook criticando os direitos indígenas, a reforma agrária e até mesmo a repercussão internacional das queimadas na Amazônia.

Já o administrador da São Joaquim, Assis, chamado pelos quilombolas de feitor ou até de capataz, teria ainda o auxílio de seguranças da fazenda e da Polícia Civil do município de Cachoeira do Arari, onde fica a comunidade, na proteção da fazenda, segundo os quilombolas. É o que denuncia Alfredo, hoje presidente da Associação Remanescente do Quilombo de Gurupá (Arquig).

“Nossa luta é travada há mais de cem anos, e, no caso desse fazendeiro que se diz dono da área, há 47 anos. Hoje a terra é decretada dos ribeirinhos e dos quilombolas, mas as pessoas que perdem não sabem perder. As pessoas levam revés porque saem para uma batalha dessa”, conta, revelando preocupação pelos quilombolas que seguem na linha de frente do conflito.

A comunidade quilombola do Gurupá espera, há quase dois anos, que o Incra realize a desintrusão do território, já adiada diversas vezes sob alegação de falta de orçamento. Além da São Joaquim, outra fazenda, chamada Caju, e mais sete propriedades de pequenos produtores que não se consideram quilombolas estão dentro do território da comunidade Gurupá.

No entanto, só essas pequenas propriedades receberão indenização para serem retiradas da área, uma vez que as fazendas consideradas “de má-fé” são griladas.

Como explica o procurador da Câmara de Comunidades Tradicionais e Povos Indígenas do MPF de Belém, Felipe de Moura Palha e Silva, a ausência de recursos não serve para justificar a não retirada da propriedade dos herdeiros de Liberato.

“A desintrusão tem que acontecer para ontem, porque enquanto não retirarem [a fazenda] os conflitos continuarão acontecendo nesta safra do açaí”, explica. Contatada por telefone e e-mail, a Superintendência Regional do Incra no Pará não respondeu sobre razão do adiamento da desintrusão.

Enquanto isso, segundo Silva, o conflito na comunidade de Gurupá é “de risco de morte iminente”. “A partir do momento em que a área já foi definida para eles, e eles agem conforme a legitimidade de sua titulação, isso gera ação contrária por parte do poder político local, do fazendeiro, da polícia”, completa.

Diante da morosidade da situação, o MPF acionou a AGU, que entrou com uma ação ordinária com pedido de tutela de urgência pela efetivação da desintrusão, “determinando que a ré desocupe a área, abstenha-se de voltar a ocupá-la e/ou de impedir o acesso à mesma, inclusive mediante o uso de força policial […] sob pena de cominação [ameaça] de multa”, coloca o documento.

Marcados para morrer

A última ameaça registrada pelos quilombolas ocorreu em agosto. De acordo com relatos dos moradores, denunciados ao MPF e registrados em um ofício circular encaminhado, no dia 19 de agosto, para diversos órgãos responsáveis pela segurança da comunidade, Assis da Silva Leal, mais uma vez, estaria percorrendo as águas marajoaras para constranger e ameaçar seus membros de expulsão.

Segundo o ofício do MPF, o administrador da fazenda São Joaquim estaria acompanhado por Romero Giotto do Amaral Brasil, investigador da Polícia Civil de Cachoeira do Arari.

Quem relata a história pela primeira vez é Josiel Amador, apanhador de açaí e irmão de Gilberto. Há cerca de dois meses ele, Gil e outro jovem estão vivendo “para as barracas”, ou seja, novamente acampados nas margens do Arari e seus igarapés, revezando como parte da estratégia de ocupação da área.

Lá eles enchem e vendem as rasas – cestas que rendem até 7 litros de polpa do açaí – para embarcações. A ocupação temporária, apesar de ser dentro do já demarcado território quilombola, é uma retaguarda contra as investidas da fazenda.

“Nesse mês, Assis veio escoltado pela polícia. Foram lá dentro do Gurupá deixar uma intimação e daí pararam aqui nessa barraca. Aí falaram que nós éramos invasores, ladrões, que estávamos invadindo terra. Eu disse pra eles que a gente só saía com mandato judicial”, lembra, reafirmando sua falta de confiança nas autoridades locais. “Toda vez que a gente chega numa delegacia, para nós é um pesadelo. Quando a gente consegue alguma coisa é no MPF e na Polícia Ambiental. Quando a polícia de Cachoeira vem aqui, é para pegar os quilombolas”, reclama Alfredo.

No documento emitido pelo MPF, o procurador Felipe de Moura Palha e Silva pede que a Delegacia de Polícia Civil de Cachoeira do Arari e a Delegacia de Conflitos Agrários encaminhem a relação do que tem sido feito para evitar o conflito e que evitem tomar medidas que não assegurem a integridade física da comunidade quilombola.

A Arquig quilombola registou, a partir da denúncia ao MPF, um segundo BO na própria Polícia Civil para denunciar as condutas criminais do administrador da São Joaquim. Com o reconhecimento oficial da comunidade quilombola, a associação sente que tem os elementos necessários para responsabilizar Assis, como explica Analu Batista dos Santos, graduanda em direito e uma das referências da comunidade.

“Acusamos [Assis] de difamação, ameaça e coação com a polícia. Nós teríamos muitas acusações contra ele, mas nunca foi provado nada. Eles sempre fizeram isso. Trazer a polícia para coagir foi prática constante por muito tempo. Quando a polícia começou a não vir mais, ele trouxe milícia. Pessoas encapuzadas que desciam de helicóptero em uma fazenda próxima. Às vezes com segurança da fazenda também. Isso é recorrente”, denuncia.

Analu, que é técnica em administração e graduada em letras, conta que decidiu estudar direito para defender sua comunidade. Ela trabalhou como funcionária pública na prefeitura de Cachoeira de Arari por dez anos. “Nessa década que morei lá, eu ia quase todo final de semana para a delegacia, nos tempos de safra, tentar defender os quilombolas que levavam para lá. Eu ia pela fala mesmo, porque não conhecia o direito. Perguntava o que eles tinham contra as pessoas, e eventualmente eles tinham que liberá-las.”

Analu afirma “não se considerar uma liderança” e que o interesse pelo direito começou quando ela tinha 7 anos. “Quando eu era pequena, eu achava que a figura do advogado podia fazer qualquer coisa.” Ela conta que seu pai, Osvaldo Batista, foi ameaçado de morte por muitos anos pelos feitores do Liberato. “Quem foi destinado a matá-lo só não matou porque eu ia para a roça junto com ele. Às vezes eu tinha pesadelos e não largava dele, ia junto para protegê-lo. Acho que sentiram pena, não sei”, comenta.

A primeira tentativa de denunciar formalmente o administrador da São Joaquim ocorreu justamente quando Gil foi baleado, em 2016, e também envolveu seu irmão. Na época, eles estavam acampados durante aquela safra do açaí. Ao mostrar a cicatriz da bala alojada, ele lembra que, na ocasião, conseguiu se arrastar para a mata e buscar ajuda. Foi quando os homens se voltaram contra Josiel, o algemaram e o levaram pelo rio “como refém”.

“Ficavam me ofendendo, me xingando. Uma hora passamos em frente a uma casa e eu tentei gritar, mas me bateram”, lembra. No BO, o depoimento de Josiel enumera as ofensas racistas que recebeu. “Ladrão, filho da puta, patife, bando de preto ladrão.”

Segundo Josiel, ele foi deixado em uma fazenda chamada Coração, distante da comunidade, de onde os pistoleiros que o sequestraram partiram de helicóptero. O quilombola andou por horas até encontrar uma casa com telefone rural para avisar seus familiares e conseguir uma embarcação para voltar para Cachoeira do Arari. Quando chegou, foi direto à delegacia denunciar o ocorrido, enquanto Gil estava no hospital.

Segundo a Arquig, a denúncia foi arquivada por falta de provas, uma vez que os médicos que atenderam Gilberto não conseguiram retirar a bala. “A melhor justiça, pra mim, não era a bala, é o Gil que tá vivo e falando a verdade. Ele viu que foi o Assis. A prova tá aí”, critica Alfredo, presidente da associação. O delegado David Bahury afirma desconhecer o caso, que ocorreu antes de sua gestão, mas diz “acreditar que o inquérito tenha indiciado o senhor Assis”.

Apesar de emblemática, a ocasião não é exceção no histórico da comunidade. Alfredo conta que na véspera de Natal de 2014, um homem que se apresentou como Rose, filho do antigo administrador da São Joaquim, identificado apenas como Dino Feio, invadiu um dos setores da comunidade, o igarapé da Roça, junto com dois pistoleiros, com o suposto objetivo de cobrar os quilombolas que haviam pescado nos lagos da fazenda e “mexido com o peixe dele”.

Da terra, o filho do feitor atirou em uma rabeta onde estavam os quilombolas e irmãos Adenilson Moraes Alexandrine e Adelson Moraes Alexandrine. O primeiro morreu na hora, e o segundo encontra-se até hoje em uma cadeira de rodas em decorrência dos ferimentos.

Alfredo acredita que os crimes ocorreram em retaliação a uma briga que os quilombolas tiveram com Dino. “Teve uma discussão aqui, por conta das acusações de furto de açaí, e os quilombolas, revoltados por tudo que estava acontecendo, pegaram o Dino e bateram nele. E teve o retorno”, opina.

O assassinato de Lalor

De fato, as lideranças da comunidade guardam calhamaços de documentos contendo inúmeras denúncias da violência que sofreram pelos administradores da fazenda São Joaquim e pelos policiais de Cachoeira do Arari ao longo das décadas. Da mesma forma, guardam as dezenas de intimações que já receberam por “furto de açaí” e “invasão de propriedade”.

Aos 64 anos, a funcionária pública Maria de Fátima Gusmão Batista, mãe de Analu e auxiliar de faxina na Escola Municipal Quilombola da Comunidade de Gurupá, atua como uma espécie de guardiã dos documentos.

“Eu sempre guardo as declarações. Isso aqui é só intimação e BO que vinha de Cachoeira do Arari para cá, acusando a gente de furtar açaí. A polícia não saía daqui. Eu vou te dizer, já ajudei bastante nesse conflito. Ajudo quando posso, porque já tô nessa idade”, conta, sentada no chão da casa de madeira, à beira do rio Gurupá, e cercada de papéis já amarronzados do tempo. Apesar de tantos relatos, uma ocorrência específica é a que mais marca a história da comunidade quilombola e de Maria: o assassinato do líder Teodoro Lalor de Lima.

“Depois que o seu Lalor morreu, todo mundo ficou com medo. E depois disso também acirrou o conflito.” Lalor era presidente da Arquig quando foi assassinado, em 2014, na capital, Belém, onde se preparava para uma rodada de reuniões com o Incra e o MPF. As circunstâncias do assassinato foram consideradas pela Justiça como apenas um “crime passional”. “Eu era muito amiga dele. Se ele fosse vivo, ainda tava na presidência, porque ele enfrentava os fazendeiros de igual pra igual”, conta Maria.

A família de Lalor foi a única que, desde os anos 1970, com a chegada de Liberato, não arredou o pé do sítio onde vivia, no igarapé Bom Jesus do Tororomba. Com as constantes intimidações para que a família se retirasse do local, que levaram à abertura pelo MPF de um processo demarcatório paralelo do sítio dos Lalor Lima, Teodoro se tornou a principal referência para os quilombolas do Gurupá.

Ao longo das décadas, chegou a ser preso na delegacia de Cachoeira do Arari diversas vezes, em ações de reintegração de posse por parte da fazenda, além de sua residência ter sido incendiada em 1993. Na época, as ameaças partiam do então feitor da São Joaquim, Coriolano Feio.

Analu conta que a violência do conflito teve início com Lalor. “Era um homem pobre, preto, que ousou enfrentar esse povo. A questão de Liberato era lutar por orgulho próprio.”

Na época, o principal lucro da fazenda vinha do gado, do seringal e da extração de palmito. O açaí ainda era manejado pelos quilombolas prioritariamente para a alimentação. “O açaí não tinha esse valor na época. Para nós, antes de ser vendável, sempre foi pra beber. Então para a fazenda nunca foi determinante também, para eles é troco”, completa Analu.

A historiadora e antropóloga Rosa Acevedo Marin, professora de pós-graduação do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará (UFPA), foi uma das responsáveis pelo primeiro laudo antropológico sobre a comunidade do Gurupá, em 2008, e organizou a produção de um livro com as memórias de Lalor. “Realizamos o trabalho em meio a uma situação de conflito muito forte”, recorda.

De acordo com a quilombola Analu, todo o processo de conflito com os fazendeiros – e as últimas ações que buscam criminalizar o feitor da São Joaquim – é “concomitante” com o longo processo de titulação da comunidade remanescente de quilombo.

O autorreconhecimento da comunidade como quilombola se deu em 2002, com a criação da Arquig, a certidão da Fundação Cultural Palmares foi publicada em junho de 2010 e o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), em 2012. A partir de então, como mencionado anteriormente, o Incra e a União reconheceram a desapropriação da fazenda para uso do Território Quilombola de Gurupá.

Em 2009, os quilombolas conseguiram na Justiça uma liminar que garantia a autorização para que explorassem as áreas de várzea, ou seja, as margens do rio Arari, do território exigido por Liberato. No entanto, um agravo no Tribunal Regional Federal da Primeira Região (TRF1) sustou a decisão. Apesar disso, o longo processo de demarcação, após uma década, foi concluído. Na prática, a última etapa de desintrusão da fazenda mantém os quilombolas em risco.

A desintrusão que não vem

Segundo o procurador Silva, o atraso do Incra está relacionado a um “completo esvaziamento da política de demarcação de comunidades quilombolas”, principalmente na superintendência de Belém. “Estamos em setembro e até hoje não foi repassado um real de orçamento para dar continuidade aos processos. Estão parados desde primeiro de janeiro”, denuncia.

Segundo dados do MPF, três outras comunidades quilombolas, apenas na Ilha do Marajó, também já tiveram seu processo de titulação concluído e aguardam a desintrusão dos invasores.

Entre as recomendações dadas pelo MPF no ofício circular enviado em agosto, está a insistência para que a desintrusão seja feita pelo Incra o mais rápido possível. Silva cobra a ação do Ministério Público local de Cachoeira do Arari, para coibir as atividades latentes no conflito:

“Uma é a realização de notificações dos quilombolas pelo investigador da Polícia Civil sem sequer a participação do delegado e a outra é o próprio fundamento jurídico que estão dando a uma posse ilegal e ilegítima, para fundamentar inclusive ações sobre furto de açaí”, coloca.

O MP de Cachoeira de Arari está sem promotor titular desde abril deste ano. A promotora temporária, Paula Camacho, afirmou que a citação da participação do investigador da Polícia Civil nas denúncias de ameaças sofridas por quilombolas chamou sua atenção, mas que, segundo a polícia, a informação “não coincide com os fatos”. “Como é um conflito, há vítimas dos dois lados. Todas essas questões ainda estão sendo apuradas”, concluiu, em breve conversa por telefone.

Para o procurador, o grande problema da situação é a “força política local que as pessoas têm para impedir a tramitação dos processos e o reconhecimento e titulação da comunidade”, afirma. “Posso dizer, sem medo de errar, que a força política e econômica de quem não tem interesse que essa titulação aconteça é o responsável por essa via-crúcis”.

Após toda uma vida dedicada à demarcação da comunidade, Maria de Fátima Batista tem medo de não chegar a “ver o território” na “mão dos quilombolas”. Ela expressa revolta diante da justificativa financeira dada pelo Incra para não efetuar a expulsão da fazenda São Joaquim. “Além de ofendida, me sinto muito revoltada, porque a gente não quer nadar e morrer na praia. Quero ver esse território livre, sim senhora, espero que, se eu ainda tiver vida, consiga ver nosso território, toda a área pleiteada.”

Outro lado

Leão Neto, filho de Liberato Magno de Castro, atendeu a reportagem por telefone e prometeu providenciar algum representante da família para responder às denúncias apresentadas, mas não entrou em contato até a publicação.

Já o delegado responsável em Cachoeira do Arari, David Bahury, afirmou, por telefone, que a Polícia Civil do Estado do Pará vem combatendo, “veementemente”, as milícias existentes no estado. Sobre os relatos que denunciam que o investigador Romero Brasil estava presente nas últimas ameaças contra a comunidade feitas pelo gerente Assis da Silva Leal, o delegado respondeu que o investigador tem uma “conduta irreparável”.

Entretanto, afirmou que o que “pode ter acontecido” é que Brasil “tenha precisado de algum auxílio para chegar à comunidade, porque é um local distante”, e que isso justificaria a presença de uma das partes do conflito na lancha da Polícia Civil. O delegado concluiu a ligação dizendo que investigaria as denúncias dos quilombolas.

No dia 25 de setembro, um homem que se identificou como “Augusto” ligou para a reportagem. Em uma conversa breve, a repórter procurou esclarecer qual a ligação de “Augusto” no conflito. Ele desligou após avisar que logo a reportagem saberia “quem ele é”, bem como quem realmente são os quilombolas e os fazendeiros. O número foi identificado, de forma pública, como do investigador Romero Brasil.

Procurado, Romero Brasil respondeu por WhatsApp afirmando “não ter nada a declarar” sobre a ligação feita por “Augusto”. Sobre as acusações registradas no documento do MPF, o investigador disse que estava fazendo intimações contra os quilombolas devido ao “grande volume de reclamações feitas por parte do sr. Assis Leal e por funcionários da fazenda”; que há “invasão de pessoas que se dizem quilombolas” e que não tem como a polícia saber “quem é e quem não é quilombola”.

Romero afirmou ainda que as intimações não foram feitas por barco e que, como nunca havia andado na região do Gurupá, “o sr. Assis se prontificou a nos guiar até a área de entrada da região”. O investigador destacou que não presenciou “embaraço, coação ou ameaça” durante o episódio.

*Matéria publicada originalmente pela Agência Pública

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