Revista Exame

Um dia na vida de um global trader

No novo capitalismo financeiro, os operadores estão ligados 24 horas por dia e tomam decisões que podem abalar empresas e países

André Jakurski (--- [])

André Jakurski (--- [])

DR

Da Redação

Publicado em 18 de fevereiro de 2011 às 12h30.

Às 3 horas da manhã, só se ouve um distante barulho de mar na avenida Rui Barbosa, um dos endereços mais tradicionais do Rio de Janeiro. À noite reina a tranqüilidade naquela faixa da orla, onde não há bares nem restaurantes. Só os poucos carros que passam por ali quebram o silêncio tão apreciado pelos moradores durante o sono da madrugada. André Jakurski, fundador da gestora de recursos JGP e uma das lendas vivas do mercado financeiro brasileiro, é uma exceção na vizinhança. Para ele, tanta paz não faz muita diferença. Quase toda noite ele acorda invariavelmente por volta das 3 da manhã. No escritório que fica colado a seu quarto, no 17o andar de um prédio que tem uma vista de cartão-postal do Pão de Açúcar, Jakurski confere o que mostram os terminais da Bloomberg e da Reuters e negocia no mercado japonês ou revisa ordens de compra e venda com corretores na Ásia.

A maratona diária de um operador global
Num dia típico, André Jakurski, sócio da gestora de recursos carioca JGP, dorme pouco para ficar de olho nos mercados de ações, commodities, moedas e juros
6h30
Acorda, checa o desempenho dos mercados asiáticos e europeus e lê jornais. Faz operações de compra e venda
8 h
Chega à JGP e se reúne com gestores e economistas para avaliar dados econômicos e discutir as perspectivas do dia
10 h
Começa a ler relatórios de empresas e análises econômicas enviados por bancos e corretoras
10h30
Checa as posições de seus fundos e, se necessário, realiza operações nos mercados futuros, de moedas e ações
12h30(1)
Acompanha a abertura da bolsa de Nova York, mercado de referência em todo o mundo, e continua a operar
13 h
Almoça - geralmente em menos de 1 hora e na própria mesa de operações
14 h
Passa a tarde acompanhando dados e realizando operações nas bolsas e nos mercados futuros
19 h
Cuida de assuntos da JGP - recebe clientes ou faz reuniões com outros sócios
20 h
Vai para casa, liga os computadores e passa mais alguns minutos acompanhando os mercados
21 h
Janta com amigos ou com membros de sua família
22 h
Volta a acompanhar o desempenho dos mercados e, se necessário, a operar
3 h(2)
Checa o andamento dos mercados por cerca de 10 minutos e envia ordens de compra e venda

As atividades noturnas do dono da JGP não são fruto de uma obsessão pessoal pelo trabalho, mas um dado corriqueiro para o grupo do mercado financeiro do qual ele faz parte. Jakurski compõe uma casta conhecida como operadores globais -- profissionais que negociam ações, commodities, moedas e papéis de renda fixa em várias partes do mundo e, por isso, ajustam seus horários a diferentes fusos.

Separados, os operadores globais parecem membros de uma tribo insone. Juntos, são os pontas-de-lança de um mercado financeiro cada dia mais importante na intrincada engrenagem do capitalismo sem fronteiras. São esses analistas, gestores e operadores que ditam os humores da economia em várias partes do mundo, decidindo para onde devem fluir os bilhões de dólares que transitam diariamente pelas bolsas, pelos fundos e pelas instituições financeiras. Há, claro, nações como Paraguai, Suriname e Laos fora do radar desses operadores, mas o número de países participantes do novo capitalismo financeiro é ascendente. Presidentes de países e executivos de empresas que subestimam o poder do apoio da turma de Jakurski -- por falta de transparência ou por maus resultados -- costumam pagar bem caro pelo erro. Em 2002, o Brasil sofreu isso na carne quando as pesquisas eleitorais passaram a indicar a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva para a Presidência. Confusos com o discurso histórico do PT, com forte viés anticapitalista, bancos e fundos estrangeiros cortaram o fluxo de recursos para o Brasil e a economia ajoelhou. Segundo a análise feita à época por um dos expoentes do mercado financeiro, o investidor George Soros, o país pôde então compreender que, se o cidadão comum vota apenas uma vez a cada quatro anos, os operadores globais votam todos os dias. Não por coincidência, o governo Lula rapidamente abandonou a retórica esquerdista, escolheu Henrique Meirelles para presidir o Banco Central e vem perseguindo políticas econômicas responsáveis.

Desde então, o poder do mundo financeiro só fez aumentar. O total de ativos -- ações, papéis de dívida de empresas e países e depósitos bancários -- cresce numa velocidade muito acima da do produto interno bruto (PIB) global. Em 1980, esses ativos financeiros equivaliam ao PIB mundial. No ano passado, com um total de 167 trilhões de dólares, já era três vezes maior. Em todo o mundo, a cadeia financeira emprega 20 milhões de pessoas. Mais do que uma lista de cifras grandiosas, o que esses números revelam é que está em curso uma transformação nos mecanismos de financiamento da atividade produtiva. Os recursos captados pelos fundos de hedge e de private equity, pelas ações e pelos títulos de dívida são emprestados a empresas de várias partes do mundo, que nunca tiveram acesso a tanto dinheiro para financiar suas atividades. Trata-se de uma mudança tão profunda que estudiosos classificam o período atual como uma nova fase da economia mundial, a do capitalismo financeiro. Nas palavras do economista Martin Wolf, colunista do jornal britânico Financial Times, trata-se do "triunfo do mundial sobre o nacional, do especulador sobre o administrador e do financista sobre o produtor". Na esteira desse movimento, o mundo assiste a uma das fases mais duradouras de crescimento da economia real.

No Brasil, Jakurski é o exemplo mais bem-acabado desse novo financista global. No escritório de sua casa ou no trabalho, a televisão, quando ligada, está sempre sintonizada na CNBC, rede americana especializada em finanças. Ele precisou instalar antenas especiais para captar o canal, já que não é transmitido no Brasil por nenhuma operadora de TV a cabo. Em seu radar estão todas as notícias que podem afetar os países nos quais investe: Estados Unidos, Japão, Alemanha, Reino Unido, França, Itália e Canadá. Num mundo tão intensamente conectado, onde o que ocorre num país tem reflexo imediato sobre outros mercados e economias, ficar muito tempo longe dos acontecimentos pode custar caro. "Hoje, ser um operador global é um estilo de vida, não dá para desligar nunca", diz Maria José, uma das pessoas que acompanham essa tendência mais de perto por ser a esposa de Jakurski. "O mercado não é um fliperama", diz ele. "Posso ficar 24 horas sem fazer uma operação sequer, mas preciso sempre saber o que está acontecendo para tomar decisões."

EXAME acompanhou um dia de trabalho no escritório da gestora JGP, que fica no centro do Rio -- 31 de outubro, uma quarta-feira, data da última reunião do Federal Reserve (Fed), o banco central americano. O evento pautou a tarde de toda a equipe de gestores e economistas da JGP. O anúncio de que o Fed reduziria a taxa de juro dos Estados Unidos, às 16h15, foi a centelha que provocou um movimento frenético -- não de compra e venda de ações e contratos futuros, como se poderia supor, mas de análise. Os economistas trataram de dissecar o comunicado de poucos parágrafos divulgado pelo Fed para explicar por que a instituição manteve os juros. Imediatamente após a nota, os gestores também se debruçaram sobre os efeitos da decisão nos mercados mundiais e no brasileiro. Passaram pelo radar de Jakurski e equipe os preços de commodities como ouro e prata, a cotação de moedas latino-americanas e os contratos futuros de juros na Europa.

NADA DISSO OCORRIA NO PASSADO. Há 40 anos, financistas eram vistos como velhos senhores sisudos, de terno escuro, atrás da escrivaninha de bancos regionais, em sua maioria. Um exemplo simbólico de como os mercados funcionavam de forma diferente -- e isolada -- ocorreu durante o crash de 1987 na bolsa de Nova York. No dia 19 de outubro daquele ano, o Índice Dow Jones fechou em baixa de 23%, a maior queda em décadas. "Apesar disso, a maioria dos analistas operou todo o dia sem saber que havia uma crise nos Estados Unidos. Só descobriu os problemas assistindo ao jornal da noite", lembra Jakurski, que, na época, era sócio do banco Pactual e aproveitou a distração dos colegas para vender ações de empresas brasileiras quando os preços ainda estavam elevados. "Essa demora era normal naquele tempo, em que o local importava mais que o global." Hoje, mesmo que quisesse ficar alheio a algum acontecimento externo, Jakurski não conseguiria. Em outubro de 2007, menos de 1 hora depois do anúncio da decisão do Fed, bancos e corretoras de diferentes países enviaram a ele e sua equipe dezenas de relatórios de análises e comentários por e-mail e por mensagens instantâneas -- novidade que acabou de vez com a imagem de operadores que passavam o dia pendurados em dois ou três telefones ao mesmo tempo.

Tecnicamente, os operadores globais não são um fenômeno recente. "Eles existem há séculos, porque a globalização é algo antigo. É possível constatar a presença de investidores internacionais em algumas das principais bolhas especulativas da história, como a da South Sea Company, em 1720", diz Pankaj Ghemawat, um dos maiores especialistas em globalização, professor da Harvard Business School, nos Estados Unidos, e da Universidade de Navarra, da Espanha. (Ghemawat refere-se ao esquema fraudulento de lançamento de ações montado pela companhia britânica.) O que torna o momento atual sem precedentes é o fato de a integração nunca ter sido tão profunda. Investidores europeus aplicavam em ações de empresas da América Latina no século 18, é certo, mas eles levavam dias para concluir uma única compra. Hoje, isso toma segundos. Informações sobre o desempenho dos mercados estrangeiros, algo escasso no passado, chegam em tempo real às telas de qualquer operador. "Essa mudança se deve à tecnologia", diz Luiz Ribeiro, gestor de fundos offshore para a América Latina do HSBC. "A internet e os avanços da telefonia revolucionaram as finanças e criaram uma rotina de trabalho para todos que estão nesse setor."

Na briga pelo posto de maior centro financeiro mundial estão Wall Street, em Nova York, e a City, em Londres. Cerca de 20% de toda a renda de Nova York vem do setor financeiro, apesar de essa indústria ser responsável por apenas 5% dos empregos da cidade. Em 2006, os bônus pagos em Wall Street somaram 24 bilhões de dólares, volume recorde, o que corresponde a uma média anual de 138 000 dólares para cada profissional. Na City de Londres, a realidade é semelhante. O maior centro de finanças da Europa é o palco de uma internacionalização não apenas das operações mas também de operadores. "Atraímos profissionais de todo o mundo, interessados em trabalhar num mercado que vem passando por grandes mudanças e já se tornou líder em vários segmentos. Hoje, trabalham na City 1 milhão de pessoas, e 25% não são britânicos", disse a EXAME John Stuttard, prefeito da City.

Nesse mundo financeiro global, os acertos são pagos com bônus milionários e os erros com a porta da rua. É a meritocracia em estado puro. O recente colapso do segmento de hipotecas de alto risco nos Estados Unidos, por exemplo, já fez duas vítimas no altíssimo escalão: os presidentes do Citi, Charles Prince, e do Merrill Lynch, Stanley O'Neil. Os dois deixaram o cargo depois de seus respectivos bancos registrarem perdas milionárias devido ao excesso de risco tomado antes do estouro da crise imobiliária americana. Nos dias seguintes à saída dos dois tubarões de Wall Street, milhares de operadores em todo o mundo foram às "urnas" e aprovaram as demissões comprando ações dos dois bancos. Até há poucos anos, essa dinâmica implacável estava restrita aos Estados Unidos. Hoje, com a globalização do capitalismo financeiro e o surgimento de operadores ligados 24 horas por dia, poucos cantos do planeta ainda permanecem imunes. No Brasil, um número crescente de executivos está tendo a salutar experiência de prestar contas a seus acionistas a cada abertura do pregão. E Jakurski, mesmo ainda sendo um dos principais operadores globais baseados no país, já não é o único expoente plugado no mundo -- o poderoso grupo de insones só faz crescer.

O MUNDO FINANCEIRO
O setor financeiro em todo o mundo cresceu de forma impressionante nas últimas duas décadas e ganhou maior relevância econômica
MAIS DINHEIRO EM CIRCULAÇÃO
O volume global de ativos financeiros - ações, títulos de dívida e depósitos bancários - tornou-se 3,5 vezes maior que o PIB mundial (em trilhões de dólares)
Ano
Ativos financeiros
PIB mundial
1980
12
10
1995
64
29
2000
93
32
2002
95
33
2004
133
41
2006
167
48

Além de crescer, o capital se espalhou pelo mundo. Em 1995, 1,1 trilhão de dólares (1,7% do total de ativos) saíam de um país para outro. Dez anos depois, o fluxo internacional somou 6,2 trilhões e chegou a 4,4% (em trilhões de dólares)
19951,1
20005,4
20022,9
20045,2
20056,2

CAPITAL MAIS BARATO
Os investimentos produtivos feitos pelos fundos de private equity em todo o mundo aumentaram 414% em apenas dois anos...
(em bilhões de dólares)
2004101
2005216
2006519
...e empresas de todos os cantos do planeta nunca captaram tantos recursos por meio de IPOs (em bilhões de dólares)
200350
2004125
2005167
2006246

APETITE PARA O RISCO
O patrimônio dos fundos de hedge, conhecidos mundialmente pelo arrojo nos investimentos, cresceu quase oito vezes nos últimos 11 anos
(em bilhões de dólares)
1995186
2002626
20061 465

PROTEÇÃO CONTRA INCERTEZAS
As operações feitas nos mercados futuros, que visam proteger as empresas das oscilações de preços das commodities, aumentaram 350% em seis anos
(em trilhões de dólares)
200063
2004184
2006286
Fontes: Dealogic, Ernst & Young, HFR, McKinsey, Private Equity Intelligence, PricewaterhouseCoopers e Thomson Financial
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