Adeus, filmadoras?
As novas câmeras fotográficas, capazes de gravar filmes em alta definição, estão provocando uma revolução tecnológica e artística no mundo do cinema
Da Redação
Publicado em 10 de outubro de 2010 às 04h10.
A tecnologia da filmagem em três dimensões é vista como uma revolução no cinema, e todos apontam o sucesso estrondoso da ficção científica Avatar como um indicador do que vem por aí. O blockbuster do diretor James Cameron custou aproximadamente 250 milhões de dólares para ser produzido e só pôde ser realizado graças a equipamentos sofisticadíssimos. Mas existe outra mudança tecnológica importante em curso no mundo do cinema - no extremo oposto do mercado. Os novos modelos de câmeras fotográficas digitais agora também são capazes de registrar, com ótima qualidade, imagens em movimento. Mesmo os diretores mais exigentes, que sempre fizeram questão de usar películas em seus filmes, começaram a perceber que a perda de qualidade na captação da imagem com câmeras fotográficas digitais pode ser facilmente compensada com as possibilidades de filmagens com um equipamento menor, mais leve, discreto e mais fácil de manipular - e, é claro, muito mais barato. "As câmeras fotográficas começaram a ser utilizadas em projetos pequenos, como videoclipes e comerciais, mas atualmente já fazem parte do dia a dia até mesmo de longas-metragens", diz Paulo Schmidt, um dos sócios do grupo brasileiro INK, dono das produtoras Margarida, Academia de Filmes e Colmeia.
Schmidt fala por experiência própria. O filme Amanhã Nunca Mais, estrelado por Lázaro Ramos e que deve chegar aos cinemas no segundo semestre, tem cerca de 5% de suas cenas gravadas com câmeras fotográficas. Os equipamentos foram usados em condições consideradas arriscadas pela equipe. Caso houvesse algum acidente, o prejuízo seria menor. Mas as câmeras fotográficas não entram em ação apenas em situações desse tipo. Há centenas de curtas, videoclipes e comerciais de TV - exibidos em horário nobre - inteiramente gravados com equipamentos produzidos pensando em fotógrafos, não cinegrafistas. O quadro Super Sincero, exibido no Fantástico, é um deles. Peças publicitárias de grandes anunciantes, como Petrobras, Sky e Unilever, são outros exemplos da mudança tecnológica que está acontecendo nos sets de filmagem. "Hoje uso câmeras fotográficas em praticamente todos os meus trabalhos", diz Fábio Mendonça, diretor de filmes da O2, uma das maiores produtoras do país.
O primeiro movimento dessa revolução tecnológica aconteceu há mais de uma década, quando as filmadoras digitais tomaram de vez o lugar dos rolos de filme em quase todo tipo de produção (exceção feita aos projetos de grande orçamento de Hollywood). A razão é muito simples: as câmeras de filme têm um custo exorbitante, e seu aluguel é cobrado por dia. Depois vêm os gastos com a compra e a revelação dos filmes, mais os técnicos especializados em operar esses equipamentos. Existe um mercado importante para filmadoras digitais de ponta, como os modelos desenvolvidos pela Red Digital Cinema, empresa fundada pelo americano Jim Jannard, criador da marca de óculos Oakley. Filmes inteiros de Hollywood já foram gravados com as câmeras Red One, como Che, de Steven Soderbergh. Ainda assim, o investimento é relativamente alto: só o corpo da Red One não sai por menos de 17 000 dólares. A ascensão de nomes como Canon e Nikon, tradicionalmente associados à fotografia, representa uma ruptura ainda mais aguda nas artes visuais. Com um investimento de 10 000 dólares, é possível comprar uma câmera fotográfica e um jogo completo de lentes. O conjunto, como se pode comprovar assistindo aos vídeos que circulam pela web, é capaz de produzir imagens de excelente qualidade. "Quem assiste dificilmente nota a diferença entre o material captado com equipamento fotográfico e o de câmeras profissionais", afirma David Barkan, diretor de fotografia do curta One, selecionado para o festival de Roterdã.
A velocidade da adoção das câmeras fotográficas no cinema é surpreendente. A primeira reflex a permitir a gravação de imagens em alta definição foi a EOS 5D Mark II, lançada em setembro de 2008. Reflex é o nome que se dá às câmeras de lentes intercambiáveis usadas por fotojornalistas mundo afora. Esse é um detalhe essencial, pois as lentes são um componente vital na qualidade da imagem. Tanto Canon como Nikon têm um vasto arsenal de lentes, lançadas durante décadas. Com elas, é possível reproduzir muitas das características visuais das imagens que se veem no cinema. Outra vantagem é que elas também contam com os recursos avançados da tecnologia digital. Os sensores que capturam as imagens são maiores que os das filmadoras digitais e trabalham em condições de pouca luminosidade. Ou seja, os custos com iluminação - e com as respectivas equipes - também podem ser reduzidos. E, como o preço do armazenamento de bits cai a cada dia que passa, é possível filmar uma mesma cena várias vezes, de vários ângulos diferentes, sem que o orçamento corra o risco de estourar. Uma das únicas desvantagens de usar Canons no set de filmagem ainda é o manuseio, pois elas não foram criadas com essa finalidade. Mas mesmo esse obstáculo está sendo superado. Já começam a surgir empresas especializadas na criação de acessórios de adaptação, como tripés e sistemas de steadycam, especialmente para as máquinas fotográficas.
A novidade também está provocando mudanças importantes no lado do cinema e no da fotografia. A primeira é abrir as portas para uma geração de "cineastas de baixo custo". Filmadoras digitais baratas existem há muito tempo, mas a qualidade das imagens obtidas com os equipamentos de foto é muito superior. Sites de vídeo, como o Vimeo, estão se tornando polos online para a divulgação desses novos videomakers. O trabalho dos fotógrafos também vai mudar. "Ninguém vai mais poder dizer que é só fotojornalista", diz João Wainer, fotógrafo que hoje costuma dizer que trabalha com imagens. Um dos cenários possíveis é imaginar que numa cobertura jornalística tradicional, além das imagens para a primeira página do jornal, o fotorrepórter também tenha de produzir imagens para a web. E as implicações vão ainda mais longe. "Imagine a Copa do Mundo. Dezenas de fotógrafos estão na beira do campo. Teoricamente eles estão fazendo fotos, mas quem garante que não vão surgir também filmes captados com aquelas câmeras?", pergunta Wainer. É uma questão milionária, afinal de contas os direitos de imagens televisivas de um evento como a Copa são vendidos a peso de ouro pela Fifa. Por outro lado, é possível imaginar que as emissoras de TV usem filmadoras digitais de última geração e simplesmente separem alguns frames para uso em jornais e revistas - ou seja, os fotógrafos podem ser dispensáveis. A história da convergência entre o mundo da fotografia e o da imagem em movimento vai render boas fotos - ou será um bom filme?