Revista Exame

Na sufocada economia da Venezuela, empresas lutam para sobreviver

Sem acesso a dólares nem a matéria-prima, as empresas privadas que restam na Venezuela lutam para sobreviver

Posto de combustível da PDVSA, em Caracas: sem dinheiro, a população paga a gasolina com o que pode, e quando pode | Marco Bello/Reuters /

Posto de combustível da PDVSA, em Caracas: sem dinheiro, a população paga a gasolina com o que pode, e quando pode | Marco Bello/Reuters /

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Da Redação

Publicado em 28 de março de 2019 às 05h32.

Última atualização em 25 de julho de 2019 às 15h57.

sol ainda estava alto no final de uma tarde especialmente quente deste “inverno” caribenho quando o taxista Yohanson Hernandez se deu conta de que não tinha dinheiro na carteira. Ainda assim ele seguiu abastecendo seu Chery QQ em um posto de gasolina da PDVSA no bairro de classe média alta de Altamira, em Caracas. O frentista mal fechara o tanque quando Hernandez colocou a cabeça para fora da janela para explicar que, desta vez, não ia poder pagar pelos 40 litros de gasolina de alta octanagem — a de maior qualidade possível — com que abastecera seu pequeno carro chinês. “Mira, pana, não tenho nada de dinheiro, na próxima eu deixo um café para você”, disse, quase aos gritos, sem temor algum de ser escutado por outros motoristas na fila. “Tranquilo, hermano, não tem problema”, respondeu o funcionário da estatal venezuelana de petróleo com um sorriso largo no rosto.

Já faz mais de ano que Hernandez não tem a menor ideia de quanto vale 1 litro de gasolina. Ele, como todos os que abastecem seus carros, caminhões, motos ou qualquer veículo, remuneram os frentistas com os poucos trocados que têm. E quando têm. “Isso é uma loucura. A gasolina é de graça há mais de um ano, pelo menos”, disse, aos risos, completando que armazena mais de 200 litros do combustível num galpão de seu pai. “Depois do apagão, segui o conselho do meu cunhado e estou estocando o que posso: comida, água, gasolina”, afirmou, pouco antes de pedir que a corrida fosse paga em dólares, e não em bolívares, a moeda do país.

O blecaute que deixou a Venezuela às escuras durante seis dias em março foi um pequeno ensaio do que poderá ocorrer se o país entrar em um colapso absoluto. Por quase uma semana, o abastecimento de água ficou suspenso, as telecomunicações deixaram de funcionar e a oferta de combustível chegou perto de zero. Em cidades como Maracaibo, quase na fronteira com a Colômbia, foram registrados saques generalizados. Em Caracas, moradores desesperados foram para as redes pluviais, onde o esgoto da cidade é despejado, coletar água. De lá para cá, os blecautes continuaram se repetindo, como o que ocorreu em 25 de março, deixando metade do país sem luz novamente. “É um cenário sombrio, mas que tende a se repetir se o governo não encontrar uma nova fonte de renda”, afirma o economista Guillermo Arcay, da consultoria EcoAnalítica.

Desde que os Estados Unidos impuseram sanções agressivas contra a PDVSA e sua subsidiária americana, a Citgo, o governo de Nicolás Maduro tem buscado maneiras de trazer dinheiro para os cofres do país. A Venezuela dependia de forma profunda das compras americanas para conseguir sobreviver, ainda que a duras penas. Só em 2018, 75% dos quase 20 bilhões de dólares que entraram no país vieram da venda de petróleo aos Estados Unidos. “Vai ser muito difícil para eles conseguir encontrar compradores desse petróleo, pois o mercado está bem abastecido”, diz o economista Víctor Álvarez, um ex-ministro de Hugo Chávez que se transformou em um duro crítico do chavismo. “Teremos dias muito duros pela frente, com forte desabastecimento e uma emigração sem precedentes.”

A suspensão das vendas de petróleo aos Estados Unidos já teve um efeito brutal no caixa do país, e a tendência é de uma crise de desabastecimento ainda mais profunda. Hoje, quase 80% das importações da Venezuela são feitas pelo Estado com os dólares provenientes da venda de petróleo. É com esse dinheiro que o governo adquire comida, itens de higiene e as famosas bolsas Clap, espécie de cesta básica baseada em carboidrato, óleos e açúcar, que alimenta 70% da população.

Nessa derrocada da economia venezuelana, o setor privado vai se esvaindo. Desde 2002, quando sofreu um golpe de Estado fracassado, Hugo Chávez atribuía aos empresários do país, com razão, parte da responsabilidade pela tentativa de apeá-lo do poder. A cisão entre o governo e o setor produtivo se aprofundou com a queda dos preços do petróleo de 2008 em diante. Chávez iniciou uma onda de ataques ao setor produtivo que ajudou a ampliar de forma sensível as sucessivas crises de abastecimento que a Venezuela enfrentaria nos anos seguintes.

O resultado dessa guerra declarada gerou números impressionantes. De acordo com o Conselho Nacional de Comércio da Venezuela, mais de 500.000 empresas de todos os portes encerraram as atividades de 2008 a 2018. No setor industrial, o número de empresas passou de 13.000 para as atuais 2.500, e elas operam com apenas 17% da capacidade produtiva. Desde 2008, o governo venezuelano expropriou ou estatizou quase 500 empresas. De 74 companhias estatais no início dos anos 2000, o número saltou para cerca de 600. Em 60% delas, o principal administrador é um militar nomeado pelo governo. “Esse é, provavelmente, o maior caso de desindustrialização da história da América Latina”, diz Juan Pablo Olalquiaga, presidente da Confederação Venezuelana da Indústria — a Conindustria (leia entrevista abaixo).

UMA DISPUTA PELOS DÓLARES

O setor privado também foi vítima das políticas cambiais atabalhoadas dos governos de Chávez e Maduro, que insistiram por anos em controlar o fluxo de dólares no mercado e em manter a moeda americana artificialmente desvalorizada. Durante anos, a diferença entre o dólar ofertado de forma limitada aos exportadores e o dólar vendido no mercado paralelo era medida em milhares de vezes. “Com a queda dos preços do petróleo e a redução da entrada de dólares, o governo passou a restringir o volume de moeda estrangeira no mercado, impedindo que as multinacionais pudessem converter seus ganhos para a moeda americana”, diz o ex-ministro da Saúde da Venezuela e integrante da Sociedade Venezuelana de Saúde, o médico José Félix Olleta. “Boa parte da crise de medicamentos que o país- vive se explica por isso. As farmacêuticas que operavam aqui receberam um calote de mais de 5  bilhões de dólares porque o governo simplesmente não honrou os compromissos de converter os bolívares em dólares. Todas se foram.”

Não só elas. Com a crise cambial, dezenas de multinacionais de outros setores também deixaram o país. Sem poder acessar dólares no mercado interno, muitas empresas simplesmente não tinham mais matéria-prima para operar. Nos últimos anos, deixaram de produzir na Venezuela companhias como a montadora Ford, a fabricante de pneus Bridgestone e a Kimberly-Clark, de artigos de higiene, além de vários prestadores de serviço.

Hoje, as empresas venezuelanas ainda são responsáveis por cerca de 25% das importações do país, segundo cálculo da consultoria EcoAnalítica. Para isso, precisam acessar dólares no mercado negro, já que o governo simplesmente parou de ofertar a moeda. Depois de anos, o governo venezuelano optou por liberar o câmbio e hoje o preço oficial flutua no mesmo ritmo que o do mercado paralelo. Na prática, governo e setor privado disputam os poucos dólares que entram na Venezuela.

É com esse dinheiro, também, que o -país adquire insumos para manter sua produção de petróleo. “Veja, a situação é tão complexa que dois terços do que o governo importa são serviços e produtos ligados à indústria do petróleo, como a nafta, essencial para a extração do óleo venezuelano, que é extremamente pesado”, diz Arcay, da EcoAnalítica. “Não ter dinheiro para importar significa também não ter dinheiro para manter a única indústria que gera riquezas no país.”

A indústria petroleira venezuelana já vivia uma crise profunda bem antes das sanções americanas. Sem recursos para novos investimentos, com uma redução gradual de sua mão de obra qualificada e com o mercado externo bem abastecido, a Venezuela sofreu um dos maiores tombos na produção de petróleo da história da Organização dos Países Exportadores de Petróleo. Em apenas quatro anos, o país- viu sua produção decair de 2,7 milhões de barris para 1 milhão de barris por dia, volume registrado em fevereiro.

Os efeitos das sanções tornarão esses números ainda mais dramáticos ao longo do ano. De acordo com dados ainda não oficiais, a Venezuela reduziu sua produção para apenas 600.000 barris por dia no mês de março. Mais da metade desse petróleo é enviada à China e à Rússia como pagamentos de dívidas. “Sempre existem maneiras de contornar as sanções, Irã e Coreia do Norte estão aí para provar isso. O problema da Venezuela é que sem dólares não há comida”, diz Alisson Fedirka, analista da consultoria de risco Geopolitical Futures. “Uma grande questão é saber se a China e a Rússia vão atuar para evitar um colapso de um país que nada produz e precisa importar tudo.”

Para muitos analistas que acompanham a crise venezuelana de perto, o estrangula-mento financeiro e a crise humanitária que tende a se ampliar são os únicos elementos capazes de levar à queda do regime de Nicolás Maduro. “Há claramente uma aposta de convulsão social para uma mudança de regime”, diz o sociólogo Luis Vicente León, da consultoria DataAnalisis. Para ele, tanto o presidente americano, Donald Trump, quanto o autodeclarado presidente interino da Venezuela, Juan Guaidó, têm apostado num cenário ainda mais catastrófico para forçar uma ação concreta das Forças Armadas para derrubar Maduro.

Há exatos 30 anos, a Venezuela viveu situação semelhante sob o comando do ex-presidente Carlos Andrés Pérez. O país- estava endividado em decorrência de um desequilíbrio fiscal causado por altos subsídios e uma queda das receitas com a redução do preço do petróleo nos anos anteriores. Enfrentando uma estagflação (a combinação nefasta de recessão com inflação), Pérez adotou uma série de medidas para ajustar as contas públicas. Aumentou impostos, reduziu subsídios e elevou o preço da gasolina. Revoltada, a população de Caracas foi às ruas protestar no episódio conhecido como Caracazzo. Saques generalizados foram registrados. O Exército foi para as ruas e reprimiu os protestos com violência. Mais de 250 pessoas foram mortas e outras 3 000 seguem desaparecidas até hoje.

O taxista Yohanson Hernandez tinha apenas 2 anos quando tudo aconteceu. Ele conhece os reflexos dessa tragédia. O principal efeito foi a ascensão de Hugo Chávez, eleito pela primeira vez para a Presidência da Venezuela exatamente dez anos após o Caracazzo. “Quando os morros descerem em busca de comida, quero poder ter o necessário para ficar em casa”, afirma Hernandez, relembrando as histórias contadas pelo pai sobre os protestos de 1989. Trinta anos depois, a economia da Venezuela está novamente estrangulada. Até quando, ninguém sabe. 


“SÓ ESTOU OPERANDO PARA NÃO FECHAR”

O presidente da Confederação Venezuelana da Indústria diz que todo o setor industrial trabalha hoje no vermelhoYAN BOECHAT

Juan Pablo Olalquiaga: “Chávez e Maduro acreditaram que destruindo a indústria destruiriam a oposição” | Divulgação

Poucos setores foram tão afetados pelas políticas macroeconômicas implantadas pelo ex-presidente venezuelano Hugo Chávez e seu sucessor, Nicolás Maduro, quanto a indústria da Venezuela. Tradicionalmente fraco por causa das características únicas de um país que dependeu da exportação de petróleo ao longo dos últimos 100 anos, o setor industrial venezuelano encolheu de forma dramática. O presidente da Confederação Venezuelana da Indústria, Juan Pablo Olalquiaga, conta que a maior parte das empresas opera no vermelho e só mantém a produção por uma expectativa de mudanças no país. Dono de uma indústria de produtos plásticos, ele acredita que sua empresa só consegue sobreviver por mais oito meses.

Qual é o tamanho da indústria venezuelana hoje?

Houve uma retração brutal nesses 20 anos de chavismo, e o setor hoje está praticamente parado. Só estão operando aqueles empresários que acreditam que as coisas vão mudar na Venezuela no curto prazo. Em termos de número de empresas industriais ativas, hoje temos menos de 20% do que tínhamos no ano 2000, quando havia cerca de 13.000 indústrias instaladas, de todos os portes. Em 2017, quando a crise se agravou, o número já havia caído para 4.000 empresas. Hoje, temos registradas apenas 2.500 indústrias ativas.

O que aconteceu?

Houve um conjunto de fatores. Desde o processo de estatização em massa realizado pelo governo, passando por um controle cambial profundo que fez com que muitos empresários deixassem de produzir para se aproveitar dos ganhos gerados pela arbitragem com o dólar, até o controle estatal das importações. Chávez sempre acreditou que a oposição fosse financiada pelos empresários.

O que era verdade, não?

Sim, era verdade. Mas Chávez e Maduro acreditaram que destruindo a indústria destruiriam a oposição.

Qual é o estado das indústrias que seguem operando?

É péssimo. Estamos todos operando no vermelho, tirando dinheiro do bolso para manter a atividade, com a esperança de que haja mudanças importantes logo. É o meu caso, por exemplo. Acho que tenho fôlego para apenas mais oito meses. Estou com a produção quase parada.

Quanto o senhor está produzindo em relação à capacidade instalada?

No meu caso específico, estou girando na casa dos 93% de capacidade ociosa. Só estou operando para não fechar e não perder o capital humano que tenho. A média da economia é melhor por causa do setor agrícola, que opera com uma capacidade instalada maior. Mas posso afirmar com segurança que a média nacional de ociosidade da capacidade produtiva supera os 80%. Se não houver uma mudança rápida, vamos todos desaparecer.

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