Artigo: Práticas anticompetitivas de apps de entrega aprofundam a crise
O aplicativo dominante tem poder de barganha junto aos estabelecimentos e consumidores. Daí a cobrar taxas mais altas de ambas as pontas não demora muito.
Thiago Lavado
Publicado em 12 de dezembro de 2020 às 08h00.
Última atualização em 17 de dezembro de 2020 às 08h31.
A economia digital atenuou o tombo na crise da covid-19. Embora 2020 deva registrar a maior recessão da história econômica brasileira, com um recuo estimado do PIB de 4,55%, a queda poderia ser muito maior não fossem as vendas online.
Porém, a concentração de alguns mercados digitais nas mãos de uma única plataforma, como o iFood , pode agravar a crise em vez de mitigá-la. Um mecanismo que deveria abrir oportunidades pode fechar o mercado se o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) não agir rápido.
O segmento de bares e restaurantes foi um dos mais afetados pela pandemia. Nem a retomada das atividades a partir de maio tem sido suficiente para reavivá-lo. Enquanto alguns setores, como o varejo eletrônico, acusaram rápida expansão, os serviços em geral apresentaram recuperação lenta, especialmente no caso das refeições fora do domicílio.
A situação é ainda mais dramática diante das incertezas do cenário econômico para 2021. As contas públicas em frangalhos impedem a prorrogação de programas de auxílio, o acesso ao crédito bancário para pequenas e médias empresas sempre foi e continuará sendo difícil em virtude da aversão ao risco, apesar dos avanços das vacinas, a imunização de parcela significativa da população só ocorrerá em meados do próximo ano, e os dados recentes do mundo e do Brasil apontam para o risco de uma segunda onda da pandemia.
Diante desse quadro de incertezas, novamente os serviços online serão fundamentais para evitar uma quebradeira. Segundo o IBGE, quase 40% das empresas com até 49 funcionários afetadas pelas restrições do isolamento social simplesmente faliram.
Não há nada de errado quando o crescimento de uma empresa reflete sua competência em prover serviços melhores e mais baratos. No caso dos aplicativos de delivery, isso pode ser reforçado por aquilo que, no jargão técnico, é chamado de externalidades de rede nessas plataformas e mercados de duas pontas. O fenômeno é simples: os usuários aderem ao app ao perceberem que podem acessar facilmente vários estabelecimentos de sua preferência; estes, por sua vez, são atraídos pelo fato de poderem servir a um grande número de consumidores.
Até aí o xerife da concorrência não precisa agir. A sociedade deseja que o sucesso de algumas empresas de tecnologia seja emulado por outras que tentarão trazer mais e melhores inovações em benefício do consumidor e da economia como um todo.
O problema reside quando a empresa dominante, neste caso o Ifood, lança mão de artifícios anticoncorrenciais para eliminar os concorrentes - atuais e potenciais. Isso ocorre quando o líder do mercado adquire toda e qualquer startup que possa representar uma ameaça e faz contrato de exclusividade de forma a exercer controle sobre o usuário final nos momentos de consumo.
A compra do Instagram pelo Facebook em 2012 constitui exemplo icônico. Embora, naquele momento, as autoridades de concorrência não tivessem proibido a operação, muitas outras admitem que o controle foi falho nesse caso ao inibir a rivalidade entre duas redes sociais, em vez de uma.
No Brasil, o Ifood adquiriu recentemente várias startups que atuavam no mesmo segmento, mas que não foram objeto de um procedimento ordinário no CADE por não apresentarem os requisitos legais para tanto. Não é por acaso que o órgão tem feito um acompanhamento desse mercado. A exemplo de outras grandes empresas de tecnologia, o próprio Ifood já foi oficiado pelo CADE para apresentar as aquisições realizadas nos últimos anos.
Os patamares de faturamento convencionalmente utilizados para obrigar um exame de concentração pela autoridade tornam-se obsoletos diante da economia digital. Uma pequena startup pode ser a líder do mercado em menos de cinco anos. Se for abocanhada pelo dominante, a sociedade nunca terá os mesmos benefícios da inovação. Se, em 2000, a Blockbuster tivesse adquirido por 50 milhões de dólares a Netflix, que hoje vale cerca de 180 bilhões de dólares, talvez a revolução do streaming tivesse demorado mais para transformar o mundo do entretenimento.
Mas o abuso não para por aí. Além de engolir empreendimentos promissores, a empresa dominante pode limitar o acesso de concorrentes ao mercado mediante expedientes contratuais. Pode, como tem feito o Ifood, impor a exclusividade. Restaurantes, já combalidos pela crise, não têm outra alternativa se não operar exclusivamente com a plataforma dominante. Se descumprirem, são penalizados com multas ou, o que às vezes é pior, podem ser escanteados na tela de procura do consumidor.
O usuário “escolhe” a plataforma porque é o único caminho para encontrar seu restaurante preferido. O aplicativo dominante tem agora grande poder de barganha junto aos estabelecimentos e ao consumidor. Daí a cobrar taxas mais altas de ambas as pontas do mercado não demora muito.
Perde o consumidor, que paga mais caro e tem menos alternativas. Perde o segmento de bares e restaurantes, que pagam taxas mais altas para agarrar sua tábua de salvação em meio a uma crise tão severa. Perde o mercado, na medida em que os concorrentes do Ifood, que não conseguem criar uma massa crítica na sua base de restaurantes que atraia demanda tanto de consumidores quanto de outros restaurantes. Perde a sociedade em bem-estar, com serviços mais caros e piores, e mercados mais concentrados.
Os órgãos de investigação na União Europeia e nos Estados Unidos já acordaram para o risco do controle de mercado pelas empresas de tecnologia. Nos EUA, o rigor das autoridades aumentou mesmo sob o governo Donald Trump e deve ser ainda maior no do sucessor Joe Biden. É sintomática a recente abertura de inquérito contra o Google que investiga possível uso de dados dos consumidores de forma a prejudicar concorrentes e fechar o mercado.
As líderes em tecnologia devem ter toda a liberdade de inovar. Porém, uma vez tendo sido bem sucedidas, não podem sufocar a criatividade empreendedora nem a inovação de seus potenciais concorrentes sob pena de emperrar o motor do desenvolvimento econômico. E, no caso do mercado de apps de delivery no Brasil atual, aprofundar a maior crise da história na nova economia brasileira.
*Gesner Oliveira é ex-presidente do Cade, professor da Fundação Getúlio Vargas e sócio da GO Associados