O Google e o Facebook ouvem suas conversas?
A sensação de que estão bisbilhotando nossas conversas e empurrando propaganda com base no que falamos é crescente entre usuários de internet
Thiago Lavado
Publicado em 11 de outubro de 2017 às 14h40.
Última atualização em 11 de outubro de 2017 às 15h31.
Uma pesquisa no buscador Google com a pergunta, em inglês, “o Facebook está nos escutando?” dá mais de 70 milhões de resultados e diversos tutoriais sobre desligar microfones e evitar vigilância. Quando a pergunta muda para “o Google está nos escutando?”, o resultado são 58 milhões de resultados. Os números mostram uma das maiores inquietações de usuários de internet mundo afora: a sensação de que as maiores empresas de tecnologia do planeta estão bisbilhotando nossas conversas e empurrando propaganda com base no que falamos com amigos e parentes.
A pesquisa no Google também dá como resultado uma infindável série de relatos de pessoas que afirmam que nunca pesquisaram, curtiram ou visitaram páginas relacionadas a um assunto e, após conversar com alguém sobre o tema, começaram a ser bombardeadas com publicidade. O site especializado em publicidade Brainstorm9 até criou um termo para classificar a suposta audição do Facebook, o Cumbucagate — um “escândalo” que teria acontecido após um dos apresentadores do podcast Braincast ter recebido propagandas de cumbucas na rede social Instagram (plataforma que pertence ao Facebook) após falar sobre cumbucas em sua casa.
Afinal, o aplicativo do Facebook e os sistemas operacionais do Google estão nos ouvindo? Ou é apenas lenda urbana?
Google e Facebook têm estimados 50% de todo o mercado de publicidade digital no mundo, com nenhum outro player passando de 5% da fatia de mercado. Em um universo onde a informação sobre o usuário é diretamente ligada à capacidade de direcionar a publicidade correta, e faturar em cima disso, converter as conversas das pessoas em informação publicitária de maneira bem sucedida seria extremamente lucrativo.
Mas nos escutar exigiria um pressuposto tecnológico: a existência de capacidade técnica para ouvir, interpretar, filtrar palavras chaves, classificar e enviar as conversas pela rede (o que inclui usar o pacote de dados de celular ou a rede Wi-Fi). Tudo isso com as cerca de 2 bilhões de pessoas que compõem a plataforma do Facebook ou os 2 bilhões que têm o sistema operacional Android, do Google. O algoritmo de audição ainda teria de entender português, uma língua falada por não mais de 300 de milhões de pessoas.
Fatemeh Khatibloo, analista da companhia de pesquisas digitais Forrester, uma das mais respeitadas dos Estados Unidos, realizou um estudo sobre o caso depois de ouvir de mais de 20 colegas que conversas feitas na vida real — em inglês — aparentavam gerar anúncios no Facebook. A conclusão certamente não é a esperada dos adeptos de teorias conspiratórias. “O processo de filtrar linguagem natural já é difícil na melhor das circunstâncias; adicionando limitações de dados e barulho de fundo, isso se torna material para ficção científica”, escreveu ela em artigo na revista Forbes.
Khatibloo levanta outro empecilho para que aplicativos e aparelhos nos ouçam secretamente. Cerca de 24% da população adulta americana já baixou um bloqueador de propaganda em seus navegadores de internet e a descoberta de escutas ilegais colocaria o mercado de publicidade digital em risco, segundo Khatibloo. “O ambiente de marketing digital só pode aguentar um determinado número de violações de privacidade antes de entrar em colapso”, diz.
O risco para as empresas
Se o público poderia ficar incomodado com um aumento da vigilância, os anunciantes também podem virar vidraça. Para o presidente do grupo de mídia Dentsu Aegis Network no Brasil, Abel Reis, a publicidade é baseada nos dados e registros de atividades que são coletados somente com explícita autorização. “Eu duvido 100% que uma grande companhia aceitasse fazer uso de dados captados sem autorização e ciência das pessoas. Os anunciantes têm cuidados com escândalos e demandam segurança e legitimidade na captação de dados”, afirma.
EXAME procurou o Facebook, que negou quaisquer violações de sua política de dados, afirmou que esse é um boato de internet e disse que qualquer usuário pode ver o motivo pelo qual está recebendo uma propaganda específica. “O Facebook não utiliza o microfone do telefone das pessoas para informar sobre anúncios ou mudar o feed de notícias. Mostramos anúncios com base nos interesses das pessoas e outras informações de perfil — não com base no que elas estão falando. Apenas acessamos o microfone dos telefones das pessoas quando elas estão utilizando ativamente alguma ferramenta específica que requer áudio e somente quando autorizam a utilização, como por exemplo gravação de vídeos”, afirmou a companhia em nota.
O Google informou que não utiliza o áudio dos usuários para direcionar publicidade, apenas para aprimorar o funcionamento do assistente de voz. “As entradas de áudio e voz, por exemplo, o comando Ok Google são armazenados para ajudar e melhorar no reconhecimento de voz e de fala do usuário. Para nós, é fundamental que o usuário esteja no controle e tenha transparência sobre os dados gerados ao utilizar nossos produtos e serviços.”
De acordo com Frederico Silva, diretor da divisão latino-americana de engenharia de software da fabricante de processadores Qualcomm, uma das maiores do mundo, por uma questão de ganho de bateria os dispositivos selecionam palavras chaves a serem escutadas. “Nós criamos tecnologia para ajudar o usuário. É possível processar captação de áudio, mas os direitos e deveres sobre isso é de quem constrói a aplicação. Nós habilitamos o uso das ferramentas e fica a cargo das companhias fazer o melhor uso disso”, diz.
A Apple, fabricante do iPhone, atesta nos termos de uso de sua loja que “as funcionalidades de um app devem estar claras para todos os usuários finais”, caso contrário o desenvolvedor do aplicativo fica sujeito à exclusão da loja virtual. Contatada e questionada sobre a viabilidade técnica de seus celulares estarem nos escutando, a fabricante Samsung informou que “proteger a privacidade dos consumidores e a segurança dos nossos produtos é uma das principais prioridades da Samsung. Se encontrarmos um risco [à segurança do usuário], cuidamos disso imediatamente”.
O Google também informou que promove varreduras de segurança constantes em sua loja, a Google Play, para retirar do ar aplicativos que violem o código de conduta da empresa e que façam uso de informações sem autorização prévia do usuário.
Eles precisam te escutar?
O debate sobre privacidade é antigo e vai além das conversas faladas. Em julho de 2011, a gigante de tecnologia Microsoft realizou um congresso interno onde divulgou um vídeo chamado “Gmail Man”, uma cutucuda ao serviço de e-mail de um de seus principais concorrentes, o Google. O vídeo brincava com um carteiro fictício, que lia a correspondência das pessoas. O Gmail Man era invasivo, procurava por palavras chaves e oferecia produtos com base no que as pessoas enviavam umas às outras. No final, a Microsoft terminava com uma espécie de advertência: “Seu e-mail é seu negócio. O Google o faz o negócio dele”. O intuito era propagandear o Office 365, serviço de e-mails da companhia (que seria, pela lógica, menos bisbilhoteiro).
O vídeo vazou e virou um pequeno fenômeno em círculos da internet que defendiam privacidade digital à época. Algum tempo depois, a Microsoft abraçou a causa e publicou a íntegra em suas páginas no Facebook, Twitter e YouTube.
O que em 2011 era visto como uma ofensa aos direitos de privacidade dos usuários, digno de ser apontado como algo nocivo em um vídeo de uma das maiores companhias do setor, hoje não é mais do que o normal do mercado de tecnologia. O tempo todo plataformas como Google, Facebook, YouTube, Instagram, Messenger e outros, com cookies do navegador e pixels em websites, monitoram nossas preferências, cruzam nossos dados e nos categorizam em clusters para nos vender propagandas direcionadas.
Estamos sendo vigiados, portanto, e isso, segundo as companhias e especialistas ouvidos pela reportagem, é possível mesmo sem uma rádio-escuta constante. O alento é que podemos monitorar quem nos monitora. Se entrarmos no site da agregadora de dados Navegg, empresa líder na captação de dados para publicidade digital na América Latina, é possível ver nosso perfil pessoal, baseado nos cookies que o computador ou o celular de acesso registrou. O agregador consegue juntar principais interesses, intenções de compra, gênero, faixa etária, estado civil, classe social.
O Google também disponibiliza todas as atividades de seus usuários para que eles possam escolher se querem editar, deletar ou cessar a coleta de informações. Na seção “Controle de Atividade” é possível ver as informações que a empresa coletou de nossa localização, histórico de buscas, de acesso a sites (pelo uso do navegador Chrome) e até das gravações que são guardadas quando usamos o comando de voz “Ok, Google” no celular. De acordo com a empresa, embora os áudios não sejam usados para direcionamento comercial, a geolocalização e os dados demográficos podem, sim, ser usados para este fim.
No site do Facebook, na seção de preferências de ads (facebook.com/ads/preferences/), é possível ver todos os interesses que a empresa supõe que você tenha, desde mídia a pessoas, passando por comidas, estilo de vida, esportes. O Facebook, que exige registro para usar, consegue ver qual é o aparelho de celular e tablet que o usuário tem, se mora longe da família, a qual geração pertence e até qual é a categoria de bens de consumo que tem em casa.
Segundo Adriano Brandão, diretor e fundador da Navegg, é improvável que um modelo como o do “cumbucagate” seja viável. “Temos algumas regras de utilização, como não coletar dados sensíveis a raça, orientação sexual, hábitos sexuais, discurso de ódio, saúde física e financeira, análise de crédito, seleção de recursos humanos. Também há a questão de autonomia do usuário e possibilitamos a desautorização da coleta de cookies, bem como a edição das informações coletadas”, disse.
De acordo com desenvolvedores e programadores consultados pela reportagem, o Facebook e o Google têm um certo poder preditivo, com base nas informações que nós demos para as companhias em troca de usarmos suas plataformas. De posse dessas informações, do registro dos sites que visitamos, das páginas que curtimos, das fotos que gostamos no Instagram, de aonde fomos e demos check-in, de quem está conectado na mesma rede que nós, essas companhias conseguem prever com relativa precisão que tipo de anúncio nos interessa naquele momento.
“Na prática, as pessoas não ligam para privacidade. Elas são bastante entusiastas de mídias sociais, do Instagram, do Facebook. Ninguém lê os termos de serviço que somos obrigados aceitar, usamos a tecnologia para pagar contas, para buscar notícias. Para participar na sociedade contemporânea somos ‘forçados’ a jogar pelas regras e aceitar os termos”, afirma o professor Michael Madary, da Universidade Tulane, especialista em filosofia da mente e ética de tecnologia.
No livro 1984, o escritor George Orwell escreveu sobre as televisões que nos escutariam no futuro e sobre como a vigilância seria uma constante na vida social. Ao seu lado, Aldous Huxley, em Admirável Mundo Novo, falou sobre como nos entregaríamos aos prazeres da tecnologia, “falhando em dar conta de nosso imenso apetite por distrações”.
A distopia já é real. Mas, para começarmos a ter nossas vozes compreendidas, a tecnologia e o poder de analisar e processar dados precisam evoluir um bocado. Quando esse dia chegar, muitos de nós provavelmente aceitaremos os termos de bom grado. Até lá, você pode falar à vontade ao lado do seu telefone.