Grupo Schahin: a maior parte dos credores já votou pela falência (Foto/Divulgação)
Da Redação
Publicado em 28 de março de 2016 às 16h02.
São Paulo – O empresário José Pupin, maior produtor de algodão do Brasil, soube aproveitar como poucos o crédito farto que irrigou a economia nacional até o hoje longínquo ano de 2014. Em quatro anos, sua área plantada dobrou, até atingir quase 110 000 hectares — o equivalente à cidade do Rio de Janeiro.
Dando seus bens como garantia, Pupin tomou 1 bilhão de reais emprestados e viveu anos de ouro, desfilando por Mato Grosso num carro esportivo Maserati Gran Turismo avaliado em 600 000 reais. Demorou pouco mais de um ano para que a casa caísse. O preço do algodão baixou, os clientes frearam, o juro subiu.
Em novembro do ano passado, o rei do algodão apelou para a recuperação judicial para evitar a falência. Em tese, seria um processo simples. Bastaria entregar os pedaços de terra aos credores, renegociar as dívidas e usar a geração de caixa das safras seguintes para pagar as prestações. Mas de simples o processo não tem nada.
Pupin lançou mão de uma brecha na lei brasileira que permite aos produtores rurais salvar os bens pessoais. A ideia da lei era proteger os pequenos agricultores. Às vésperas de entrar com o pedido de recuperação judicial, o rei do algodão se cadastrou como produtor rural. Seus bens garantiam 80% da dívida. Armou-se, então, uma confusão que foi parar no Superior Tribunal de Justiça e não tem data para acabar.
Há atualmente no Brasil cerca de 2 500 empresas em recuperação judicial. No grupo, há companhias famosas e uma imensa maioria desconhecida, mas não menos importante. Empreiteiras como OAS e Mendes Júnior, varejistas como Luigi Bertolli e Barred’s, a viação Itapemirim, a fabricante de autopeças Mangels estão vivendo esse processo — que, por razões óbvias, é típico de crises como a que o país vive.
O número de novos casos foi recorde em 2015 e já cresceu 116% neste ano. A lei de recuperação judicial foi editada há 11 anos para criar um processo organizado que preserve as empresas em crise e permita a seus controladores renegociar dívidas sem risco de entrar em falência.
Cabe a um juiz supostamente especializado liderar o processo: os empresários, normalmente, são afastados da gestão, um novo administrador é definido pela Justiça, as decisões têm de ser aprovadas pela maioria dos credores e os ativos e as garantias dados pela empresa ficam resguardados.
A promessa é de racionalidade. Na teoria, é ótimo. Mas um olhar mais aprofundado sobre a “recuperação judicial como ela é” mostra uma realidade bem distinta. Os casos de sucesso são pouquíssimos — estima-se que apenas uma em cada 100 empresas saia viva e saudável de uma recuperação judicial. E as histórias de brigas, rolos e fraudes são muito mais comuns do que se suspeita.
É no mínimo inusitado que, com um Poder Judiciário tão caótico quanto o brasileiro, investidores e empresários tivessem alguma esperança de que um processo complexo como uma recuperação judicial fosse ordeiro. Os buracos na lei e as chicanas jurídicas disponíveis são fartos. A lei diz que o processo deve demorar dois anos e que apenas um plano pode ser aprovado.
A empresa de energia Infinity Bio-Energy, que fatura 600 milhões e deve 1,5 bilhão de reais, está tentando emplacar o terceiro plano de recuperação desde 2009. Um dos credores questionou a decisão do administrador judicial de arrendar uma das usinas a um foragido da Justiça por assassinato (e que, portanto, não deve aparecer para pagar as contas), mas o juiz não viu problema.
A geradora de energia Tonon, que deve quase 3 bilhões de reais, conseguiu autorização judicial para usar garantias que estavam protegidas em depósito. A empresa alegou ser um bem perecível, por se tratar de cana. Os credores pediram uma liminar para bloquear os gastos.
A soberania das decisões dos credores em assembleia também vem sendo questionada por alguns empresários e administradores, criando mais insegurança no processo. Na recuperação judicial do grupo de construção Schahin, a maioria dos bancos e investidores votou contra o plano e a favor da falência.
Mas os acionistas estão recorrendo ao juiz para invalidar os votos dos credores, já que há casos precedentes. Outras canetadas dos juízes não fazem nenhum sentido econômico, mas dificultam o andamento do processo: a recuperação da mineradora Mineração Caraíba corre sob sigilo, e os credores precisam ir a Jaguarari, no interior da Bahia, para tirar cópias do processo e acompanhar as decisões.
De acordo com credores ouvidos por EXAME, os casos mais complexos são aqueles em que é quase impossível dizer onde está o dinheiro da empresa ou de seus donos. Antônio Carlos Gonçalves, dono da produtora e comercializadora de soja e milho Ceagro Agrícola, que fatura 800 milhões de reais, levantou 1,5 bilhão com grandes bancos.
A garantia era uma série de contratos de venda de soja — os investidores ficavam com os pagamentos da venda em garantia e, em caso de inadimplência ou rompimento dos contratos, ficavam com a soja. Parecia uma garantia reforçada.
Mas não existia tanta soja assim — em julho de 2015, os compradores não receberam as encomendas e, claro, não pagaram as faturas. Os credores alegam, desde então, que a soma de ativos da Ceagro é menor do que os financiamentos que a empresa tomou, e os bancos agora querem saber onde foi parar o dinheiro que emprestaram.
O banco Indusval chegou a gastar alguns milhares de dólares numa investigação para desvendar se o dono mandou dinheiro para o exterior — mas, por enquanto, só encontrou uma conta nos Estados Unidos com 40 000 dólares (o banco nega a investigação). Em outros dois casos, da varejista Gep, dona da marca Luigi Bertolli, e do grupo JJ Martins, dono da rede de concessionárias carioca Barrafor, os empresários juntaram várias empresas no mesmo bolo da recuperação judicial com a intenção de proteger o máximo de bens possível.
Os grupos dizem que caixa e dívida das empresas se misturam, mas os credores questionam como eles escolheram as empresas que ficaram dentro e fora da recuperação — quem emprestou para a subsidiária que tem operação rentável, por exemplo, não gostou. Uma consequência prática da inclusão de empresas saudáveis na recuperação judicial é impedir que seus bens sejam transferidos a credores de outras companhias do mesmo grupo.
Para os bancos, o caos de processos de recuperação judicial cria um enorme problema. O sistema bancário brasileiro é altamente concentrado — o que faz com que os grandes bancos sejam credores em quase todas as recuperações judiciais. Só o Banco do Brasil é credor em cerca de 2 000 processos.
O problema não é só o prejuízo gerado pelo deságio da dívida, mas os efeitos sobre sua capacidade de conceder crédito. Pelas regras do Banco Central, as dívidas de empresas em recuperação judicial precisam ser integralmente provisionadas, o que piora os índices de inadimplência do banco.
Muitas empresas só conseguirão sair do sufoco se tiverem acesso a novos empréstimos, mas estes também precisam ser provisionados do mesmo jeito. O banco, naturalmente, teme fazer novos financiamentos para ajudar a viabilizar um plano de recuperação, já que corre o risco de jogar dinheiro bom em cima de dinheiro ruim.
Nos Estados Unidos, é comum que investidores especializados aproveitem esse espaço para emprestar dinheiro a quem é visto como radioativo pelos bancos. Mas, no Brasil, o vaivém de juízes e credores atrapalha bastante.
O medo de brigas é tão grande que, até hoje, apenas a petroleira OGX e a empreiteira OAS recorreram ao financiamento conhecido como “dip” (do inglês debtor in possession), em que o novo credor tem preferência em relação aos demais. Nos dois casos, parte dos credores tentou barrar na Justiça esse direito.
A OGX parou de produzir petróleo em março e hoje é uma empresa inoperante. Na OAS, a briga também foi em vão, já que, depois que a empresa conseguiu a aprovação do financiamento na Justiça, a canadense Brookfield, que daria o financiamento, desistiu do negócio. Não surpreende, portanto, que muitos credores estejam fugindo da recuperação judicial sempre que podem.
Hoje, empresas com dívidas somadas de mais de 100 bilhões de reais estão adotando o que se chama de “reestruturação privada”. O devedor chama meia dúzia de bancos à mesa e discute um plano de reestruturação, sem que os credores tenham de alardear as perdas em seus balanços.
Mas, de novo, parece mais simples na teoria do que é na prática — só funciona se os resultados da empresa melhorarem, o que não tem sido muito fácil numa recessão como a atual. Se isso não acontece, a única saída é a recuperação judicial. E, aí, seja o que Deus quiser.
Atualização (28/mar/2016; 16h) — Corrigida informação sobre a Ceagro Agrícola. O dono da empresa é Antônio Carlos Gonçalves. O empresário Paulo Fachin (citado no texto original) fundou uma companhia chamada Ceagro, em 1994, rebatizada de Agrex do Brasil em 2013, que não tem relação com a Ceagro Agrícola, em recuperação judicial.