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Voto impresso: desconfiança nas urnas eletrônicas vale 2 bilhões?

Judiciário é contra, enquanto Congresso e especialistas defendem a conferência impressa para as eleições; medida causa debate, mas pode não sair a tempo

ELEIÇÃO NO REINO UNIDO: no Brasil, o sistema digital é usado com sucesso desde 1996  / Paul Childs/Reuters

ELEIÇÃO NO REINO UNIDO: no Brasil, o sistema digital é usado com sucesso desde 1996 / Paul Childs/Reuters

Raphael Martins

Raphael Martins

Publicado em 19 de fevereiro de 2018 às 09h00.

Última atualização em 19 de fevereiro de 2018 às 11h33.

Desde as revelações de Edward Snowden sobre o esquema de espionagem promovido pela Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos, sistemas digitais — e o alcance do que se pode fazer com eles — são paulatinamente colocados sob suspeita. No Brasil, o escrutínio sobre as urnas eletrônicas é provavelmente o melhor símbolo de controvérsia entre os que confiam na lisura e eficiência de um pleito estritamente digital e aqueles que não conseguem se sentir seguros de que os resultados não têm chance de manipulação.

O debate público voltou a esquentar nas últimas semanas. A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, ingressou na semana passada com ação no Supremo Tribunal Federal para suspender uma novidade prevista para as eleições de 2018: o voto impresso. A ação direta de inconstitucionalidade foi encaminhada ao Supremo e o relator (já contestado por entidades de classe) é Gilmar Mendes. Segundo a PGR, o voto impresso representa “um retrocesso para o processo eleitoral, amplia a possibilidade de fraudes, além de ser uma ameaça ao sigilo da manifestação do eleitor”.

“A norma não explicita quais dados estarão contidos na versão impressa do voto, o que abre demasiadas perspectivas de risco quanto à identificação pessoal do eleitor, com prejuízo à inviolabilidade do voto secreto”, diz Dodge. “O problema torna-se mais grave caso ocorra algum tipo de falha na impressão ou travamento do papel na urna eletrônica (…) tais situações demandarão intervenção humana para a sua solução, com a iniludível exposição dos votos já registrados e daquele emanado pelo cidadão que se encontra na cabine de votação”.

Dodge continua: “Apesar de haver críticas ao sistema eletrônico, as alegações e conjecturas sobre a possibilidade de fraude jamais tiveram a sua consistência comprovada”. Dali em diante, pegou fogo a discussão nas redes sociais sobre a possibilidade ou não de fraudar uma eleição no país.

A implementação de urnas eletrônicas no Brasil data de 1996. O voto em papel foi abandonado em 2000, sob a justificativa de acelerar o processo e afastar a ação humana da apuração das eleições. O voto impresso seria uma auditoria das urnas, determinado pelo artigo 59-A da lei 13.165/2015. “No processo de votação eletrônica, a urna imprimirá o registro de cada voto, que será depositado, de forma automática e sem contato manual do eleitor, em local previamente lacrado”.

O dispositivo foi a primeira conquista parlamentar do hoje presidenciável Jair Bolsonaro (PSC-RJ) depois de 25 anos no Congresso. O eleitor deve confirmar a correspondência entre o que digitou na urna e o registro impresso e exibido pela urna eletrônica. Além dos citados por Raquel Dodge, para os críticos, a forma de auditoria física dos votos carrega problemas. “Se é a vontade do Congresso Nacional que tenha o voto impresso, tudo bem. Mas não basta imprimir por imprimir. A utilização desse voto impresso precisa ser regulamentada, dizendo de que forma, em que situações e para qual finalidade a conferência será usada como auditoria”, afirma Henrique Neves, advogado eleitoral e ex-ministro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em entrevista a EXAME. “Está na lei que abrir uma urna fora das hipóteses previstas é crime”.

Outra questão é o custo. A estimativa inicial do TSE era de que o custo para instalar impressoras em toda a malha de urnas eletrônicas em uma eleição fosse de 1,8 bilhão de reais. O custo fez com que a ex-presidente Dilma Rousseff vetasse o artigo. Em novembro de 2015, o veto foi derrubado pelo Congresso. Foram 368 deputados e 56 senadores os que votaram a favor da impressão. Ao lado de Bolsonaro, capitaneou o movimento, pelo Senado, o ex-presidente do PSDB, Aécio Neves (MG), que afirmava que o sistema “não é passível de ser auditado”. EXAME apurou que o partido só entrou com ação em 2014 por conta do que a equipe de defesa chamou de “pressão da ruas”. Para membros do TSE, foi a mesma pressão de eleitores que fez com que tantos parlamentares se engajassem em derrubar o veto do voto impresso.

Mesmo assim, a questão orçamentária se impôs. “Não temos condições nem recursos”, disse o então presidente do tribunal, Gilmar Mendes, em dezembro. Ficou definido que, neste primeiro ano de vigência, apenas 5% das 600.000 urnas teriam o novo aparato. “É uma loucura completa, tanto o projeto como fazer um investimento desse tamanho para um retorno ao passado”, disse a EXAME um antigo integrante do TSE.

O discurso conspiratório “contra as instituições” de Bolsonaro e alguns aliados prejudica o debate. Na semana passada, a única empresa que restou na licitação de impressoras para urnas largou o pleito. Como a primeira colocada foi reprovada por testes do TSE, não há ninguém para implementar o voto impresso e a proposta corre o risco de adiamento.

O deputado, segundo colocado nas pesquisas de intenção de votos para presidente, não tardou em fazer acusações. “Essa ação, no mínimo suspeita entre TSE e MP para derrubar o voto impresso, fará com que o sistema eleja o futuro presidente do Brasil em outubro”, disse em post do Facebook, questionando tanto a ação de Dodge como a escolha da empresa que prestará o serviço. “O Datafolha, manipulando os números, dará credibilidade à fraude”.

Antes, em 2015, Bolsonaro chegou a dizer que o PT era responsável por fraudes para se manter no poder e era necessário implementar o voto impresso já nas eleições de 2016. Não explicou como o partido perdeu 60% das suas prefeituras nas eleições municipais daquele ano — nem como ele foi eleito como deputado federal mais votado do Rio de Janeiro. Procurado por meio de sua assessoria, o deputado não deu entrevista.

Os argumentos de lado a lado 

No Judiciário, a opinião de que o voto impresso é um retrocesso é praticamente unânime. “A concepção da urna eletrônica foi acabar com a intervenção humana. A intervenção humana não deixa rastros. A intervenção tecnológica deixa rastro e é possível de ser auditado”, disse Dias Toffoli, então presidente do TSE em 2015, quando o veto presidencial foi derrubado. Gilmar Mendes, que ocupou a Presidência do TSE até este mês chegou a dizer que “num momento de entressafra em termos orçamentários, isso não é ideal”.

O novo presidente do TSE, Luiz Fux, ainda se mantém quieto com relação ao assunto. Na quarta passada, ele se reuniu com presidentes dos Tribunais Regionais Eleitorais para debater as eleições, mas deixou claro que aguarda parecer do Supremo a respeito da ação movida por Dodge. “Sou absolutamente convencida da segurança da urna e do voto eletrônico. É a melhor opção para o Brasil e será para o mundo”, diz a EXAME a ex-ministra do TSE Luciana Lóssio.

No passado, foram muitos os esforços para garantir a segurança do processo eleitoral. Em agosto passado, o governo federal lançou mão da nota “Em 20 anos, urnas eletrônicas nunca foram fraudadas”, publicado no site institucional do governo, tentando rebater todas as teorias de quem desacredita na Justiça Eleitoral. “Os sistemas de segurança das urnas são postos à prova periodicamente por cidadãos e técnicos que não compõem os quadros do TSE em eventos de Testes Públicos de Segurança (TPS)”, diz o texto. “As máquinas ficam à disposição da população para que tentem violar a eficiência dos equipamentos. Dessa forma, o tribunal busca identificar falhas e corrigi-las antes das votações”.

É justamente dessas baterias de testes que saem os argumentos qualificados daqueles que defendem um processo de votação que não seja exclusivamente digital. Um dos principais críticos do software das urnas eletrônicas é Diego Aranha, doutor em ciência da computação e pesquisador de Segurança da Computação e Criptografia da Universidade Estadual de Campinas. Em 2012 e 2017, ele encontrou caminhos pelos quais a eleição poderia ser comprometida.

Em uma série de postagens no Twitter, o pesquisador descreveu os resultados como os “mais graves até aqui”, encontrados em quatro dias de tentativas de ataque ao software da urna. Além de arquivos que poderiam ser modificados arbitrariamente, sem autenticação de assinatura digital, o grupo de Aranha conseguiu rodar programas que poderiam manipular o funcionamento do programa que rege a votação. “Injetar programas estranhos para alterar o software de votação permite fazer absolutamente qualquer coisa, é apenas uma questão de tempo e dedicação”. Segundo o programador, em mais uma ou duas horas de teste, seria possível interferir com a contagem dos votos.

Em entrevista a EXAME, o professor da Unicamp explica que a quantidade de linhas de programação do software das urnas passa de 13 milhões, o que seria “humanamente impossível de auditar”. Uma preocupação, portanto, é de que um funcionário corrupto do próprio TSE possa alterar códigos e fazê-los imperceptíveis no meio de tanta informação. Algo assim poderia alterar os resultados de toda a eleição, no país inteiro, pois a alteração seria instalada em todas as urnas.

“Ao usar sistema puramente eletrônico de votação, todas as propriedades de segurança do sistema dependem do software de votação: a contagem correta dos votos, a proteção do sigilo do voto, tudo isso”, diz Aranha. “O voto impresso é a melhor maneira de produzir evidências de que a urna está se comportando de maneira correta durante a eleição, que é o que importa”.

Na comunidade acadêmica, ele não está sozinho. No livro O Mito da Urna, o professor de ciência da computação Jeroen van de Graaf, da Universidade Federal de Minas Gerais, discorre sobre os motivos pelos quais não confia no sistema do TSE. Os argumentos são parecidos aos de Aranha.

Procurado pela reportagem, o TSE não respondeu como faz esse compliance de sua área técnica. Em defesa, fontes do tribunal consultadas pela reportagem mencionam a “votação paralela” como melhor forma de conferência do sistema eletrônico. No dia da eleição, urnas aleatórias são retiradas das zonas comuns e passam por uma votação programada, com supervisão dos partidos políticos e autoridades. No fim do teste, o resultado do boletim que compila os resultados da simulação deve ser exatamente igual ao previsto. Até hoje, nenhuma tentativa registrou divergência. “Se houve alguma fraude, não imagino que teria sido divulgada, com transparência, uma nota de esclarecimento”, diz Aranha. “Há um enorme conflito de interesse em o TSE admitir algo assim, colocando em xeque o sistema de 20 anos aplicado às urnas eletrônicas”.

A essa altura do campeonato, não há meio termo: é confiar na Justiça Eleitoral ou embarcar na teoria da conspiração e topar gastar um pequeno rio de dinheiro em um sistema de conferência.

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