Como o Brasil forma profissionais de tecnologia?
Dinamismo do setor impulsiona modelos educacionais que vão além das faculdades
Ariane Alves
Publicado em 6 de dezembro de 2018 às 05h55.
Última atualização em 6 de dezembro de 2018 às 05h55.
São Paulo - O modelo tradicional dos cursos de tecnologia pode deixar de existir em breve. Escolas técnicas ou faculdades, com duração de três a cinco anos e com muito conteúdo teórico não parecem dar conta da demanda urgente do mercado por profissionais com conhecimento sobre as linguagens e ferramentas necessárias para aplicação imediata, abrindo cada vez mais espaço para cursos online e bootcamps.
De acordo com um estudo feito pela IDC encomendado pela Cisco em 2016, o Brasil terá um déficit de 161,5 mil vagas de tecnologia até 2019, possuindo a maior lacuna entre os dez países avaliados na América Latina. O número representa 36% do mercado na área.
“O alto potencial do mercado interno impulsiona a crescente demanda de serviços em todos os segmentos, principalmente em empresas de médio porte. Muitas empresas que atuam em serviços de data center estabeleceram sua operação no país, devido às altas tarifas de produtos importados e às regulamentações na nuvem para a permanência física das informações no Brasil. Isso impulsionou a demanda adicional de profissionais, o que ampliou a lacuna de habilidades”, afirma o relatório.
Como o Brasil se prepara para suprir essa demanda? Além do autodidatismo, incentivado pela alta oferta de cursos e formações em áreas de tecnologia feitos totalmente online, também se popularizam os bootcamps, programas intensivos que priorizam as habilidades mais desejadas pelo mercado de trabalho. O curso prático pode ser de apenas um fim de semana ou de seis meses de duração. As formações mais procuradas são o desenvolvimento full-stack (que abrange tanto a parte visual como a implementação de um sistema, ou seja, front e back end) e a área de ciência de dados.
Pelo caráter resumido e foco em formar um currículo facilmente aplicável para o mercado, esse tipo de curso costuma ser de alto custo. A formação de dois meses em Desenvolvimento Web Full Stack pela Mastertech, por exemplo, custa 11 mil reais. O programa de nove semanas da LeWagon, também em full-stack, tem o custo de 17.500 reais. Mais curto, o programa Inteligência Artificial na Prática, oferecido pelo Data Bootcamp, tem duração de 30 horas e sai por 3.000 reais aos interessados. Em comparação, um curso de bacharelado em ciência da computação na Impacta sai por 41.904 reais (873 reais ao mês, ao longo de quatro anos) e um tecnólogo análise e desenvolvimento de sistemas na Fiap custa 32.880 reais (1.370,00 reais ao longo de dois anos).
Iniciativas querem contratação em curto prazo
Atentas ao interesse crescente dos brasileiros por ocupar as vagas na área de tecnologia, algumas iniciativas de caráter social oferecem formação gratuita ou com um valor mínimo para o custeio das operações, como é o caso da brasileira {reprograma} e da Laboratória, que atua no México, Chile, Peru, e acaba de formar sua primeira turma no Brasil. Ambas atuam para incentivar a entrada de mais mulheres na área de tecnologia.
O diferencial desses projetos em relação a quem pode pagar caro pelos cursos normalmente oferecidos é a seleção, que busca admitir alunos com grande potencial de desenvolvimento ao longo do curso e de rápida entrada no mercado de trabalho. Ao fim do período de estudo do {reprograma} e da Laboratória, as alunas estão aptas para serem admitidas rapidamente nas vagas oferecidas para desenvolvedores(as) de nível júnior.
No último dia 8, a Laboratória encerrou seu bootcamp de seis meses com o Talent Fest, um hackaton de 36 horas feito em parceria com 11 empresas de tecnologia. Divididas em times, 50 alunas tiveram que resolver desafios propostos por empresas como IBM, Bradesco, Loggi e Accenture, que enviaram representantes de RH e da equipe de desenvolvimento para acompanhar o desempenho e avaliar a possibilidade de contratação das participantes que se saíssem melhor.
“Nosso objetivo é conseguir que elas estejam empregadas em menos de três meses. Normalmente conseguimos”, afirma Herman Marin, cofundador e chefe da divisão de dados (Chief Data Officer) da Laboratória. Atualmente, 90% das alunas formadas no programa, que existe desde 2014, estão empregadas na área de tecnologia. O modelo de negócios da iniciativa envolve o retorno de 10% do salário líquido mensal das alunas durante os primeiros 24 meses que passam no novo emprego.
A iniciativa se beneficia do quadro de expansão do mercado de tecnologia na América Latina e busca adaptar seu currículo para a demanda atual do mercado. “Normalmente são quatro tipos de empresas que contratam nossas alunas. As agências digitais, ou agências de marketing, as startups de tecnologia, as fábricas de software, como a IBM e a Accenture, e as multinacionais que estão em processo de transformação digital, ou seja, empresas de setores tradicionais que não são de tecnologia, como bancos, seguradoras e empresas de varejo” explica a sócia e vice-presidente de expansão da Laboratória, Gabriela Rocha.
Currículo zerado
Um tipo de público alvo dos bootcamps são as pessoas que desejam migrar a carreira para a área de tecnologia, incentivados pelo número crescente de vagas e pela crise econômica brasileira, que viu os índices de desemprego aumentar em áreas tradicionais. Para absorver esse perfil, os bootcamps integram atividades práticas e projetos maiores à grade curricular, visando a criação de um portfólio que possibilite aos ingressantes na área reformular o currículo com um conteúdo atrativo.
Com isso em mente, a Laboratória ressalta que não está interessada no currículo anterior das alunas. “Nos preocupamos em não focar no passado educativo de nossas estudantes ou em sua idade, e sim se elas realmente têm potencial e talento. É isso que nos ajuda a entender se essa pessoa tem a possibilidade de ter exitosa em seu futuro na tecnologia”, afirma Marin. A turma brasileira formada ao longo do primeiro semestre de 2018 teve estudantes de 19 a 45 anos, com uma faixa média de 26 anos. Segundo os organizadores, aproximadamente um terço da turma possuía formação superior em outras áreas.
A Laboratória procura também alinhar sua visão à mudança de mentalidade das novas empresas de tecnologia, priorizando habilidades sociais das candidatas que as permitam atuar em uma área que está em constante adaptação.
“É um olhar muito diferente para o que é o talento, porque a gente acredita que nessa população de jovens da América Latina existem milhões de mulheres com muito potencial e muita vontade e, portanto, talento, que não estão sendo considerados”, afirma Rocha. “Nosso processo seletivo foca muito em medir esses elementos. Como a gente pode concluir se essa mulher, através das suas habilidades cognitivas e socioemocionais demonstra potencial para aprender e ter sucesso”.
Presente no hackaton, a empresa de soluções na área de ciência de dados DrumWave confirma a tendência de apoio à formação que as empresas de tecnologia oferecem. “Nossa ideia ao participar do evento é que a gente consiga ver pessoas que têm um potencial de aprendizagem, de adquirir novos conhecimentos para que a gente possa desenvolver lá dentro”, disse a EXAME o chefe de projetos, Jose Marconi Lima.
A equipe do Laboratória afirmou posteriormente que 30 alunas foram empregadas nas 48 horas posteriores ao hackaton.
Dinamismo da área atrai profissionais de meios em crise
A entrada na área de tecnologia é vista como um desafio positivo e motivador por quem se arrisca, principalmente no caso da transição de carreira. Depois de atuar por quatro anos com o mercado editorial, Milena Martins, graduada em Letras e participante da quinta turma do {reprograma}, escolheu a área como solução para a insatisfação da qual vinha se queixando. “Sentia falta da inovação, sem contar a grande crise que o mercado vem enfrentando há alguns anos, o que tornava tudo mais difícil. Tínhamos recursos muito escassos para investir em mudanças, e isso gerou uma frustração em mim”, explica Martins. “Queria estar em uma área que absorvesse essa minha inquietação de ter que estudar e trazer novas ideias sempre, e isso me incentivou a procurar a área de tecnologia”.
Ao final do bootcamp, em junho de 2018, Milena passou por uma maratona de entrevistas com 22 empresas, método escolhido pela organização para apresentar as profissionais ao mercado brasileiro. Contratada como trainee de desenvolvimento pela startup Creditas, onde afirma ter encontrado uma equipe disponível para dar o suporte necessário a seu aprendizado. “Todos estão sempre prontos para ouvir minhas ideias, e eu estou sempre envolvida nos projetos”, diz. A empresa incentiva a equipe a participar de cursos e eventos da área, confirmando a postura de evolução no aprendizado inerente às carreiras de tecnologia.
Em desenvolvimento, o novo modelo educacional de cursos rápidos e práticos promete ser a ponte entre mão de obra e qualificação na América Latina, região que ainda busca se integrar à dinâmica dos grandes polos de tecnologia mundiais.