Revista Exame

Na era digital, ativos intangíveis trazem riqueza – e desigualdade

Em novo livro, dois economistas argumentam que o investimento em bens imateriais está ligado ao sucesso das empresas, mas também à desigualdade social

Escritório do Google no Vale do Silício: gigante está há anos de olho em machine learning (Brooks Kraft LLC/Corbis/Getty Images)

Escritório do Google no Vale do Silício: gigante está há anos de olho em machine learning (Brooks Kraft LLC/Corbis/Getty Images)

DR

Da Redação

Publicado em 19 de julho de 2018 às 05h13.

Última atualização em 19 de julho de 2018 às 05h13.

Os dados mais recentes mostram que as companhias de tecnologia Google, Apple e Microsoft são três das empresas mais valiosas do mundo. Seu valor de mercado somado é superior a 2,5 trilhões de dólares — mais do que o produto interno bruto do Brasil em 2017. O total de ativos do Google é de 197 bilhões de dólares; da Apple, de 375 bilhões; e da Microsoft, de 256 bilhões. Entretanto, o fato curioso é que ativos físicos, como imóveis, fábricas e equipamentos, representam uma fração pequena desses números — apenas 21% no Google, 9% na Apple e 10% na Microsoft. Isso é capitalismo sem capital.

Após a crise financeira de 2008, a agenda econômica mudou. Economistas, líderes políticos e empresariais hoje discutem como aprimorar o sistema financeiro, como lidar com a crescente piora na distribuição da renda e da riqueza e como entender a relativa estagnação da produtividade. Ao mesmo tempo, o investimento nos chamados intangíveis — isto é, os ativos imateriais das empresas — não para de crescer e, em muitos países, já ultrapassa o investimento tangível, ou físico. O sucesso das empresas tem cada vez menos relação com seu capital produtivo tangível (o investimento feito em máquinas, equipamentos, fábricas e escritórios) e mais com seus bens imateriais, de valor intangível (marca, propriedade intelectual, softwares, habilidades dos funcionários, entre outros aspectos).

Essa é a ideia por trás do livro Capitalism without Capital: The Rise of the Intangible Economy (“O capitalismo sem capital: a ascensão da economia intangível”, numa tradução livre), escrito pelos economistas britânicos Jonathan Haskel, professor na universidade Imperial College London, e Stian Westlake, diretor executivo da fundação Nesta, organização sem fins lucrativos que dá apoio à inovação.

O argumento central do livro é que existe algo fundamentalmente diferente nos ativos intangíveis, e compreender sua importância é indispensável para responder a alguns dos desafios econômicos de hoje, ligados à inovação, à desigualdade, ao papel da gestão nas empresas e às reformas financeira e política. O livro tem como ponto de partida um exemplo singelo de como os ativos intangíveis são essenciais para os negócios hoje. Phillip Mills, dono de uma academia na Austrália, juntou conhecimentos técnicos e práticas esportivas e desenvolveu um modelo de treino físico chamado body pump que fez muito sucesso localmente. Depois de codificado, Mills produziu um manual, softwares e material de comunicação visual que se transformaram num produto licenciado para uso em diversos países. Foi simples assim: saiu de uma academia de ginástica para o mundo.

Existem quatro questões relevantes acerca dos intangíveis. Em primeiro lugar, as medidas tradicionais para calcular as taxas de investimento numa economia praticamente ignoram os ativos intangíveis ou, pelo menos, subestimam sua relevância. Só recentemente, por exemplo, o investimento em software entrou nos cálculos das contas nacionais, mas ativos como design, marca, processo de reengenharia, treinamento e outros ainda não são contabilizados.

Ainda assim, os autores mostram que as medidas já disponíveis revelam que, em muitos países desenvolvidos, o investimento intangível tem participação maior do que o investimento físico nas empresas. E isso faz a economia se comportar de forma distinta da tradicional em muitos aspectos. Diferentemente do investimento num prédio ou numa máquina, o custo de desenvolvimento de um bem intangível (um manual de operações, uma marca) raramente é recuperável porque é difícil de vendê-lo e ele tem uma utilidade específica para a empresa. São, por isso, denominados de “custos enterrados” (sunk costs). Entretanto, um gasto com uma ideia que não frutifique pode ser recuperado mais adiante numa nova aplicação encontrada para ela.

Em segundo lugar, o capital intangível transborda, extravasa e, portanto, gera efeitos (normalmente positivos) em outras áreas ou empresas, como o desenvolvimento de um novo modelo de negócios ou de um sistema de gestão. São os benefícios indiretos que os autores chamam, em inglês, de spillovers. Entretanto, como a base são ideias, é difícil, mesmo com a proteção de patentes, que a empresa responsável pela criação original possa reter todos esses benefícios. Ideias extravasam. Mas as empresas que conseguirem reter os spillovers — criando incubadoras ou estimulando desenvolvedores independentes, por exemplo — tendem a crescer mais, a entrar em outros segmentos e a ser muito lucrativas, como fizeram a varejista online Amazon, o Google e outras.

Em terceiro lugar, os investimentos intangíveis são escaláveis. O custo marginal de sua utilização é praticamente zero. Uma vez desenvolvido um sistema, ele pode ser acessado por dez pessoas ou 10 milhões sem que haja grande despesa adicional, ao contrário dos bens produzidos com capital tangível, em que as economias de escala são limitadas. E, por fim, em quarto lugar, os intangíveis têm grandes sinergias ou complementaridades, gerando resultados em combinações inesperadas. Toda inovação é combinacional: une ideias novas a outras já existentes. Os intangíveis também o são, tanto quanto têm sinergias com investimentos tangíveis, como automação industrial e impressoras 3D.

MONOPÓLIO E DESIGUALDADE

Essas quatro características têm consequências extraordinárias, como os autores discutem ao longo do livro. As empresas líderes em tecnologia atingiram uma escala sem precedentes, têm elevada produtividade, obtêm lucros crescentes e investem quantias enormes. Por exemplo, dados recentes mostram que o investimento dos Estados Unidos no primeiro trimestre deste ano foi fortemente concentrado em petróleo e grandes empresas de tecnologia. Entretanto, elas tendem a ser agressivas na compra de potenciais competidores ou até em sua inviabilização econômica. Isso gera uma situação na qual poucas empresas têm crescimento de produtividade, e um número não trivial de companhias fica para trás na evolução tecnológica, tem baixa eficiência, dívidas elevadas e resultados modestos. Isso ajuda a explicar a estagnação da produtividade nos países ricos.

Por outro lado, a natureza dos intangíveis gera um modelo no qual “o ganhador leva tudo”, que vem produzindo quase monopólios em diversas áreas (buscadores e redes sociais, por exemplo). Essa situação tem levado à pergunta: não será necessário que a regulação governamental dê algum limite ao excessivo poder de certas empresas? A questão, claramente, foi amplificada pelo problema das notícias falsas (ou fake news) e do uso não autorizado de informações pessoais como forma de gerar faturamento com as redes sociais. Na Europa já existem questionamentos nessa direção, e é certo que a agenda da regulação continuará a colocar a pergunta se a concentração em poucas grandes companhias de tecnologia afetará liberdades básicas.

Estudantes na Universidade Harvard, nos Estados Unidos: as pessoas mais educadas e treinadas tendem a se beneficiar mais da nova economia | Brooks Kraft LLC/Corbis /Getty Images

Nos últimos anos, a piora na distribuição de renda dentro de muitos países desenvolvidos (embora tenha havido melhora na distribuição entre países, essencialmente resultante do desenvolvimento recente de China e Índia) tem sido uma das questões mais candentes. Há uma clara percepção de que o desenvolvimento tecnológico provavelmente vai levar a alguma perda líquida de postos de trabalho, mas é absolutamente seguro que certos grupos perderão consideravelmente mais — como pessoas mais velhas, mais pobres, com menor chance de aprender novas habilidades ou jovens formados em sistemas educacionais mais fracos.

Ao mesmo tempo, é também certo que os grupos mais educados, treinados e flexíveis são os que mais se beneficiam ao trabalhar nas empresas líderes, que, por sua vez, tendem a pagar remunerações acima da média. No mundo dos intangíveis, essas são as pessoas mais aptas a maximizar sinergias e capturar os spillovers, inclusive criando novas companhias. As empresas de tecnologia, certamente, não inventaram a recente piora na distribuição de renda, mas estão no centro dessa evolução.

Fábrica abandonada em Detroit: as regiões ligadas às indústrias antigas estão ficando para trás | Eric Thayer/Reuters

Outro efeito do desenvolvimento dos intangíveis é que sinergias e spillovers tendem a levar a atividade econômica a se concentrar em certos locais, porque a circulação de ideias, pessoas e recursos é facilitada pela proximidade das empresas. Naturalmente, o Vale do Silício é o exemplo supremo, mas não é o único.

Em muitas cidades, a percepção dos benefícios do desenvolvimento de um sistema de empresas de tecnologia está levando o poder público a trabalhar ativamente na atração desses empreendimentos. O exemplo mais recente de sucesso está em Nova York. No Brasil, também há uma busca ativa pela atração desses projetos de tecnologia, como é o caso das iniciativas dos municípios paulistas de São Carlos e Piracicaba ou de Florianópolis. Um subproduto dessa movimentação é uma eventual acentuação da desigualdade geográfica em detrimento de regiões mais ligadas às indústrias antigas. A comparação de Nova York e o estado da Califórnia, de um lado, e o decadente meio-oeste industrial, de outro, é muito clara nos Estados Unidos e tem efeitos políticos expressos, por exemplo, na eleição do presidente americano, Donald Trump, em 2016.

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Por fim, os efeitos para os negócios também tendem a ser perversos. Quanto menor for a retenção e a captura dos spillovers para determinada empresa, mais difícil será projetar seu fluxo de caixa e estimar seu valor. Nesse caso, o financiamento privado fica mais difícil e só o suporte do setor público poderá viabilizar o desenvolvimento de novas tecnologias e o surgimento de novas empresas. Como se vê, Capitalism without Capital é um livro muito importante para compreender muitas facetas da economia moderna e, especialmente, os dilemas da regulação e da política pública.


José Roberto Mendonça de Barros, um dos mais renomados economistas brasileiros, é sócio-diretor da consultoria MB Associados. Foi secretário de Política Econômica do governo Fernando Henrique Cardoso

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