Missão de paz do Brasil no Haiti (Eduardo Munoz/Reuters)
EFE
Publicado em 31 de maio de 2017 às 14h45.
Rio de Janeiro - Treze anos depois de os primeiros brasileiros terem embarcado para liderar o braço militar da operação de paz da ONU no Haiti, as Forças Armadas enviam nesta quinta-feira seu último contingente para a missão, considerada um sucesso para as pretensões diplomáticas e militares do Brasil no cenário internacional.
Especialistas consultados pela Agência Efe fizeram um balanço sobre a participação brasileira na Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (Minustah, na sigla em francês), que teve início em junho de 2004, após a renúncia e o exílio do então presidente do país, Jean Bertrand-Aristide, e será encerrada oficialmente em 17 de outubro deste ano, por decisão do Conselho de Segurança da ONU.
À época governado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o Brasil assumiu o comando da Minustah como parte da estratégia de política externa "ativa e altiva" promovida pelo então chanceler Celso Amorim.
A ideia era projetar a imagem do país como capaz de se envolver em temas relevantes no plano internacional. Assim, a liderança de uma missão de paz era ideal pelos benefícios políticos e militares gerados em caso de êxito.
O mandato da Minustah, porém, se estendeu além do previsto por diversos fatores. O mais importante deles ocorreu em 2010, quando um forte terremoto destruiu o Haiti e matou mais de 220 mil pessoas.
O perfil da missão também mudou desde 2004. O combate às milícias que atuavam na capital Porto Príncipe deu lugar a um trabalho mais policial nos últimos anos.
Considerando o último contingente de 950 soldados que embarca para o Haiti nesta quinta-feira, o Brasil enviou 37.000 militares à Minustah ao longo dos 13 anos da missão, segundo o Ministério da Defesa.
Do total, a maior parte deles foi disponibilizada pelo Exército (29.627). Marinha e Aeronáutica contribuíram com 6.114 e 317, respectivamente.
A pesquisadora do Instituto Igarapé e especialista em relações internacionais, Adriana Erthal Abdenur, considera a Minustah a missão mais importante nos quase 70 anos de história da participação do país em operações da ONU.
"Foi a de maior duração, a que empregou o maior número de brasileiros e a que apresentou os maiores desafios logísticos e operacionais", afirmou Adriana em entrevista à Agência Efe.
"A participação na Minsutah dá maior credibilidade ao pleito brasileiro de se tornar um ator mais relevante na segurança internacional, inclusive no seu próprio entorno estratégico. Isso é particularmente importante para a defesa que o Brasil faz com frequência da resolução pacífica de conflitos e da importância do multilateralismo", analisou.
Para o professor do Instituto de Relações Interacionais da PUC-RJ e pesquisador do German Institute of Global and Area Studies (GIGA), Kai Michael Kenkel, o Brasil mostrou ter capacidades materiais e normativas para contribuir para assuntos centrais que diferem os atores importantes no cenário internacional.
"A determinação se a Minustah foi positiva ou negativa para a imagem do Brasil sempre também foi atrelada ao sucesso da operação e à ausência de escândalos que colocariam o esforço sob outra luz. Como se evitaram manchetes negativas, a participação no Haiti foi um sucesso", avaliou.
Quem também concorda com o balanço positivo da missão é Marcelo Valença, professor do Instituto de Relações Internacionais da UERJ.
"Foi um exercício de credibilidade e autoridade no plano internacional. Foi a primeira vez que o Brasil assumiu uma missão grande, espinhosa, do começo ao fim. Provamos que temos condições de realizar tarefas como essa", afirmou.
Fora o reconhecimento internacional, a Minustah gerou diversos benefícios militares ao Brasil. Kenkel ressaltou que as Forças Armadas tiveram a oportunidade de participar de uma missão prestigiosa, ganhando experiência no terreno e usando a capacidade dos soldados para melhorar a situação desastrosa no Haiti.
Já Valença destacou a criação do Centro Conjunto de Operações de Paz em 2010, no Rio de Janeiro, que passou a oferecer uma estrutura de ponta para o treinamento de brasileiros e estrangeiros, além de cursos que integram militares e civis.
"O centro juntou todos os braços das Forças Armadas em um só lugar. É um polo de capacitação. Recebemos franceses, alemães, chilenos, argentinos. Essas pessoas estão vindo para cá tanto para ensinar como para aprender", explicou.
"O Brasil não só enviou soldados para o Haiti. Levamos trabalho social, saúde, engenharia e preocupação com o bem-estar. Esse é um movimento que a ONU já vem fazendo desde 1990, mas a forma usada pelo Brasil quebrou a separação entre as forças armadas internacionais e a ajuda social", comentou o professor.
Há também ganhos em termos de influência no plano regional. Segundo Adriana, o Brasil fez gestões diplomáticas desde as negociações sobre o primeiro mandato da Minustah para que houvesse maior participação de países latino-americanos em cargos de chefia e também no número de tropas enviadas ao Haiti.
O movimento da diplomacia brasileira buscava ocupar um "vazio" deixado pela retirada política de atores que tradicionalmente participavam de missões da ONU no Haiti, como os Estados Unidos, o Canadá e a França.
"A liderança brasileira foi explicitamente exercida por meio do comando militar, já que pela primeira vez na história não houve rodízio de nacionalidades do 'force commander' de uma missão. Mas também houve, e há, um forte componente político por trás da participação do Brasil como líder regional", explicou a pesquisadora.
Apesar do consenso sobre o saldo positivo, a Minustah também é alvo de críticas. Ao longo dos últimos anos, questionou-se no Brasil os investimentos feitos pelo governo na missão e o número de soldados do país mortos no Haiti.
De acordo com o Ministério da Defesa, o Brasil investiu R$ 2,55 bilhões na Minustah. A ONU reembolsou o país em R$ 930,9 milhões até o momento, valores que são referentes ao emprego da tropa e não cobrem os gastos relativos ao preparo dos militares.
Quanto às perdas humanas no Haiti, o Ministério da Defesa esclareceu que não houve morte de brasileiros em confrontos armados. No total, 25 militares morreram na missão, 18 deles no terremoto de 2010. Além deles, dois comandantes da missão faleceram no exercício do cargo.
O general José Luiz Jaborandy Júnior, de 57 anos, morreu em setembro de 2015 a bordo de um avião que decolou no Haiti com destino a Manaus. Em janeiro de 2006, o general Urano Teixeira da Matta Bacellar foi encontrado morto no hotel em que estava hospedado em Porto Príncipe. Uma investigação posterior da ONU concluiu que o militar se suicidou.
Adriana ressaltou outro problema frequente em missões de manutenção de paz: a criação de uma "bolha de serviços" para atender à chamada "indústria da assistência". "Esses espaços produzem não apenas ressentimento entre as populações locais, mas também tendem a nutrir um grau de dependência socioeconômica", explicou.
"Apesar disso, diria que a Minustah desempenhou um papel importante em evitar um colapso total da sociedade haitiana, possivelmente com reflexos para toda a região", acrescentou a pesquisadora do Instituto Igarapé.
Outro ponto criticado da missão no Haiti são as 111 denúncias de abuso sexual feitas à ONU entre 2007 e 2017, nenhuma delas contra soldados brasileiros. O Ministério da Defesa afirmou que a conduta dos militares do país é considerada exemplar internacionalmente e que todos recebem instruções específicas sobre o tema antes de participar em operações brasileiras no exterior.
"O fato é que (os abusos sexuais) demoraram a ser reconhecidos como um problema grave para a ONU. No entanto, agora há praticamente um consenso sobre a necessidade de se criar novos mecanismos de prevenção e justiça. É preciso atuar para evitar novos casos, através de treinamento e conscientização, mas também assegurar que quem os comete não ficará impune e que alguma assistência será prestada às vítimas. Isso requer ação não apenas da ONU, mas principalmente dos países que enviam tropas e policiais", afirmou Adriana.