Revista Exame

Sucesso do medicamento Vonau Flash aponta um caminho para a universidade

Os royalties do Vonau Flash, remédio para enjoo, rendem à USP mais do que suas outras 1.298 patentes combinadas. Que lição as universidades podem tirar daí

Humberto Ferraz: o laboratório cresceu graças aos projetos com a iniciativa privada (Germano Lüders/Exame)

Humberto Ferraz: o laboratório cresceu graças aos projetos com a iniciativa privada (Germano Lüders/Exame)

DC

David Cohen

Publicado em 6 de dezembro de 2018 às 05h42.

Última atualização em 6 de dezembro de 2018 às 05h42.

“Não é por aí. Você precisa publicar mais.” Desde meados dos anos 90, quando se tornou professor na faculdade de Farmácia da Universidade de São Paulo, Humberto Gomes Ferraz ouvia essa admoestação de colegas e de alguns chefes. A relação começou a mudar nos últimos anos. “Hoje, pouca gente tem coragem de criticar abertamente, porque o que eu fiz deu certo”, afirma.

E ponha certo nisso. Ferraz é autor, junto com o laboratório farmacêutico Biolab Sanus, de uma patente que permitiu criar o remédio contra enjoo Vonau Flash. Essa patente, sozinha, respondeu no ano passado por 58% de toda a receita de royalties da maior universidade do país. No total, as 1.299 patentes de todos os departamentos da USP renderam 2,49 milhões de reais; o Vonau Flash foi responsável por 1,44 milhão de reais desse montante. E os números devem crescer. Nos três primeiros trimestres deste ano, a Biolab afirma já ter transferido para a universidade 2,29 milhões de reais — um salto de 59% na receita, com um trimestre ainda por contar.

A USP poderá usufruir dessa fonte de receitas até 2028. A patente só foi concedida neste ano, 13 anos depois de o pedido ter sido impetrado no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi). Pela lei, uma patente vigora por 20 anos a contar do registro ou por dez anos a partir da homologação, o que for mais longe. Para o Vonau Flash, é o segundo caso. Até aqui, ele vinha sendo vendido sob a proteção de uma patente provisória, que assegurou à Biolab uma sensacional trajetória: em 12 anos, o Vonau desalojou o Plasil da liderança de mercado e experimenta vendas crescentes, com faturamento projetado de 132 milhões de reais neste ano e 160 milhões no ano que vem.

O que permitiu a ascensão do Vonau Flash foi justamente o objeto da patente que Ferraz detém em conjunto com a Biolab: o remédio se dissolve na boca, pode ser ingerido sem água. O avanço não é apenas em comodidade. Se fosse isso, aliás, já seria bastante: um comprimido mais palatável, para quem tem criança, pode ser a diferença entre um remédio engolido e um remédio recusado. Mas há outra característica que a Biolab traduziu no nome Flash. “A vantagem é a rapidez”, diz Dante Alario Jr., presidente científico da Biolab. “No estômago, o remédio leva de 15 a 20 minutos para agir. Se a pessoa está numa crise de enjoo, o vômito expulsa o produto antes que ele faça efeito.”

Dante enxergou o potencial de um remédio assim durante uma viagem à Inglaterra. Lá, a droga Zofran era vendida por algo como 200 dólares a caixa, contendo dez comprimidos. O princípio ativo do remédio, o Ondansetron, estava liberado de patentes. Duro seria replicar o processo para tornar o comprimido solúvel na boca. Os ingleses usavam a liofilização (uma desidratação em laboratório), mas era caro demais. Foi esse problema que Dante apresentou a Ferraz em 2004.

Ferraz era um professor diferente da média: sempre tivera interesse em produtos e sempre trabalhara com a iniciativa privada, algo visto até hoje com desconfiança no meio acadêmico. Sua vocação pela farmácia começou, segundo ele, na infância, na cidade mineira de Cataguases, quando chupou um comprimido amarelo e percebeu que era branco por dentro. A partir daí seu interesse só aumentou: era uma criança que lia bulas de remédio. Fez a faculdade em Juiz de Fora, onde sua família passara a morar, e trabalhou por um ano no laboratório Eli-Lilly. Na década de 90, fez mestrado e depois doutorado na USP, de onde também virou professor. O doutorado de Ferraz foi patrocinado pela empresa farmacêutica EMS, interessada nos testes necessários para lançar os primeiros genéricos no país.- “Era uma conjugação de interesse acadêmico, interesse das empresas e interesse nacional”, diz ele.

O projeto era modesto, algo como 100 000 reais, de acordo com o professor. Para desenvolver o produto, Ferraz começou a fazer vários testes de dissolução. Era preciso acertar o gosto, acertar a dose da substância a ser liberada na boca, a dose certa para liberar no estômago quando o comprimido fosse engolido. Foi um trabalho de vaivém. “A gente testava aqui no laboratório, depois passava para eles as condições de produção na empresa”, lembra. O processo consumiu um ano de testes mais dois anos para registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Do ponto de vista da Biolab, o resultado dificilmente poderia ter sido melhor. “Lançamos a caixa de Vonau Flash com um décimo do preço do produto inglês”, diz Dante. “Passamos seis ou sete anos brigando com o Plasil, que era líder de mercado disparado.” Hoje, segundo seus cálculos, o Plasil caiu para 10% de participação no mercado. O Vonau tem 40%.

Laboratório da Biolab: o processo desenvolvido na USP levou à liderança de mercado | Claudio Rossi

Considerando todo o período desde que o produto começou a ser vendido, a USP recebeu até o final do ano passado 8,66 milhões de reais, apenas pela colaboração de um de seus 5 900 professores com uma empresa. É claro que esse dinheiro está muito longe de resolver as dificuldades financeiras da USP, cujo orçamento gira em torno de 5 bilhões de reais (três ordens de grandeza acima). Mas é tentador pensar quanto as receitas da universidade poderiam aumentar caso ela se aproximasse mais do mundo das empresas.

O sucesso de Ferraz é um exemplo. Seu Laboratório de Desenvolvimento e Inovação Farmacotécnica tinha seis pessoas em 2009. Hoje tem 23. Os equipamentos são mais modernos e o espaço é privilegiado — tudo obtido com os resultados de suas parcerias com empresas. “Eu sempre fiz diferente. Sempre pensei no mercado, em gestão.” Na cultura da universidade, ele diz ter sido um pouco marginalizado. Não se tornou professor titular, um degrau a mais no status acadêmico. “Já tive superiores hierárquicos que disseram: ‘O que você está fazendo não é correto, faça o que a universidade quer’. E o que a universidade quer, segundo eles, é que a gente publique artigos.” Ferraz tem quase 80 publicações. Mas a pesquisa aplicada não vale o mesmo número de pontos nos rankings que a pura.

“Eu não acho que tenha de ter só pesquisa aplicada. Mas acho que tem de ter pesquisa aplicada também”, afirma. “Como é que a maior e mais conceituada universidade do Brasil, onde se produz uma quantidade fenomenal de ciência básica e aplicada, tem tanta dificuldade em transformar suas invenções em produtos vendidos em parceria com as indústrias?”

Esse é, até certo ponto, o caminho que a universidade está planejando seguir agora. Até certo ponto. “A gente não pode esquecer que a universidade existe para gerar e transferir conhecimento”, afirma o professor Antonio Carlos Marques, nomeado neste ano coordenador da Agência USP da Inovação. “A maior parte desse conhecimento a universidade transfere via aulas, pela formação de gente.”

A USP também funciona com certos limites. Por exemplo, ela não lucra com serviços para entes públicos. As pesquisas que ajudaram na invenção do motor de combustão por etanol não reverteram em licenças; o desenvolvimento da Nota Fiscal Paulista não trouxe patentes. “A USP tem mais de 7.000 convênios, e só uns 400, bem menos de 10%, envolvem propriedade intelectual e dinheiro”, diz Marques. “Também temos quatro incubadoras de empresas e estamos fazendo a quinta. São centenas de empresas incubadas.” Segundo Marques, as patentes chamam a atenção, mas não trazem tantos recursos em nenhum lugar. “Mesmo na Universidade da Flórida, que criou um sucesso como o isotônico Gatorade, os royalties ficam entre 10% e 20% da receita.”

Campus da USP, em São Paulo: dos mais de 7.000 convênios, só 400 envolvem dinheiro | Tales Azzi/Pulsar Imagens

Nem há uma defasagem tão grande da USP em relação a instituições-modelo. As 53 patentes que a USP gerou em 2017 a colocariam em 43o lugar no ranking internacional de patentes. É muito menos do que a primeira colocada, a Universidade da Califórnia, com 524 patentes, ou do que o MIT, com 306, mas é mais do que a Universidade de Tóquio (48) e quase o mesmo que a Yale (51). O que só coloca a questão em seu devido lugar. Não importa tanto quantas patentes são produzidas, mas a qualidade delas. E é nesse ponto que a USP está tentando melhorar, segundo Marques. “A USP tem mais ou menos 1 300 patentes ativas hoje. Mas quantas são licenciadas? Ou seja: tenho 1 300 respostas, mas não tenho as perguntas”, diz. “A filosofia que estamos implantando agora é parar de propor respostas e procurar as perguntas.”

Em julho, a universidade lançou o Programa Parceiros Tecnológicos para buscar as demandas das empresas. De outro lado, há um esforço em contatar os departamentos e entender as ofertas que existem na universidade. Prepara-se também a adesão ao Marco Legal da Ciência, Tecnologia e Inovação, lei que permite compartilhar espaços das universidades públicas com a iniciativa privada e estabelece regras para que um professor possa deixar a cátedra, explorar uma oportunidade de mercado e depois voltar.

“Em vários países, a primeira coisa que você tem de fazer quando vira professor é abrir a própria empresa”, diz Ferraz. “Aqui é proibido receber além do salário.” No caso dele, a receita proveniente da patente do Vonau é dividida com a USP, com o departamento, com a agência de inovação e com o laboratório que ele dirige. “Mas não tenho do que me queixar”, afirma. Seu laboratório continua a trabalhar com projetos em conjunto com a iniciativa privada. Não é só pela possibilidade de trazer bem-vindos recursos para a universidade. Marques diz que assim ele se mantém em constante aprendizado. E os alunos são preparados para enfrentar a realidade prática no mercado onde a maioria deles vai exercer sua profissão.

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