Revista Exame

A história não contada de como Bezos venceu as fofocas sobre sua vida

Livro "Amazon sem Limites", de Brad Stone, conta como o bilionário e fundador da Amazon conseguiu fugir dos tabloides

Jeff Bezos: o executivo derrotou o sensacionalismo com a mesma presteza com que construiu seu império (Kena Betancur/Getty Images)

Jeff Bezos: o executivo derrotou o sensacionalismo com a mesma presteza com que construiu seu império (Kena Betancur/Getty Images)

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Da Redação

Publicado em 17 de junho de 2021 às 05h11.

Última atualização em 17 de junho de 2021 às 08h01.

Era 14 de fevereiro de 2019, começo da tarde, e talvez pela primeira vez nos 25 anos de história da Amazon Jeff Bezos estava preparado para se explicar a seus funcionários.

Bezos era um mestre na compartimentalização; sua capacidade de manter separados os intrincados fios de sua vida pessoal e profissional era incomparável. Foi esse talento que permitiu a ele construir a Amazon enquanto dirigia uma empresa espacial, a Blue Origin, e revitalizava o Washington Post — tudo isso enquanto mantinha sua vida familiar um tema privado. Mas esses fios estavam ficando emaranhados. Bezos, pai de quatro filhos, foi tema de matérias sensacionalistas do National Enquirer sobre seu relacionamento com uma ex-apresentadora de televisão casada.

Em vez de fazer o que a maioria dos bilionários faz diante de tal escrutínio — ficar quieto e esperar a poeira baixar —, Bezos foi a público. Ele escreveu um post lascivo em um blog que incluía descrições de fotos que o Enquirer alegava ter adquirido — entre elas uma “selfie abaixo da cintura”. Ele sugeriu que o jornal estava fazendo isso como retribuição política pelas reportagens do Washington Post sobre as conexões do Enquirer com o governo Trump.

Agora, diante do grupo de liderança da Amazon, a equipe S, Bezos se dirigia ao bode na sala. “A história está completamente errada e fora de ordem”, disse ele. “MacKenzie e eu tivemos conversas boas, saudáveis e adultas sobre isso. Ela está bem. As crianças estão bem. A imprensa está se divertindo.” Em seguida, ele tentou redirecionar a conversa para o assunto em questão: projeções de pessoal para o ano corrente. “Tudo isso causa muitas distrações, de modo que agradeço a vocês por se manterem focados”, disse.

O caso foi um choque para a maioria dos executivos seniores, embora recentemente alguns tivessem notado mudanças no comportamento do chefe. As reuniões da Op1, nome que a Amazon dá a seu ciclo anual de planejamento de fim de verão, tinham sido atrasadas ou adiadas; assistentes antigos de Bezos vinham tendo dificuldades para encontrar horário em sua agenda. Havia também helipontos que a Amazon tinha pedido para os postos avançados que a empresa planejava em Nova York e Arlington, na Virgínia. A solicitação enfureceu as autoridades locais, que já demonstravam ceticismo à ideia de conceder bilhões de dólares em incentivos fiscais a uma empresa com um valor de mercado de 1 trilhão de dólares, e contribuiu para o desmantelamento de uma segunda sede planejada no Queens.

Como alguns na reunião já sabiam, a nova namorada do chefe, Lauren Sanchez, era piloto de helicóptero. Bezos também tinha feito aulas de voo. E havia ainda a curiosa questão sobre as ações. Em 9 de janeiro, Jeff e MacKenzie Bezos anunciaram seu divórcio via Twitter. Mas algumas semanas antes os departamentos jurídico e financeiro da Amazon começaram a perguntar aos maiores acionistas institucionais da empresa se eles apoiariam a criação de uma nova classe de ações com redução nos direitos de voto. Estruturas de ações de duas classes têm sido usadas no Facebook, Google e Snap para concentrar o poder de voto entre os fundadores da empresa, dando-lhes o poder de decisão definitivo sobre questões de governança corporativa. A Amazon havia ido a público uma década antes de essas estruturas estarem na moda, de modo que Bezos não tinha esse poder. Agora ele aparentemente o queria.

A Amazon contestou com veemência que a vida pessoal de Bezos tivesse algo a ver com essas mudanças. Representantes de relações públicas alegaram que ter helipontos na cidade de Nova York teria sido “útil para certos eventos, como receber dignitários”. A versão oficial sobre as classes de ações era que a Amazon vinha explorando jeitos de continuar dando ações aos trabalhadores dos centros de distribuição e que poderia usar a segunda classe de ações para ir atrás de aquisições. Essas explicações sempre soaram um pouco mambembes. Porém, depois que Bezos tuitou a notícia de seu divórcio, algumas pes­soas que tinham ouvido falar no plano de ações passaram a presumir que a ideia era Bezos permanecer firmemente no controle da empresa diante de um acordo de divórcio de alto custo, que acabaria reduzindo sua participação de 18% para 12%.

Foi a primeira vez que alguns executivos seniores se lembraram de ter visto Bezos encurralado por adversários, que agora incluíam, de modo improvável, um executivo de Hollywood tentando vender selfies explícitas. Por outro lado, o episódio foi o ápice da transformação de Bezos, que em dez anos passou de um geek de tecnologia obstinado ao mestre de um império de trilhões de dólares. Entre seus inimigos agora estavam Donald Trump, que desprezava o Post, e Mohammed bin Salman, o príncipe herdeiro da Arábia Saudita, que guardava rancor da cobertura do jornal sobre o assassinato do repórter dissidente Jamal Khashoggi e que, mais tarde, seria implicado em um suposto plano para instalar spyware no smartphone de Bezos. Bezos vinha navegando por tudo isso como sempre: pensando de modo não convencional e manipulando as alavancas da mídia. De algum modo, o jeito dele costumava funcionar.

De volta ao complexo da sede da Amazon em Seattle, no 6o andar da torre Dia 1, a reunião de planejamento se estendeu até o início da noite. Executivos de finanças apressados entravam e saíam da sala distribuindo planilhas. Bezos talvez não fosse capaz de controlar a enxurrada de tabloides sensacionalistas que cobriam com entusiasmo suas escapadas sibaríticas com Sanchez, mas ele podia controlar o crescimento do número de funcionários em todas as divisões da Amazon.

À medida que o Sol se punha sobre as Montanhas Olímpicas, projetando um brilho dourado na sala de conferências, os executivos começavam a olhar furtivamente para seus telefones e responder às mensagens de seus entes queridos. Finalmente, às 19h30, o vice-presidente sênior Jeff Blackburn se pronunciou e disse o que todo mundo estava pensando: “Ei, Jeff, quanto tempo você acha que esta reunião vai durar? Muitos de nós temos planos.” Era Dia dos Namorados, afinal.

“Ah, é”, disse Bezos, rindo. “Tinha me esquecido disso.” 

Por anos, Bezos teceu a história de seu namoro e casamento com Mac­Kenzie Bezos (hoje MacKenzie Scott) em sua personalidade pública. Em discursos, ele fazia piadas sobre sua jornada de solteiro para encontrar uma mulher com recursos o suficiente para “me tirar de uma prisão do Terceiro Mundo”, como se a livresca MacKenzie, escritora formada em inglês em Princeton, pudesse um dia descer de rapel do telhado de alguma prisão esquecida por Deus com uma micha nos dentes.

Lauren Sanchez: apresentadora foi pivô de escândalo com executivo (Gregg DeGuire/Getty Images)

Porém, enquanto Bezos e seus encarregados cultivavam a imagem de um marido e pai de família amoroso, ele e sua parceira desenvolviam apetites divergentes pela atenção do público. Depois que a Amazon instaurou um posto avançado em Hollywood e começou a produzir filmes, Bezos foi às premiações do Globo de Ouro e do Oscar, apareceu em estreias e foi anfitrião de um encontro anual em uma propriedade palaciana de Beverly­ Hills, bem acima da Sunset Strip. Em uma dessas festas em dezembro de 2016, para Manchester by the Sea, primeiro filme da Amazon Studios a ganhar o Oscar, ele foi fotografado com Sanchez e seu então marido, Patrick Whitesell, o poderoso presidente da agência de talentos Endeavor.

MacKenzie acompanhou o marido a alguns eventos de Hollywood, mas, como ela própria admitiu, não era uma pessoa social. “Coquetéis podem ser algo desesperador para mim”, disse ela à Vogue. “A brevidade das conversas, a quantidade delas — não é minha praia.” Amigos disseram que os pais estavam comprometidos com os quatro filhos e em mantê-los o mais longe possível do impacto corrosivo da celebridade e da riqueza extravagante.

Donald Trump e Mohammed bin Salman: os novos inimigos de Bezos (Bandar Algaloud/Getty Images)

Em 2018, Bezos estava saindo com Sanchez, como mostraram mais tarde documentos legais, ao mesmo tempo que mantinha intacto um casamento de aparências. Sua nova namorada, então com 48 anos, era entusiasmada e sociável e, em muitos aspectos, o oposto de sua parceira. Como Bezos, Sanchez nascera em Albuquerque e, embora suas famílias não se conhecessem, o casal mais tarde mapearia todas as coincidências entre seus parentes em lugares como o Bank of New Mexico, onde os pais de Bezos, Jackie e Mike, se encontraram pela primeira vez, e onde o primo de Sanchez já havia trabalhado. O pai de Sanchez, Ray, dirigia uma escola de voo local, Golden Airways, e a mãe dela, Eleanor, tinha brevê de piloto e sobreviveu a um acidente de avião quando Lauren tinha 9 anos.

No fim dos anos 1990, depois de iniciar uma carreira de jornalista em uma estação de TV local em Phoenix, Sanchez se tornou correspondente do programa de fofoca Extra e, em seguida, âncora matinal do Bom Dia L.A., da Fox. Ela apresentou a primeira temporada do reality show So You Think You Can Dance e interpretou alguns pequenos papéis no cinema — é ela a repórter que aparece aos 91 minutos de Clube da Luta. Ela teve um filho com Tony Gonzalez, indicado ao Hall da Fama da NFL e locutor, antes de se casar com Whitesell e ter outro filho e uma filha.

No início de 2018, sua empresa de helicópteros, a Black Ops Aviation, estava filmando videodocumentários para a Blue Origin e postando-os no YouTube. Algumas semanas depois, Sanchez disse a seu irmão mais velho, Michael, que queria apresentá-lo a seu novo namorado. Em abril eles jantaram no Hearth & Hound, um restaurante descolado de West Hollywood, acompanhados do marido de Michael e dois outros amigos. Michael sentou-se na frente de Bezos e os dois se deram bem. Mais tarde, Michael se disse alarmado pelo modo como sua irmã e o CEO da Amazon expressavam abertamente seu afeto, potencialmente à vista dos paparazzi locais, sendo que ambos ainda eram casados.

Se alguém avisasse Bezos de que um caso com uma celebridade menor casada poderia causar uma reação pública desagradável, ele ignoraria esse alerta. Ele levou Sanchez a ­Seattle com a mãe e o irmão dela, onde fizeram um passeio VIP pelas Esferas, os três conservatórios de vidro interligados na sede da Amazon, e a Washington (D.C.), onde ele mostrou a ela a gráfica que imprime o Post. Ela foi ao lançamento de um foguete da Blue Origin naquele verão e ajudou a produzir um vídeo motivacional de 2 minutos para a empresa de foguetes de Bezos com fotos aéreas­ e uma rara aparição falada do próprio CEO, com Your Blue Room, do U2, e Brian Eno de trilha sonora de fundo. “A necessidade humana de explorar é algo profundo dentro de todos nós”, Bezos entoou no início do vídeo.

Como muitos casais modernos, o relacionamento de Bezos e Sanchez também se desenrolou digitalmente. O homem mais rico do mundo estava, para ser mais explícito, trocando mensagens de texto picantes. Sanchez compartilhou muitos desses textos e fotos com seu irmão, um diretor de talentos que representava uma série de comentaristas de canais de TV a cabo e concorrentes de reality shows. Mas tudo isso vinha acontecendo bem longe do campo de visão de Bezos. Ele estava fascinado pela aventureira Sanchez e, por natureza, não estava predisposto a ser paranoico ou imediatamente desconfiado de ninguém — que dirá do irmão de sua nova amante. Sua filosofia, segundo um amigo, era essencialmente: “É melhor presumir confiança e descobrir que você estava errado do que sempre presumir que as pessoas estão tentando ferrar você”. 

Ao longo do verão de 2018, à medida que o romance entre Bezos e Sanchez se intensificava, o Enquirer saía de alguns anos catastróficos. O número de vendas em banca vinha caindo, e o editor do jornal, David ­Pecker, era acusado de comprar os direitos de histórias sobre as infidelidades conjugais de seu amigo Donald Trump para, em seguida, se recusar a publicá-las, prática conhecida como “pegar e matar”. Isso atraiu para a empresa-mãe do Enquirer, a American Media Inc. (AMI), a atenção dos promotores federais no Distrito Sul de Nova York, que vinham investigando possíveis violações das leis de financiamento de campanha.

O principal editor de Pecker, o diretor de conteúdo Dylan Howard, era um australiano baixo e corpulento de 36 anos e um cronista ácido das hipocrisias e indiscrições das celebridades americanas. Howard foi a força jornalística por trás de supernovas dos tabloides, como as declarações antissemitas de Mel Gibson e o filho fora do casamento de Arnold Schwarzenegger. Ele protegia seu trabalho e era combativo com os rivais. Quando o Post cobriu agressivamente as omissões e práticas da AMI, Howard disse aos repórteres que examinassem a vida pessoal do rico dono do jornal.

Uma possível linha de investigação, de acordo com um e-mail enviado à equipe da AMI no final do verão, era examinar a relação de Bezos com a família de seu pai biológico, Ted Jorgensen, e por que o CEO não os contatou quando Jorgensen estava morrendo, em 2015.

No dia seguinte, segunda-feira, 10 de setembro, Michael Sanchez escreveu um e-mail para Andrea Simpson, uma repórter da AMI em Los Angeles. Sanchez e Simpson eram amigos íntimos. Ele regularmente enviava a ela notícias de seus clientes, e os dois fizeram tatuagens juntos por capricho em uma ocasião. (A dele, no antebraço, traz a frase Je suis la tempête: “Eu sou a tempestade”.) No e-mail, Sanchez disse que tinha uma dica quente para Simpson. Um amigo, escreveu ele, trabalhava para um “tipo Bill Gates” que era casado e tinha um caso com “uma atriz casada da segunda divisão”. O amigo, escreveu Sanchez, tinha fotos comprometedoras do casal, mas queria um pagamento de seis dígitos pelo furo. Sanchez afirmou estar trabalhando como intermediário.

Simpson e seus editores em Nova York não tinham como adivinhar as identidades dos amantes misteriosos, especulando em e-mails se não seriam personalidades como Evan Spiegel e Mark Zuckerberg. Durante semanas, Sanchez os manteve no escuro e ainda tentou aumentar o preço pedido, insinuando que a história podia acabar nas mãos de um tabloide britânico. No início de outubro, ele se encontrou com Simpson e mostrou a ela mensagens de texto e fotos com os rostos desfocados dos dois. “Só dando uma olhada ao redor e pelo corpo, creio que possa ser Jeff Bezos”, Simpson escreveu a seus chefes.

Finalmente, em 18 de outubro, Sanchez ligou para Howard e revelou que o “tipo Bill Gates” era na verdade o CEO da Amazon. Sanchez e a AMI assinaram então um contrato, o que daria a ele direito a um pagamento de cerca de 200.000 dólares — um dos maiores valores que o Enquirer já gastara com uma história. O contrato estipulava que o jornal faria todos os esforços para preservar o anonimato de Sanchez e manter sua identidade como fonte do furo.

Sanchez ainda não havia revelado o nome da “atriz casada da segunda divisão”, mas não demorou muito para que os editores do Enquirer, que despacharam fotógrafos para rastrear o jato de Bezos, descobrissem. Howard estava em uma feira da indústria do entretenimento em Cannes (França), quando recebeu fotos do CEO da Amazon e Lauren desembarcando do Gulfstream G650ER de Bezos.

Em 23 de outubro, Michael Sanchez voou para Nova York, jantou com Howard e James Robertson, outro editor do Enquirer, e corroborou o que eles agora sabiam. Sanchez também mostrou a eles um pen drive contendo uma coleção de textos de Bezos para sua irmã, além de um punhado de fotos pessoais que o casal havia trocado, e insinuou que em alguma outra oportunidade poderia mostrar a eles uma foto mais explícita que Bezos tinha enviado para demonstrar sua masculinidade para Lauren.

Mais tarde haveria muita especulação sobre como o Enquirer conseguiu a história do caso Bezos-Sanchez — incluindo alegações não comprovadas de que o ex-marido de Sanchez, Patrick Whitesell, estava envolvido, assim como uma possível intriga internacional envolvendo a Arábia Saudita. Porém, Howard, Robertson e Simpson diriam posteriormente em um tribunal federal que Michael Sanchez tinha sido a única fonte de todas as informações e do material comprometedor que eles receberam durante a investigação.

Dentro dos escritórios sem brilho da AMI no extremo sul de Manhattan, a história de Bezos foi recebida com entusiasmo e ansiedade. A empresa havia entrado com um pedido de concordata em 2010 e estava repleta de dívidas após a aquisição de revistas como a In Touch e a Life & Style. Um esforço para garantir um investimento da Arábia Saudita para financiar uma oferta para comprar a Time não tinha dado certo, e Anthony Melchiorre, o raramente fotografado diretor da companhia com controle majoritário da AMI — o fundo de hedge Chatham Asset Management, de Nova Jersey — estava preocupado com qualquer coisa que pudesse colocar a AMI em um novo percalço jurídico.

MacKenzie Scott: ex-mulher de Bezos é avessa a eventos sociais (Jörg Carstensen/Getty Images)

Em setembro daquele ano, a AMI assinou um acordo que a livrou de um processo do Departamento de Justiça americano sobre alegações de que havia tentado esconder histórias negativas sobre Trump. O acordo exigia que seus executivos cooperassem com a investigação federal sobre o advogado de Trump, Michael Cohen, e que no futuro operassem com honestidade incontestável. Isso garantia que a empresa permanecesse sob os olhos vigilantes dos promotores durante anos. Romper o acordo poderia significar a ruína financeira da AMI.

Pecker, um chefe temperamental que conduzia grande parte de seu trabalho pelo celular enquanto dirigia entre suas casas e escritórios em Connecticut e na cidade de Nova York, chamou um rascunho do artigo sobre Bezos de “a melhor história jornalística que o Enquirer já fez” e se gabou em um e-mail aos editores de que “cada página de uma história deveria ser outro golpe mortal em Bezos”, segundo uma pessoa a par das investigações criminais. Mas ­Pecker também estava apavorado com a ideia de ser processado pelo homem com os bolsos mais fundos do mundo. Ele exigiu que a história fosse “100% à prova de balas” e vacilou sobre quando, e até mesmo se, eles deveriam publicá-la.

No resto daquele outono, o Enquirer trabalhou na história com a ajuda de Michael Sanchez. Ele enviou por e-mail ao jornal mais fotos e mensagens de texto e avisou os editores sobre os planos de viagem do casal. Quando ele jantou com Bezos e sua irmã no restaurante Felix Trattoria em Venice, na Califórnia, em 30 de novembro, dois repórteres estavam parados em mesas próximas enquanto fotógrafos clicavam discretamente o casal. Sobre a selfie explícita prometida, contudo, Sanchez pareceu ter se enganado. Ele havia combinado compartilhá-la com Howard em Los Angeles no início de novembro, mas cancelou a reunião. Algumas semanas depois, em 21 de novembro, depois de os editores do Enquirer continuarem a acuá-lo, ele finalmente concordou em mostrá-la a Simpson enquanto Howard e Robertson assistiam de Nova York por uma conferência de vídeo.

David Pecker: publisher da AMI divulgou caso extraconjugal de Bezos (Karjean Levine/Getty Images)

Nada disso, afirma Sanchez, configurava traição dele à sua irmã. Ela e Bezos vinham tocando seu relacionamento abertamente, e era mera questão de tempo até que suas famílias e o resto do mundo descobrissem. “Tudo o que fiz protegeu Jeff, Lauren e minha família”, disse Sanchez mais tarde por e-mail. “Eu jamais trairia quem quer que fosse.” Ele também acreditava, ingenuamente, que seu acordo original com a AMI impedia a empresa de mídia de usar o material mais embaraçoso que ele havia fornecido.

Em um ponto, pelo menos, parece que Sanchez não traiu sua irmã. Ele disse mais tarde aos investigadores do FBI que na verdade nunca teve uma fotografia explícita de Bezos. Na reunião virtual de 21 de novembro, Sanchez não mostrou imagem alguma de Bezos. O que ele exibiu foi uma fotografia aleatória de uma genitália masculina que ele havia tirado de um site de acompanhantes chamado Rent.Men. 

Em 7 de janeiro de 2019, os editores do Enquirer enviaram textos a Bezos e Lauren que começavam com uma única e incendiária frase: “Estou escrevendo para pedir uma entrevista com vocês sobre o seu caso de amor”. O casal se moveu depressa em resposta. Lauren se voltou para a pessoa mais próxima a ela que melhor conhecia os descaminhos sem escrúpulos da indústria dos tabloides: seu irmão. Michael inocentemente se ofereceu para tirar proveito de seu relacionamento com os editores do Enquirer para descobrir o que eles tinham. Depois de assinar um contrato de 25.000 dólares por mês com a irmã, ele ligou para Howard para anunciar que estava atuando como representante dela, e sugeriu que fosse a Nova York revisar as reportagens do jornal (que, é claro, ele havia fornecido). Confiante na promessa de confidencialidade da AMI, Michael estava agora jogando para os dois lados.

Bezos, enquanto isso, envolveu seu consultor de segurança de longa data, Gavin de Becker, bem como o advogado de entretenimento dele, Marty Singer, que atuava em Los Angeles. E, no início de 9 de janeiro, ele instruiu o departamento de relações públicas da Amazon a divulgar a notícia do rompimento de seu casamento em sua conta oficial no Twitter. “Queremos conscientizar as pessoas sobre uma evolução em nossas vidas”, começava o comunicado. “Após um longo perío­do de exploração amorosa e separação experimental, decidimos nos divorciar e continuar nossas vidas compartilhadas como amigos.”

O Enquirer era publicado às segundas-feiras, mas Howard, reagindo rapidamente, convenceu Pecker a autorizar uma edição especial de 11 páginas e publicou a primeira história do jornal online naquela noite, uma quarta-feira. “Chefe casado da Amazon, Jeff Bezos, se divorcia por causa de uma aventura com esposa de magnata do cinema”, berrava a manchete. Durante os cinco dias seguintes, o Enquirer publicou histórias adicionais com mais detalhes sobre Bezos e Sanchez e suas trocas de mensagens particulares.

Poucos dias depois, Michael negociou um cessar-fogo temporário: a AMI pararia de publicar artigos em troca de acesso exclusivo dos paparazzi a Lauren caminhando com dois amigos no aeroporto de Santa Monica. O artigo foi publicado no dia 14 de janeiro na revista Us ­Weekly, da AMI, junto com aspas de outras ocasiões e o gentil título “Primeiras fotos mostram namorada de Jeff Bezos, Lauren Sanchez, despreocupada após escândalo”.

Depois que a história foi publicada, Michael enviou uma mensagem de texto a Howard para agradecê-lo. “O nível de cooperação que você e eu construímos em 14 dias vai estar nos livros acadêmicos”, escreveu ele. Na semana seguinte, Howard mandou um e-mail a Michael e garantiu a ele que seu anonimato como o vazador original era seguro. “A história não contada — por assim dizer — não foi contada”, escreveu ele. "Estou guardando ela para a minha lápide."

Mas Bezos não estava satisfeito. Ele se perguntava se a história do Enquirer tinha sido uma retribuição política por artigos publicados no Washington Post e deu a de Becker “todo o orçamento de que ele precisava para investigar os fatos” e saber como o jornal obteve suas mensagens privadas. De Becker tinha trabalhado em dois conselhos consultivos presidenciais, escrito quatro livros sobre a psicologia da violência e prestado consultoria para uma série de figuras de alto nível da política e do entretenimento. Bezos selecionou seu livro de 1997, The Gift of Fear: Survival Signals That Protect Us From Violence ("O Dom do Medo: Sinais de Sobrevivência que nos Protegem da Violência", em tradução livre do inglês) como um dos primeiros tópicos de discussão do clube de leitura do time S, e garantiu pessoalmente que ele fosse oferecido nas lojas físicas da Amazon.

Após uma série de telefonemas e mensagens de texto com Michael, de Becker percebeu que algo estava errado. Para divulgar suas suspeitas, de Becker recorreu ao Daily Beast, empresa de mídia dirigida por Barry Diller, um amigo de Bezos. Em artigo publicado em 31 de janeiro, o Daily Beast revelou que de Becker identificou Michael como um possível culpado. Mas ele também cogitava um cenário alternativo — em que descrevia Bezos como um mecenas do jornalismo honesto e o adversário do contestado presidente sem compromisso com fatos dos EUA. Ele alegou que a investigação do Enquirer estava ligada à campanha de Trump contra o Washington Post, opinando no artigo que "pistas robustas apontam para motivos políticos".

Não havia evidências por trás dessa insinuação, mas ela mudou a vantagem do jogo para Bezos. O chefe da AMI, Pecker, temia que mesmo um boato sobre o envolvimento do jornal em uma conspiração política contra um bilionário de renome pudesse minar o acordo que impedia a empresa de ser processada. Ele implorou a Howard que resolvesse a briga com o time de Bezos e que garantisse o reconhecimento de que a investigação não tinha motivação política e que o Enquirer não havia recorrido a meios ilegais para conseguir a história.

Na primeira semana de fevereiro, Howard pediu a Singer, o advogado de De Becker, que convencesse Bezos e de Becker de que os artigos do Enquirer não eram um ataque político, e prometeu que daria um fim à publicação de histórias prejudiciais. Singer queria saber exatamente que mensagens de texto e fotos não publicadas o jornal tinha. Howard estava inseguro; ele suspeitava de que o advogado estivesse procurando a confirmação da identidade de sua fonte anônima. E ele estava nervoso com uma história no Post que ameaçava atribuir mais uma vez motivos políticos à investigação do Enquirer.

Em um e-mail que enviou a Singer na tarde de 5 de fevereiro, o diretor de conteúdo da AMI escreveu: “Com o Washington Post prestes a publicar rumores infundados sobre a reportagem inicial do National Enquirer, gostaria de descrever a você as fotos obtidas durante nossa apuração.” Howard então listou as nove fotos pessoais que Bezos e Lauren enviaram um ao outro. Estas foram as fotos que ela compartilhou com seu irmão e que seu irmão havia encaminhado ao Enquirer.

Com uma abundância de bravata no pior momento possível, Howard também fez referência à “selfie abaixo da cintura” que ele capturou via conferência virtual do encontro entre Michael e Simpson. Sem que Howard soubesse, ele estava se gabando da imagem anônima que Michael havia roubado do Rent.Men. “Não daria prazer a nenhum editor enviar este e-mail”, concluiu Howard. “Espero que o bom senso prevaleça — e rapidamente.”

Mas a equipe de Bezos, em vez disso, tirou proveito da vantagem que conseguiu. Em um artigo publicado naquela noite no Washington Post, de Becker mais uma vez identificou Michael como um possível culpado e acusou o vazamento de ser "politicamente motivado". Depois que o artigo foi publicado, Pecker telefonou a Howard para dizer que Melchiorre, o administrador do fundo de hedge, estava “cuspindo fogo” e pressionou Howard mais uma vez para pôr fim à maluquice. Howard então começou a negociar diretamente com de Becker por telefone. Suspeitos e cautelosos, os dois gravaram suas conversas.

Nas transcrições das ligações, Howard parece tentar evitar fazer ameaças explícitas, mas continua a manter os direitos do jornal de publicar o conteúdo. “Isso não deve de modo algum ser interpretado como um tipo de chantagem ou coisa parecida!”, diz ele ao investigador veterano em determinado momento. “É do interesse de ambas as partes chegar a um acordo, dado o espectro de ações judiciais que estão pairando por aí.”

Howard e de Becker pareciam estar fazendo progresso. Em 6 de fevereiro, o conselheiro-geral adjunto da AMI enviou por e-mail à equipe de Bezos os termos propostos de um acordo. A AMI concordaria em não publicar ou compartilhar nenhuma das fotos ou textos ainda não publicados se Bezos e seus representantes se juntassem à empresa na negação pública da ideia de que a matéria do Enquirer tivesse motivação política.

Bezos interpretou o e-mail como uma extorsão declarada. Em 7 de fevereiro, ele disse a seus conselheiros que sabia exatamente o que iria fazer. Ele escreveu um artigo de mais de mil palavras intitulado “Não, obrigado, Sr. Pecker”, e o entregou ao vice-presidente sênior de assuntos corporativos globais da Amazon, Jay Carney, cuja sobrancelha franziu de surpresa ao lê-lo pela primeira vez durante uma videoconferência com colegas. Em seguida, Bezos postou o texto no site de publicações Medium.

O post foi estrondoso. Nele, Bezos incluiu os e-mails do advogado e do editor da AMI em sua humilhante totalidade. Porém, por mais embaraçoso que fosse ter seus textos libidinosos descritos em detalhes, Bezos sabia que eles também eram contundentes para a AMI. “Algo incomum aconteceu comigo ontem”, escreveu ele, no tom arrogante de alguém extremamente confiante em sua posição. “Recebi uma oferta que não podia recusar. Ou, pelo menos, foi o que as pessoas do alto escalão do National Enquirer pensaram. Estou feliz que eles tenham pensado assim, porque os encorajou a colocar tudo por escrito.” Ele deixou de mencionar que eles só o fizeram depois de serem pressionados por um advogado que estava trabalhando em nome dele. Bezos, ao que parecia, havia manipulado seus adversários para levá-los a criar um rastro de documentos incriminador.

Bezos então deixou explícito o que de Becker só tinha insinuado: Ele sugeriu que a AMI estava atacando-o por ordem do governo Trump e do governo da Arábia Saudita. Sua posse do Washington Post, escreveu Bezos, “é um complicador para mim. É inevitável que certas pessoas poderosas que experimentaram a cobertura jornalística do Washington Post concluam de maneira equivocada que eu sou inimigo delas.” Ele também acrescentou que não se arrependia de ser o dono do jornal. Era, escreveu ele, “algo de que terei ainda mais orgulho quando estiver com 90 anos e revisando minha vida, se der a sorte de viver tanto tempo assim”.

Esse sentimento nobre, é claro, tinha pouco a ver com seu relacionamento extraconjugal, ou com as manobras do irmão de sua namorada, ou com as tentativas desesperadas da AMI de escapar de uma nuvem de suspeita política. Em outras palavras, foi uma tacada de gênio de relações públicas. Bezos se vendia como um defensor solidário da imprensa e um oponente da “reputação há muito merecida da AMI de instrumentalizar privilégios jornalísticos, se escondendo atrás de proteções importantes e ignorando os princípios e o propósito do verdadeiro jornalismo”.

Para os leitores interessados, Bezos estava tomando uma posição corajosa contra as táticas tortuosas dos aliados de Trump, ao mesmo tempo em que oferecia de modo vulnerável suas próprias fotografias embaraçosas como garantia. “Bezos expõe Pecker”* declarou o New York Post em uma chamada memorável, enquanto a simpatia pública mudava para o lado de Bezos.

De Becker deu continuidade a essas afirmações em março, num artigo para o Daily Beast. Ele destacou as tentativas frenéticas da AMI de se defender da acusação de se envolver em uma conspiração política e sugeriu que deve haver outra camada de verdade oculta no infortúnio todo. “Nossos investigadores e vários especialistas concluíram com muita confiança que os sauditas tiveram acesso ao telefone de Bezos e obtiveram informações privadas”, escreveu ele. “A partir de hoje, não está claro em que grau a AMI estava ciente dos detalhes, se é que estava.” A AMI negou a acusação, revelando que Michael Sanchez, e não qualquer outro tipo de espionagem internacional ou cibernética, tinha sido sua fonte.

Porém, nada disso ajudou a AMI. Uma narrativa desfavorável na mídia se cristalizou quase imediatamente, na qual o regime de Mohammed bin Salman tinha tomado conhecimento da relação de Bezos com Lauren e alertado o Enquirer ou mesmo complementado as informações que o jornal recebeu do irmão dela. Considerando o flerte malsucedido de Pecker com o reino saudita em busca de financiamento, essa possibilidade pode fazer certo sentido lógico se você não estiver prestando muita atenção. Mas não havia nenhuma evidência concreta para apoiar a hipótese — apenas uma névoa de eventos sobrepostos, elos fracos entre figuras díspares e mais coincidências estranhas.

Mais uma vez, Bezos tinha saído por cima. A navegação dele na crise foi típica de sua abordagem idiossincrática para construir a Amazon. Ele havia contornado uma mídia em grande parte cética para apelar diretamente às pessoas comuns, ferindo apenas de leve os fatos no processo. Assim como superou incontáveis rivais, ele intuitivamente sentiu quais eram as vulnerabilidades da AMI — e as atacou de modo cirúrgico. O empresário que já comandava o negócio de venda de livros, e passou a comandar grande parte do varejo, além da computação em nuvem, Hollywood, alto-falantes domésticos e assim por diante, agora assegurava seu domínio sobre aquele que é o mais improvável dos setores — o jogo de mídia das celebridades.

Pecker culpou Howard pelo desastre e o removeu de seu papel editorial na AMI; Howard deixou a empresa em abril de 2020, quando seu contrato terminou. Em dois processos de difamação separados no tribunal distrital de L.A., Michael processou a AMI, e também Bezos e de Becker. Ele perdeu quase todas as decisões judiciais subsequentes, à medida que os fatos evaporavam. Já no Distrito Sul de Nova York, promotores federais investigaram a alegação de Bezos, feita no artigo do Medium, de que fora extorquido pela AMI depois que a empresa de mídia publicou o artigo do Enquirer. As evidências não deviam ser muito consistentes, contudo, porque os promotores abandonaram o assunto, sem alarde e sem nunca abrir um processo.

Implacáveis, Bezos e Lauren começaram a aparecer juntos em público. Antes da pandemia, eles participaram da conferência de investidores da Allen & Co. em Sun Valley (Idaho), misturando-se com Warren Buffett, Tim Cook e Mark Zuckerberg. Poucos dias depois, assistiram às finais masculinas de Wimbledon do camarote real, três fileiras atrás do Príncipe William e de Kate Middleton. Em agosto de 2019, eles estavam no superiate de David Geffen. E, em outubro, Bezos apareceu diante do antigo consulado saudita em Istambul para honrar o aniversário de um ano do assassinato de Jamal Khashoggi. De Becker cuidou dos intrincados arranjos de segurança. Bezos sentou-se ao lado de Hatice Cengiz, noiva de Khashoggi, e a abraçou durante a cerimônia.

À medida que esses gestos dramáticos substituíam o escândalo do consciente coletivo, só restava aos funcionários da Amazon assistir e se perguntar: O CEO deles ainda pertencia a eles ou a alguma dimensão alternativa de riqueza, glamour e intriga? Bezos parecia dar as caras na imprensa e no escritório com a mesma frequência, comprando obras de arte históricas e arrematando o terreno de 9 acres de Geffen em Beverly Hills por 165 milhões de dólares, um recorde na Califórnia. Bezos agora tinha ambições pessoais e profissionais além da Amazon. Esse ponto de inflexão ficou evidente em fevereiro, quando a empresa anunciou que seu fundador se tornaria presidente do conselho e passaria as rédeas de CEO para Andy Jassy, um adjunto de longa data que tinha supervisionado a ascensão lucrativa da Amazon Web Services (AWS). Antes da transição, Bezos registrou mais uma vitória, em cima do sindicato que tentava organizar os trabalhadores de um centro de distribuição da Amazon em Bessemer, no Alabama.

Os funcionários agora tinham ainda mais motivos para se perguntar: O que o futuro reservava para seu fundador? Pelo menos parte da resposta a essa questão podia ser encontrada nos estaleiros da construtora holandesa de iates personalizados Oceanco. Lá, fora de Roterdã, uma nova criação vinha tomando forma em segredo: uma escuna de 127 metros de comprimento e três mastros sobre a qual, mesmo nos confins sussurrantes dos montadores de barcos de luxo, praticamente nada se sabia — a não ser que, após a conclusão, será um dos mais sofisticados iates à vela existentes. A Oceanco também estava construindo um iate de apoio para Bezos, que fora expressamente encomendado e projetado para incluir — você adivinhou certo — um heliponto.

Tradução por Fabrício Calado Moreira

*Nota do tradutor: "Pecker" em português é "passarinho", gíria para o órgão genital masculino


Adaptado do livro Amazon sem Limites
(Amazon Unbound: Jeff Bezos and the Invention of a Global Empire. Copyright 2021), de Brad Stone. Reproduzido com permissão de Simon & Schuster. Todos os direitos reservados.

*Tradução de Fabrício Calado Moreira.

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