Canal de Nyhavn, em Copenhague: saúde e educação ao alcance de todos no país (Jan Wlodarczyk/AGB Photo/Exame)
Da Redação
Publicado em 8 de novembro de 2018 às 05h50.
Última atualização em 8 de novembro de 2018 às 05h50.
O paulistano Carlos Monteiro, de 33 anos, poderia confortavelmente esperar para assumir o negócio iniciado por seu pai, o empresário Jurandy Monteiro, dono de uma camisaria, a Fascynios, que começou em 1990 com uma pequena oficina no bairro do Bom Retiro e hoje emprega cerca de 300 pessoas e produz 460.000 camisas masculinas por ano. Carlos se formou em administração de empresas e chegou a trabalhar por um tempo com o pai, mas o destino o levou para longe do Bom Retiro.
O “destino”, no caso, foi a dinamarquesa Cathrine Nielsen, que Carlos conheceu em 2010, quando ambos eram trainees no Consulado da Dinamarca em São Paulo. Eles começaram a namorar, se casaram e, em 2013, se mudaram para Odense, cidade a 140 quilômetros de Copenhague, que atrai turistas por ser a terra natal do escritor Hans Christian Andersen. Carlos teve duas filhas e, ao lado de um sócio, fundou uma pequena consultoria, a Biassa, que prospecta negócios para empresas interessadas em vender seus produtos para o Brasil e para outros mercados.
O empreendedor às vezes sente saudade do Brasil, principalmente no inverno, quando a temperatura em Odense cai abaixo de zero grau e os dias ficam mais curtos — o sol nasce depois das 8h30 e se põe antes das 16 horas. “Quem trabalha em escritório praticamente não vê a luz do sol”, diz Carlos, enquanto estaciona seu triciclo — com o qual diariamente leva as filhas à creche — num parque em Odense e o protege com um cadeado. “Este país é absolutamente seguro, mas bicicletas e triciclos são roubados”, diz.
Apesar do inverno gelado e de ainda sofrer para dominar a língua dinamarquesa, ele se sente integrado à vida local. Não reclama nem mesmo dos impostos que paga no país. Carlos tem um pró-labore mensal de 40.000 coroas dinamarquesas, pouco mais de 23.000 reais. Quase metade desse valor fica com o Estado — ele recolhe 46% de imposto de renda, enquanto no Brasil pagaria a alíquota máxima de 27,5%. “É muita coisa, mas é o preço que pagamos para ter uma vida sem grandes preocupações”, afirma.
Como Carlos, toda pessoa que mora na Dinamarca precisa pagar uma série de impostos. A maior fatia é a que incide sobre a renda. Além do imposto cobrado pelo governo nacional, há um imposto municipal, uma contribuição de saúde e até mesmo um imposto religioso. Tudo somado, a alíquota do imposto de renda varia de 41% a 56%. Há também o VAT, o imposto indireto de 25% que incide sobre todos os bens e serviços, como alimentos, remédios, gás e energia elétrica. E, ainda, há impostos especiais sobre alguns produtos, como carros — a taxa para registrar um veículo chega a 150%.
Com isso, a versão básica do Toyota Corolla custa 252.000 coroas (146.000 reais). No Brasil, o Corolla básico zero-quilômetro sai por 85.000 reais. Considerando os impostos diretos e indiretos, o Estado dinamarquês retém mais de 70% da renda de um trabalhador. Quando se somam todos os tipos de impostos, a receita fiscal representa 46% do PIB, a maior carga tributária do mundo. No Brasil, a fatia é de 32%.
Parece um paradoxo, mas o povo que mais paga impostos é também um dos mais felizes do mundo. De acordo com a edição 2018 do Relatório Mundial de Felicidade, das Nações Unidas, a Dinamarca é o terceiro país mais feliz do mundo, atrás apenas da Finlândia e da Noruega — dois países que estão também entre os que cobram mais impostos dos cidadãos. O estudo leva em conta seis fatores que contribuem para o bem-estar das pessoas: renda, expectativa de vida saudável, assistência social, liberdade, confiança e generosidade. “Os dinamarqueses não necessariamente ficam felizes em pagar impostos, mas eles aceitam a alta carga tributária e apoiam o governo porque conseguem ver que seu dinheiro é bem aplicado”, diz Torben Andersen, professor de economia da Universidade de Aarhus, na região central do país.
Outro estudioso do assunto, Bent Greve, professor de administração pública na Universidade de Roskilde, nas proximidades de Copenhague, também não vê contradição entre pagar altos impostos e ser feliz. “Na Dinamarca, a alta carga tributária é uma pré-condição para a felicidade, já que são os impostos elevados que possibilitam o acesso universal aos benefícios sociais”, diz Greve, autor de vários livros sobre o Estado de bem-estar social — um deles, Felicidade, publicado no Brasil em 2013 pela Editora da Unesp, analisa as relações entre as políticas públicas e a felicidade das pessoas. Greve compara o sistema de bem-estar social da Dinamarca — que começou a ser moldado nos anos 1880 para proteger crianças, idosos e pobres dos efeitos da Revolução Industrial — a um cofrinho no qual a população deposita mensalmente as economias. “Muitas pessoas gostariam de colocar menos dinheiro no cofrinho, mas sabem que, quando precisarem, poderão contar com essa fonte comunitária de recursos.”
O sistema de bem-estar social dinamarquês é universal — todos os cidadãos têm acesso gratuito à saúde e à educação, independentemente do valor com que cada um contribui para o “cofrinho” da nação. O paulistano Carlos já teve a oportunidade de ver como isso funciona na prática. Há dois anos, sua filha mais nova teve um mal súbito e desmaiou à mesa de jantar. Sua mulher ligou para o pronto-socorro e, em menos de 10 minutos, uma ambulância estava na porta de sua casa. “O sistema funciona, e funciona muito bem”, diz Carlos. Além do valor que é descontado mensalmente no imposto de renda, ele não tem nenhuma despesa adicional com saúde. Mas o sistema público não cobre alguns gastos, como cirurgias estéticas e tratamentos dentários. Isso faz com que um terço dos dinamarqueses tenha também um plano de saúde privado.
O funcionamento é similar na área de educação. Toda a população conta com acesso gratuito às escolas públicas, da pré-escola à universidade. O ensino público é considerado de boa qualidade, mas parte dos dinamarqueses matricula os filhos em instituições particulares, por preferir uma escola bilíngue ou que siga determinada linha educacional. Mesmo nessas escolas os custos não costumam ser exorbitantes.
As duas filhas de Carlos ainda não estão em idade escolar (têm 5 e 3 anos) e frequentam uma creche privada. Por mês, ele paga 100 coroas (58 reais) por criança. O valor é definido em função da renda da família. Alguns pais que ganham mais pagam até 1.000 coroas (580 reais) por mês. “Os dinamarqueses costumam dizer que quem tem ombro largo deve proteger quem tem ombro menos largo”, afirma Carlos. “Quando minhas condições de pagar forem maiores, vou aumentar a minha contribuição para compensar os que pagam menos.”
Um sistema solidário como esse só funciona porque os dinamarqueses, em geral, confiam que ninguém vai tentar tirar vantagem. Em seu primeiro ano na Dinamarca, Carlos saiu um dia com seu sogro, o veterinário Lars Christian Nielsen, para andar de bicicleta em Odense. Ao notar algumas cumbucas de morangos espalhadas pelo chão diante de uma casa, ele perguntou ao sogro o que as frutas faziam ali, sem ninguém vigiando. “Estão à venda. Quem quiser pega o morango e deixa o dinheiro”, explicou o sogro. “E ninguém rouba?”, quis saber Carlos. O sogro, que já tinha visitado o Brasil algumas vezes, apenas sorriu. Ao se lembrar da cena, Nielsen disse a EXAME: “A confiança é uma característica forte dos dinamarqueses. Confiamos no governo, confiamos na polícia, confiamos uns nos outros. Claro, não 100%, porque ninguém é perfeito”.
Esse alto grau de confiança nas instituições se reflete no baixo índice de corrupção. No mais recente ranking global de corrupção no setor público elaborado pela Transparência Internacional, de 2017, a Dinamarca aparece em segundo lugar entre os países vistos como menos corruptos, atrás apenas da Nova Zelândia. O Brasil ficou em 96o lugar entre os 180 países avaliados. O estudo deixa claro que, quanto mais eficiente o Estado, menor a margem para a corrupção. Nesse aspecto, a Dinamarca tem vários indicadores que atestam o bom funcionamento da máquina pública. O tempo médio para a abertura de uma empresa no país é de 3,5 dias, ante 101 dias no Brasil, segundo o estudo Doing Business, do Banco Mundial. Na Dinamarca, gastam-se 130 horas por ano com os procedimentos para o pagamento de impostos. No Brasil, são 1.958 horas.
A eficiência do setor público conta com a ajuda da tecnologia. O país colhe os frutos de um plano lançado em 2001 para a digitalização dos serviços públicos. O primeiro passo foi a criação do NemID, espécie de RG digital para todos os cidadãos acima de 15 anos — com um único login e senha, uma pessoa pode acessar serviços públicos e realizar transações bancárias pela internet. O passo seguinte foi a criação de uma caixa postal eletrônica, por meio da qual os governos nacional, regionais e municipais passaram a enviar suas notificações aos cidadãos e às empresas. A comunicação entre os governos e as empresas passou compulsoriamente a ser feita por meio digital em 2013. No ano seguinte, a obrigatoriedade foi estendida à troca de mensagens com os cidadãos.
Paralelamente, o acesso a um cardápio de 100 serviços públicos mais utilizados — como matricular o filho numa escola, requerer o passaporte e entrar com o pedido de aposentadoria — passou a ser feito apenas pela internet. “O grande salto ocorreu quando o uso da plataforma digital deixou de ser uma opção e se tornou obrigatório”, diz Rikke Zeberg, diretora-geral da Agência de Digitalização, órgão do Ministério das Finanças responsável pela implantação da tecnologia digital no setor público. O governo criou um portal que hoje dá acesso a 2.000 tipos de serviços públicos por autoatendimento — a pessoa preenche o formulário pela internet e resolve tudo sem precisar ir a uma repartição pública.
O uso da plataforma digital traz uma economia de 1 bilhão de coroas (580 milhões de reais) por ano em despesas postais, impressão de formulários e horas de trabalho dos servidores públicos. São números que alçaram a Dinamarca ao topo do ranking 2018 de governo eletrônico elaborado pelas Nações Unidas — na pesquisa anterior, de 2016, ocupava o nono lugar.
Apesar da alta eficiência do setor público, há quem diga que o Estado adquiriu uma dimensão exagerada na Dinamarca (leia a entrevista na pág. ao lado). O país hoje dispõe de 800 000 funcionários públicos, quase 30% da força de trabalho (o Brasil tem cerca de 12 milhões de funcionários públicos, ou 12% da população economicamente ativa). Além disso, 2,1 milhões de dinamarqueses, ou 47% da população de adultos, recebem algum tipo de transferência de renda do Estado, como aposentadoria, auxílio-desemprego e bolsa de estudos.
“Somando tudo, dois terços dos dinamarqueses adultos dependem do Estado”, diz Mads Hansen, economista-chefe do Centro de Estudos Políticos (Cepos), um instituto de pesquisas de Copenhague. A consequência disso: alta da carga tributária e redução do potencial de expansão da economia. Há alguns anos, o PIB da Dinamarca vem crescendo abaixo da média da OCDE, o clube dos países ricos. Neste ano, a previsão é que a economia dinamarquesa cresça 1,7%, ante a média de 2,6% dos países da OCDE.
Para atrair mais investimentos e gerar mais empregos, impulsionando a economia, Hansen defende uma reforma tributária que reduza a alíquota máxima do imposto de renda para pessoas físicas de 56% para 42%, o imposto sobre ganhos de capital de 42% para 30% e o imposto de renda corporativo de 22% para 19%. Ele propõe também mudanças na bolsa concedida a universitários. Hoje, todo aluno matriculado numa universidade tem direito a receber até 6.090 coroas (3.500 reais) ao mês, por até seis anos. Essa bolsa é uma espécie de “salário” dos universitários, que não precisam devolver nenhuma parte — nem depois de se formar, nem se abandonarem o curso antes de pegar o diploma.
Hansen sugere transformar a bolsa em um empréstimo, para que haja uma contrapartida dos estudantes. Propõe também um corte de 10% no auxílio-desemprego, que hoje pode atingir 18 630 coroas (10.800 reais) por mês. “Com os atuais valores, não há incentivo para os desempregados, principalmente os de menor qualificação, buscarem uma nova colocação no mercado”, diz Hansen. Os generosos benefícios sociais sofrem pressão também de mudanças demográficas recentes. A parcela de imigrantes na população — o país tem 5,7 milhões de habitantes — cresceu de 7% em 2000 para 10% hoje.
O aumento foi impulsionado pelo fluxo de refugiados de países como Síria, Iraque e Afeganistão. Muitos deles estão desempregados ou recebem salários baixos, mas têm acesso integral ao sistema público de saúde e educação. Como contribuem proporcionalmente pouco para o “cofrinho” da nação, os imigrantes de países não ocidentais representam um custo anual correspondente a 1,5% do PIB, segundo o Ministério das Finanças. O governo tem endurecido as exigências para a concessão de asilo e de cidadania aos imigrantes.
Da observação do exemplo da Dinamarca, a inspiração que fica para o Brasil não é a do Estado máximo — aliás, os próprios dinamarqueses estão repensando o peso que os impostos alcançaram em sua economia. Mas é indubitável que o país nórdico dá lições em matéria de uso responsável do dinheiro público — seja qual for o montante. Esse princípio está na base do que parece ser um círculo virtuoso: gasto mais eficiente, menos corrupção, mais respeito ao cidadão, mais coesão social. Aí, sim, temos muito o que aprender.
Para Jacob Ravn, líder de uma das principais entidades empresariais da Dinamarca, o país precisa de um setor público mais enxuto e um setor privado mais forte
O generoso sistema de bem-estar social tem um preço alto: a Dinamarca gasta 25% do produto interno bruto para manter o funcionamento do Estado. “É muita coisa”, diz Jacob Ravn, diretor de política tributária da Dansk Erhverv, a Confederação das Empresas da Dinamarca, que reúne cerca de 17.000 companhias e 100 associações comerciais. Ravn recebeu EXAME na sede da Dansk Erhverv, um prédio histórico do século 17 que já abrigou a Bolsa de Valores de Copenhague.
O senhor acredita que o Estado tem um tamanho adequado em seu país?
Minha opinião é que o Estado dinamarquês ficou grande demais. Hoje, 25% de nosso PIB é gasto com o funcionamento do Estado. Só ficamos atrás da Suécia, que gasta 26% do PIB. Acredito que seja possível manter o nível de bem-estar social com um Estado mais enxuto. Além disso, é preciso que as pessoas entendam que o Estado não produz riqueza. Quem gera os recursos necessários para sustentar o bem-estar social é o setor privado. Se o Estado se torna grande demais, fica impossível mantê-lo.
Um Estado grande demais se torna um obstáculo para o crescimento econômico?
Sim, a economia da Dinamarca está crescendo, mas em um ritmo muito lento. Por isso, precisamos de algumas reformas. Somos um dos países mais ricos do mundo, mas, se não formos mais competitivos e não crescermos a uma taxa comparável à de outros países, ficaremos gradualmente para trás. Há 20 anos, tínhamos a quinta maior renda per capita do mundo, e hoje estamos em 11o ou 12o lugar. Portanto, já tivemos um declínio, mas a maioria dos dinamarqueses não se dá conta disso. Precisamos ter mais crescimento, e essa é uma das razões pelas quais devemos criar melhores condições para o setor privado, reduzindo os impostos corporativos.
Os impostos corporativos da Dinamarca já são baixos em comparação com o que pagam os cidadãos. Por que é necessário cortar mais?
O imposto de renda corporativo é o que incide sobre negócios. Se quisermos que empresas estrangeiras abram subsidiárias na Dinamarca em vez de ir para outro país, precisamos ter um ambiente tributário competitivo. Na Europa, há vários países pequenos vizinhos um dos outros. A Suécia fica a apenas 25 quilômetros de Copenhague, de modo que precisamos cobrar menos impostos para atrair mais empresas estrangeiras. Há um movimento internacional no sentido de reduzir os impostos das empresas. Nos Estados Unidos, o presidente Donald Trump baixou o imposto de renda corporativo de 35% para 21%, uma alíquota agora inferior à da Dinamarca. Nos próximos anos, veremos um movimento para reduzir ainda mais esses tributos. O capital tende a fluir para países que cobram menos impostos.