(Julia Jabur Zemella/Exame)
Repórter de Agro
Publicado em 24 de agosto de 2023 às 06h00.
Última atualização em 24 de agosto de 2023 às 18h55.
Todo ano, o cenário se repete: filas de caminhões nas estradas, grãos espalhados a céu aberto e apreensão sobre onde armazenar a produção do campo. A preocupação recai sobre produtores, cooperativas, traders, rodovias e, no fim, sobre todo o agronegócio. Este ano, porém, está diferente. Mais grave. A conjuntura geopolítica contribuiu para um cenário interno em que não cabem mais soja e milho nos armazéns e silos. Enquanto a estimativa para a produção de grãos na safra 2022/2023 é de 320,1 milhões de toneladas, tendendo a um novo recorde, segundo a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), os compradores internacionais estão retraí-dos. A redução da demanda chinesa, a normalização no cenário de guerra entre Rússia e Ucrânia e a diminuição da safra dos Estados Unidos derrubaram os preços das commodities. Em suma, há mais oferta do que demanda.
Como consequência, o produtor retardou a comercialização e, agora, a soja começa a ser escoada simultaneamente à chegada da segunda safra do milho aos armazéns, havendo superlotação. Em nível nacional, falta espaço para guardar mais de 100 milhões de toneladas de grãos. “Talvez no ano que vem tenhamos o pior verão de todos, com o milho muito atrasado e sem contrato futuro. Estamos nos preparando para o ciclo 2023/2024 ser o pior em termos de capacidade estática”, afirma Airton Galinari, presidente executivo da cooperativa -Coamo, que tem capacidade de armazenar 5,5 milhões de toneladas das 10 milhões de toneladas que recebe ao longo do ano, entre primeira e segunda safras. Em suma, caminhamos para dois recordes no campo: da safra e do gargalo.
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Dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostram que há um número muito baixo de estabelecimentos com capacidade de armazenagem no Brasil. São 268.000 unidades entre armazéns e silos, ou seja, 5,3% dos mais de 5 milhões de imóveis rurais cadastrados. Quando distribuídos regionalmente, 70% desses estabelecimentos estão concentrados nas Regiões Sul e Sudeste. No entanto, está no Centro-Oeste a maior aptidão produtiva e de armazenagem em volume. Ou seja, enquanto o maior volume de produção está na porção central do país, as exportações ainda são feitas majoritariamente pelo Sudeste, a exemplo dos portos de Santos, em São Paulo, e de Paranaguá, no Paraná.
A bem da verdade, houve um aumento de 440% no fluxo de grãos no Arco Norte, de 2009 a 2021. Mas ainda há desequilíbrio. “A gente continua exportando 63% pelo Arco Sul. Por isso, é necessário melhorar o escoamento e reequilibrar esse fluxo no país”, afirma José Eustáquio Vieira, pesquisador do Ipea.
O cenário de armazenamento de grãos brasileiro é muito diferente na comparação com os Estados Unidos, onde a capacidade de estocar os grãos aumentou consistentemente nas últimas duas décadas. Um estudo da Universidade de Illinois, assinado pelos pesquisadores Joana Colussi, Gary -Schnitkey e Nick Paulson, mostra que o crescimento da infraestrutura americana tem sido proporcional ao aumento da produção agrícola. Em média, foi um acréscimo produtivo de 339 milhões de bushels por ano, enquanto a capacidade de armazenamento aumentou em 349 milhões de bushels no mesmo período.
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No Brasil, como a infraestrutura não comporta o acréscimo de produtividade, há uma perda estimada entre 15% e 20% da produção anual, reflexo dos grãos desperdiçados entre a armazenagem inadequada e as más condições das rodovias a caminho dos portos. Caso aumentássemos a capacidade de armazenamento em 0,1 tonelada por hectare, a produção do país seria elevada em 2,3%, de acordo com José Eustáquio, do Ipea. Isso, porém, não acontece da noite para o dia.
Segundo Ricardo Marozzin, vice-presidente da multinacional AGCO Grãos e Proteína, construir um armazém leva entre sete e nove meses — e pode levar um ano e meio em projetos maiores. “A depender do tamanho das instalações, os projetos variam de 7 milhões a 40 milhões de reais, quando envolvem toda a infraestrutura de silo, transportadores, secadores, todo o sistema elétrico e a parte de engenharia civil”, afirma. Com base nesses valores, diz Marozzin, os recursos do Plano Safra para o Programa para Construção e Ampliação de Armazéns (PCA) são insuficientes. Para 2023/2024, estão previstos 6,65 bilhões de reais ao PCA, o que significa aumento de 30% em relação à verba do ano anterior. “Ainda assim, o Brasil precisaria minimamente triplicar o volume de recursos, ter 15 bilhões de reais por ano a serem destinados para a construção de armazéns”, diz Marozzin. “Então, num horizonte de longo prazo, a gente começa a encostar a disponibilidade estática na produção.”
Uma saída para o gargalo recorde vai além da construção de silos, tem de focar a ampliação da malha logística, na visão de Paulo Fróes, diretor de mercado de capitais da StoneX. Como a maior parte da produção está longe dos portos, o deslocamento leva muito tempo, o que prolonga a viagem e contribui para o engarrafamento de grãos. Em resumo, parte do nó poderia ser desatada com mais interligações entre rodovias, ferrovias e portos. A partir das interligações, ele diz, a capacidade estática poderia se manter, porque a rotatividade proporcionada pela logística daria maior vazão à safra. Do ponto de vista do produtor, o diretor da StoneX acredita que o investimento em armazenagem não se paga. “Tomar recurso caro para armazenagem não compensa, e em áreas remotas é preciso rodar mais, gastar mais, e o custo logístico desestimula”, afirma Fróes.
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Uma recente pesquisa da Confederação da Agricultura e Pecuária mostra que, de 1.065 produtores rurais entrevistados, 72% estariam interessados em investir em armazenagem se os juros fossem mais atraentes. A pesquisa também correlaciona infraestrutura e logística, e mostra quanto o frete rodoviário poderia ser reduzido caso os grãos ficassem estocados de quatro a seis meses, como costuma ser a prática de mercado. Dados da Argus mostram que o momento de colheita é relevante para compor o preço do frete: é nesse período que aumenta a demanda pelo transporte. Por isso, a tendência é que o valor do frete suba conforme a colheita avance. O fator se agrava quando há necessidade de escoar a produção mais rapidamente por causa da falta de armazém e, então, são necessários mais caminhões. “É possível ver uma tendência de alta nos fretes de grãos entre o fim da colheita de soja e o início da colheita de milho, justamente por essa demora nas negociações”, diz Flavia Bohone, especialista em agricultura e fertilizantes da Argus. Ela observa que, nesta safra, a comercialização está atrasada. Por isso a alta do frete de grãos na época de colheita não foi tão expressiva quanto em outros anos.
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Depois que chega ao porto, a carga não pode ficar armazenada sem um prazo estipulado, o que também pressiona as rodovias e os armazéns na logística reversa. À EXAME, o Ministério de Portos e Aeroportos explica que não é prática de mercado armazenar grãos em silos ou armazéns na área primária dos portos se não há embarque programado. Com isso, o silo ou armazém no porto não substitui silos fora da área portuária. Cada terminal tem sua programação de embarque bem definida por meio dos contratos com os agentes exportadores e importadores, bem como com os armadores ou agências de navegação. Por isso, se não há navios contratados, a commodity não pode permanecer no porto.
O jeito é encontrar mecanismos que façam sentido para as diferentes realidades dos empresários rurais. A Coamo, por exemplo, tem investido em silos-bolsa — compartimentos para armazenagem em formato de tubos, onde os grãos são colocados e selados. “Temos a maior quantidade de produtos mantidos em silo-bolsa do mundo. Só da indústria de Dourados, em Mato Grosso do Sul, teremos 140.000 toneladas em silos-bolsa. São 130 hectares de grãos guardados”, afirma Airton Galinari. Ao produtor, o que resta é inovar, ou improvisar, e esperar por mais gargalos recordes nos próximos anos.