Ciclovia em São Paulo: a cidade está aprendendo a conviver com as bicicletas (Luiz Guadagnoli / Secom)
Da Redação
Publicado em 25 de julho de 2016 às 11h29.
São Paulo — No fim dos anos 50, o então prefeito de Amsterdã, Gijs van Hall, precisou explicar à população por que uma faixa dedicada a pedestres e ciclistas tinha sido eliminada do projeto de construção de um túnel na capital holandesa. “Daqui a 20 anos, ninguém mais vai andar de bicicleta”, afirmou o prefeito. Na época, era mesmo o que parecia.
O avanço da indústria automobilística no pós-guerra povoou de carros as ruas da cidade. As viagens de bicicleta caíram de 75% para menos de 25% do total de deslocamentos em menos de 20 anos. O predomínio dos veículos motorizados foi tão rápido e intenso que surgiram projetos de cobertura dos famosos canais da cidade para criar mais vias de circulação.
Porém, nos últimos 40 anos, Amsterdã virou a capital mundial das bicicletas que conhecemos hoje — mas não sem enfrentamento. Grupos pró-bikes transformaram protestos sobre duas rodas em cena cotidiana na cidade na década de 70, quando os congestionamentos e as mortes no trânsito atingiram níveis recorde.
O choque do petróleo em 1973 deu fôlego adicional ao movimento, até o poder público se render e começar a desenvolver o sistema de ciclovias por onde trafegam hoje as 880 000 bicicletas de Amsterdã — média de uma bike por morador. Não é à toa que Amsterdã figure entre as cidades mais eficientes, melhores para viver e mais atraentes para negócios no mundo.
A mobilidade urbana é um dos aspectos mais decisivos das cidades inteligentes — aquelas que são conectadas e sustentáveis, criativas e participativas. Esse conceito, obviamente, não se esgota na facilidade de ir e vir, muito menos na existência de ciclovias. Mas a mobilidade é um tema crítico a ponto de — quem diria? — alçar São Paulo ao topo do ranking das cidades mais inteligentes do Brasil.
Feito pela consultoria Urban Systems em parceria com a empresa paulista Sator, o levantamento será divulgado durante o Connected Smart Cities, evento programado para 8 e 9 de junho no Rio de Janeiro.
Além da mobilidade, o estudo analisa mais dez áreas (urbanismo, meio ambiente, energia, tecnologia e inovação, educação, saúde, segurança, empreendedorismo, economia e governança), num total de 73 indicadores. “Cidades que se destacam no conjunto desses indicadores são lugares onde as empresas e as pessoas querem estar”, diz Thomaz Assumpção, presidente da Urban Systems.
São Paulo lidera no quesito mobilidade entre as 50 cidades mais inteligentes do Brasil identificadas pelo estudo — o que pode soar estranho para quem enfrenta seus quilômetros de congestionamento diariamente. Mas é na capital paulista que estão ocorrendo algumas das mudanças mais relevantes em termos de deslocamento urbano no país.
Nos últimos anos, São Paulo construiu corredores exclusivos para ônibus e implantou ciclovias e ciclofaixas, numa tentativa de favorecer meios de transporte alternativos aos automóveis. Em quatro anos, a cidade ganhou um sistema com mais de 500 quilômetros de faixas para ônibus, partindo de uma marca inferior a 90 quilômetros.
Até o fim deste ano a meta da prefeitura é acrescentar 400 quilômetros à malha cicloviária paulistana — há dois anos, não chegava a 70 quilômetros. Com medidas desse tipo, o prefeito Fernando Haddad (PT) tirou os motoristas da zona de conforto — e despertou a ira de muita gente. O senador Aloysio Nunes, do PSDB, criticou o “delírio autoritário” do prefeito por “esparramar ciclofaixas a torto e a direito”.
Nunes ressalvou não ser contra as ciclovias, mas, sim, a maneira como foram implantadas, sem planejamento. Polêmica à parte, o que Haddad está fazendo não é exatamente inovador. “São Paulo não inventou a roda”, diz o urbanista Carlos Leite, autor do livro Cidades Sustentáveis, Cidades Inteligentes.
“A cidade está apenas protagonizando no Brasil uma transformação absolutamente em linha com o que ocorre no resto do mundo.”
Um dado indica que São Paulo pode estar no rumo certo. No início deste ano, um dos mais relevantes rankings mundiais de congestionamento — elaborado pela holandesa TomTom, fabricante de sistemas de navegação para carros — revelou que São Paulo passou da sétima para a 58a posição entre as mais engarrafadas, considerando quase 300 metrópoles em 38 países.
Transformações costumam assustar — e, em São Paulo, elas vão além de pintar ruas para criar ciclofaixas. O Plano Diretor da cidade foi revisto em 2014; e a Lei de Zoneamento, neste ano. Os document os preveem que grandes empreendimentos sejam permitidos apenas nas áreas servidas por corredores importantes de transporte público.
Além disso, desencorajam o desenvolvimento de bairros exclusivamente residenciais ou comerciais, favorecendo áreas com funções mistas. A ideia é que todo morador encontre os equipamentos básicos da vida urbana a uma distância “caminhável” de casa. A perspectiva desse tipo de política é boa, mas não se espera que dê resultados no curto prazo.
Até os benefícios de fato aparecerem, os paulistanos precisarão continuar convivendo com velhas mazelas. De acordo com uma pesquisa do Ibope realizada em 2015, de zero a 10, o nível de satisfação com o transporte público de São Paulo ficou em 4,5.
Quase um quarto dos moradores gasta mais de 2 horas por dia para se deslocar até o trabalho. E, por enquanto, apenas 3% pegam a bicicleta para fazer algum trajeto diariamente. Tirar carros das ruas é a tônica de ação também nas cidades inteligentes do restante do mundo.
“A demanda de transporte de uma cidade como Singapura poderia ser suprida com apenas 30% dos veículos existentes”, afirma Carlo Ratti, diretor do Senseable City Lab, que se dedica a estudos urbanos no renomado Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT).
“Uma redução dessa magnitude no número de carros cortaria dramaticamente o custo da infraestrutura de mobilidade e da energia necessária para mantê-la.” Cidades amigáveis com as pessoas são chamarizes de talentos — e os centros mais inteligentes são capazes não apenas de aproximar mas também de produzir capital intelectual novo.
Isso realimenta a cadeia local de geração de empregos de qualidade e, por tabela, causa um considerável impacto na economia. Em São Paulo, o espírito inovador e criativo é facilmente reconhecido. A cidade abriga um quarto dos escritórios colaborativos do país, espaços de trabalho compartilhados por profissionais de diferentes áreas — um convite ao desenvolvimento de novas ideias.
Da capital paulista sai também o maior número de depósitos de patentes de novos produtos registrados no Instituto Nacional de Propriedade Industrial — foram mais de 2 500 somente em 2014. O ranking de cidades inteligentes tem outros destaques. O Rio de Janeiro segue São Paulo muito de perto.
Campeã da primeira edição do levantamento, em 2015, a capital fluminense manteve os bons indicadores que a levaram ao topo, entre eles os ganhos de eficiência em áreas como transporte e educação. Perdeu a liderança porque São Paulo avançou mais em alguns pontos-chave, como a mobilidade. O ranking traz também polos regionais, como Campinas e São José dos Campos, no interior paulista.
Um ponto em comum entre essas cidades são os centros de inovação formados por boas instituições de ensino, como a Universidade Federal do Rio de Janeiro, a Unicamp e o Instituto Tecnológico de Aeronáutica.
Não por acaso, núcleos de conhecimento como esses geram efeitos positivos em outras esferas, como o empreendedorismo, área em que o Rio de Janeiro, com cinco polos tecnológicos e 20 incubadoras de empresas, lidera o ranking.
“A geração de conhecimento depende do tripé formado por universidades, centros de estudos e empresas. São as empresas, aliás, que transformam pesquisas em retorno econômico”, diz André Marinho, sócio da consultoria PwC. Uma cidade inteligente, em suma, reconhece que variáveis distintas podem se interconectar harmoniosamente. Aspectos de mobilidade trazem impacto ao meio ambiente e à saúde.
Itens relativos à inovação se conectam a outros de educação e empreendedorismo, que, por sua vez, têm ligação estreita com o desempenho da economia. “De um jeito ou de outro, uma cidade que queira se tornar mais inteligente experimenta uma mudança de paradigma”, diz Federica Bordelot, consultora da Eurocities, rede europeia de governos empenhados em reforçar a relevância das cidades.
Dar conta dessa tarefa exige o envolvimento dos cidadãos — engajá-los, portanto, deve ser prioridade de qualquer prefeito. Conseguir isso é mais fácil quando tornar-se inteligente não for um fim em si mesmo. “Cada cidade tem seu processo, que é único”, diz Federica. Cabe a cada uma descobrir qual é o seu caminho.