Revista Exame

Como o furacão Netflix está transformando a televisão

Depois de mudar para sempre a indústria da música, a revolução digital avança na sala da TV — para alegria dos espectadores e receio das emissoras

O ator Kevin Spacey como Francis Underwood: a série de TV House of Cards, do Netflix, virou febre mundial (Divulgação)

O ator Kevin Spacey como Francis Underwood: a série de TV House of Cards, do Netflix, virou febre mundial (Divulgação)

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Da Redação

Publicado em 27 de abril de 2015 às 16h30.

Cidade do México -- A indústria da TV, um negócio que movimenta 200 bilhões de dólares no mundo anualmente só em publicidade, é um emaranhado complicadíssimo de tecnologias de produção e transmissão, direitos autorais, licenciamentos, alcance geográfico e distribuição, sem falar no componente artístico, que depende de faro e intuição e não cabe em planilhas.

Mas entender por que o negócio da TV está diante da maior transformação de seus quase 80 anos de história é bem simples, na realidade. Antonio Tabet, criador da série Porta dos Fundos, conhecido como Kibe Loco, conta a história de um amigo que estava assistindo à TV com a filha de 4 anos.

A menina não gostava do desenho que estava passando. Queria ver outra coisa. Então o amigo de Tabet disse: “Filha, este é um quadro mágico que só passa desenhos-surpresa”. Foi a maneira que ele encontrou para explicar uma limitação com a qual ela não consegue mais lidar.

Os telespectadores querem assistir ao que quiserem, quando quiserem e na tela que quiserem — e, para as novas gerações, as coisas simplesmente são assim. Falar em “desenho-surpresa” pode servir para acalmar uma criança. Mas emissoras de TV aberta e operadoras de TV por assinatura não têm palavras mágicas para responder ao desafio digital que estão enfrentando, o mesmo que recentemente mudou as gravadoras de música, a mídia impressa e as editoras de livros.

Vídeos no computador e cada vez mais nos smartphones e nos tablets são só o trailer. Vem aí a grande atração: a invasão da internet na TV da sala. É uma revolução que já está acontecendo com a popularização das smart TVs, mas, perto do que está para ocorrer, este começo é quase nada.

“Pense no aparelho de TV de um futuro não muito distante como um grande iPad pendurado na parede”, disse a EXAME Reed Hastings, fundador e presidente do Netflix, empresa americana que simboliza essa nova era. 

A TV paga multiplicou o número de canais, aumentou a oferta de conteúdo e fragmentou a audiência das grandes emissoras. Agora empresas de internet, como Netflix e YouTube, estão mudando a própria ideia do que se entende por programação de TV.

Em vez de canais, temos aplicativos e sites. O comportamento de cada indivíduo é armazenado e destrinchado: soft­wares de análise de dados são cada vez mais importantes nas decisões de quais roteiros filmar, quais descartar.

Além de programas produzidos e distribuídos pelas emissoras e pelas empresas de TV paga, temos a criação de novas startups digitais. Elas podem ter o formato e a qualidade profissional com que nos acostumamos ou então ser obra de um garoto que grava tudo em seu quarto com a câmera do celular.

Na era da TV via internet, o número de “canais” é essencialmente infinito, assim como os sites da web. O conversor da TV por assinatura, que tinha domínio exclusivo sobre o que era mostrado na TV da sala, agora começa a brigar por espaço com o que chega pela web.

A entrada da internet nos aparelhos de TV não é uma metáfora. Ela é literal. O Chromecast, do Google, é um dispositivo pouco maior do que um pen drive. Custa cerca de 250 reais e pode ser conectado a uma das entradas HDMI de uma TV. Com um Chromecast, qualquer pessoa pode assistir na tela da TV da sala ao que antes estava preso no computador, no tablet ou no smartphone.

Os modelos mais novos de smart TV já contam com as próprias lojas de aplicativos, e a expectativa é que a Apple lance uma TV própria, baseada no sistema iOS, o mesmo usado no iPhone e no iPad. Craig Mof­fett, da MoffettNathanson, consultoria americana especializada no setor, estima que no ano passado 400 000 americanos tenham abandonado os serviços de TV por assinatura.

São os chamados cord-cutters, ou seja, consumidores que cortaram o cabo da TV paga e hoje assistem à TV aberta e, principalmente, à TV via internet. O número ainda é ínfimo diante dos mais de 100 milhões de assinantes de TV paga nos Estados Unidos, mas o importante é olhar para a tendência.

Uma pesquisa feita pela empresa sueca Ericsson com 23 000 pessoas de 23 países, inclusive o Brasil, mostra que 75% delas assistem várias vezes por semana a algum tipo de vídeo sob demanda, nome dado ao que está disponível em serviços como o Net­flix e o YouTube. Esse número está apenas um pouco abaixo dos 77% que dizem ver TV aberta ou paga mais de uma vez por semana.

Um levantamento recente da empresa de pesquisa ComScore indica que no mercado americano os millennials — geração que está entre a adolescência e os 30 e poucos anos — passam um terço do tempo que destinam à TV assistindo a seus programas prediletos em computadores, tablets ou smartphones

“Nos Estados Unidos, o público da TV tradicional está envelhecendo”, diz Brad Adgate, da consultoria Horizon Media. “Alguns anos atrás, a idade média estava na casa dos 40 anos, agora está na dos 50. Os jovens estão em outras plataformas.” É verdade que esse fenômeno é mais claro nos Estados Unidos. Mas, como o país costuma antecipar tendências que depois se tornam realidade mundo afora, vale a pena prestar atenção no que acontece na indústria americana de TV.

O ataque à TV tradicional vem de vários lados e tem várias formas. Para seu público americano e europeu, a empresa de tecnologia Amazon oferece streaming de vídeos aos assinantes do pacote de serviços Prime. Transparent, uma produção da empresa sobre um pai transexual ainda inédita no Brasil, ganhou neste ano o Globo de Ouro de melhor série humorística de TV.

A mesma Amazon, que começou vendendo livros pela internet, anunciou em janeiro um contrato com Woody Allen. Pela primeira vez na carreira, o premiado cineasta vai escrever e dirigir uma série de TV. Também não dá para não mencionar o YouTube, é claro, e chegaremos lá. Mas quem lidera a carga sobre a TV tradicional e simboliza o futuro do entretenimento é o Netflix.

Seu fundador, Hastings, tem poucas dúvidas quanto à grandeza da transformação que está por vir: “A TV aberta foi uma ideia boa. Como o cavalo. O cavalo era bom... até termos carros. A era da TV que conhecemos começou nos anos 30 e deve durar até 2030, mais ou menos. Aí estaremos na era da TV pela internet”.

Hastings está olhando para o futuro, mas a verdade é que o Netflix já é muito mais do que um Modelo T da Ford. A empresa tem 54,5 milhões de assinantes em quase 50 países e, na última divulgação de resultados, Hastings afirmou que pretende estar em 200 mercados até o fim do ano que vem. Em troca de uma mensalidade fixa (menos de 20 reais no Brasil), os assinantes podem ver Netflix à vontade. E como veem: a cada mês, são mais de 2 bilhões de horas de filmes e séries de TV — sem uma única interrupção comercial.

Hastings, de 54 anos, formou-se em ciência da computação pela Universidade Stanford e é um veterano do Vale do Silício com uma credencial e tanto: sua carreira começou na primeira empresa da história a ter um endereço ponto-com — a Symbolics, que não existe mais. Depois de fundar e vender sua primeira companhia, a Pure Software, Hastings fundou o Netflix em 1997, com o sócio Marc Randolph.

A companhia nasceu como uma locadora de DVDs pelo correio, mas Hastings diz sempre ter considerado esse modelo uma etapa intermediária para a empresa. “Sabíamos que o futuro seria a entrega digital. Era questão de esperar a tecnologia.” (O negócio da locadora online pode ter sido apenas um passo, mas causou um belo estrago na concorrência. O sistema de aluguel do Netflix, que não cobrava multas por atraso e tinha um excelente sistema de recomendações personalizadas, levou a gigante Blockbuster à falência.)

As primeiras experiências com vídeos por streaming — transmitidos pela internet — foram feitas no décimo aniversário do Netflix, quando a companhia tinha colocado o bilionésimo DVD no correio. O primeiro programa oferecido digitalmente foi a série Heroes, um hit da rede NBC na época (que anos depois foi veiculada pela Record no Brasil). O conteúdo só podia ser visto no computador.

Mas o passo mais importante na luta pelo aparelho de TV da sala foi dado quando a empresa anunciou aplicativos destinados a consoles de videogame (Xbox, PlayStation e Wii) e depois para as primeiras TVs inteligentes. Em 2010, três anos depois de lançar o streaming, os assinantes já assistiam mais ao Netflix pela internet do que pelos DVDs.

Atualmente, a transmissão de vídeos do Netflix é responsável por 34% do tráfego de internet banda larga nos Estados Unidos durante o horário nobre, de acordo com um levantamento da fabricante de equipamentos de rede Sandvine. O YouTube vem em segundo lugar, com 13%.

Juntos, Netflix e YouTube respondem por quase metade dos bits trafegados pela internet no horário mais importante para as emissoras de TV. A empresa estima que cada assinante assista, em média, a dois episódios e meio a cada sentada — fenômeno chamado de maratona e identificado universalmente pela frase “vamos ver só mais um?” Num evento promovido recentemente pelo banco suíço UBS, David Poltack, pesquisador-chefe da rede americana CBS, apresentou números que mostram os efeitos dos serviços de streaming nos Estados Unidos.

Tais serviços começam a canibalizar o tempo que os telespectadores passam assistindo à programação tradicional, cuja audiência está caindo 3% desde o fim do ano passado. “O crescimento do streaming pode ser considerado a grande força de ruptura no setor de mídia”, afirmou Poltack.

Em outras palavras, o Netflix pode não estar matando a TV como a conhecemos hoje, mas certamente está mudando para sempre a experiência de assistir à TV. O próprio Silvio Santos, dono do SBT e ícone da TV brasileira, disse recentemente em seu programa que gosta de assistir ao Netflix (Hastings retribuiu gravando um vídeo em que oferece uma assinatura vitalícia ao apresentador).

Em todo o mundo, com mais ou menos arrojo, as grandes redes de TV estão começando a abraçar a distribuição digital de suas programações. “Nossa estratégia está expressa em nosso novo slogan: uma TV aberta para o novo”, diz Antonio Guerreiro, diretor de novas mídias da Record.

A empresa tem aplicativos para smart TVs e uma área de vídeos em seu portal de internet, o R7. Mas o conteúdo é sempre complementar ao que é exibido pela TV aberta, e não há a possibilidade de assistir a toda a programação pela internet. A Record oferece alguns programas via YouTube, que repassa parte da receita de publicidade, e via Netflix, que paga uma taxa de licenciamento.

Essa postura sugere uma cautela típica das empresas que enfrentam o dilema dos inovadores, termo cunhado por Clayton Christensen, professor da escola de negócios da Universidade Harvard. A Record guarda sua programação original e inédita para a TV aberta.

“Tudo depende de termos um modelo de negócios para essas novas plataformas”, diz Guerreiro. “Não acredito que a internet canibalize a TV. Mas não podemos entregar nosso conteúdo pela internet sem ter um modelo de receitas claro.”

Não se pode falar de TV no Brasil sem mencionar a Globo, dona da maior audiência e do maior faturamento publicitário do país. A empresa adotou uma estratégia digital diferente, concentrando os esforços em um serviço proprietário chamado GloboTV+. São duas opções de assinatura.

Uma delas, que custa 12,90 reais por mês, dá direito a assistir na íntegra e sem anúncios a novelas, séries e telejornais, além de acompanhar o Big Brother Brasil 24 horas. O outro pacote, mais barato, dá acesso só às novelas, também sem publicidade. Segundo Carlos Henrique Schroder, diretor-geral da Globo, uma nova plataforma de vídeo sob demanda será lançada em breve.

Schroder diz que encara o YouTube como uma plataforma promocional e que a força da Globo — qualidade, relevância e alcance — dá tranquilidade à empresa para encarar o desafio da distribuição via internet. Essa postura é compreensível diante da abrangência de seu sinal aberto: são 122 retransmissoras, que cobrem essencialmente todos os cantos do território brasileiro.

Mesmo nos domicílios que têm TV paga, 40% da audiência no horário nobre ficou com a Globo no ano passado. E é preciso levar em conta, claro, a força cultural de sua programação.

“Segundo uma pesquisa do Ibope, o hábito de assistir às novelas da Globo só perde para os hábitos de comer e dormir”, diz Schroder. “A maior audiência nos Estados Unidos é o Super Bowl (a final do campeonato de futebol americano), que neste ano deu 47,5 pontos de audiência domiciliar para a NBC. Na Globo, temos a responsabilidade e a oportunidade de uma audiência equivalente à de um Super Bowl todos os dias.”

O avanço dos serviços sob demanda no Brasil também tem limitações técnicas. “Aumentar o número de lares com banda larga e melhorar a qualidade da internet é fundamental para o crescimento dos vídeos online”, diz Fábia Juliasz, diretora de Video Audience Measurement do Ibope Media.

Nos Estados Unidos, um mercado mais sofisticado e com um serviço de banda larga melhor, a transformação digital é mais urgente. A CBS, uma das quatro redes nacionais de TV aberta, lançou um serviço chamado CBS All Access. Mediante uma mensalidade de 6 dólares, os assinantes podem assistir a mais de 6 500 programas, um catálogo que inclui séries atuais e clássicos como Profissão: Perigo, além da programação ao vivo — com algumas exceções importantes.

Apesar de o nome falar em acesso completo, os jogos de futebol americano, por exemplo, ficam fora do serviço, e só os episódios da temporada corrente de Big Bang: a Teoria (no Brasil, exibida no SBT e na TV paga), a sitcom americana de maior sucesso dos últimos tempos, estão disponíveis — as temporadas passadas não fazem parte do CBS All Access.

“O mundo digital cria novas complexidades”, diz Brad Adgate, da consultoria americana Horizon Media. “Mas as empresas vão ter de se adequar a isso, pois quem manda é o novo consumidor de mídia.”

A aparente oposição entre serviços puramente digitais e a TV tradicional é mais complicada do que sugerem os números. O Netflix rouba a atenção dos telespectadores e, portanto, ameaça as receitas publicitárias, o grande ganha-pão das emissoras tradicionais.

A agência GroupM, do grupo de publicidade WPP, estima que 2015 poderá marcar a primeira queda na história da participação da TV no mercado mundial de publicidade (no Brasil, segundo dados do projeto Intermeios, ainda não se verificou queda no faturamento publicitário das TVs, pelo contrário).

Mas o Netflix precisa — mais do que isso, depende — dos programas produzidos no ecossistema das grandes emissoras e canais a cabo. Se por um lado o Netflix rouba audiência das emissoras tradicionais, por outro é uma fonte de renda para elas. A empresa pagou quase 3 bilhões de dólares pelos direitos de filmes de estúdios e séries de emissoras no ano passado, ou dois terços de sua receita, que foi de 4,7 bilhões de dólares.

Embora o Netflix não divulgue dados de audiência, uma pesquisa da rede CBS estima que só 10% da audiência seja de séries próprias, como House of Cards, que teve a estreia da terceira temporada no fim de fevereiro. Os assinantes passam parte considerável do tempo assistindo a produções como Breaking Bad, da rede de cabo americana AMC (no Brasil, também disponível no Netflix e atualmente na programação aberta da Record).

Sem Walter White, de Breaking Bad, não há Frank Underwood, de House of Cards. E o inverso também é verdadeiro. As emissoras também sentem o “efeito Netflix”: séries que estão no ar hoje ganham mais público graças às temporadas passadas disponíveis no Netflix.

Séries de TV para ver a qualquer hora: Orange is the New Black é um dos exemplos da nova era da TV digital (Divulgação)

O big data da audiência

Do ponto de vista do Netflix, uma das maneiras de lidar com os crescentes custos de licenciamento é investir em produções próprias. Cerca de 10% do orçamento de conteúdo é destinado a séries e filmes originais — e aqui o DNA digital da empresa também pode ser uma grande vantagem.

Os computadores do Netflix registram exatamente o que cada usuário viu, em que ordem, quantos episódios de uma sentada e se ele começou a assistir a uma série e parou no meio. Até as paredes dos estúdios de Hollywood sabem que apostar em roteiros e escolher atores e diretores é mais arte do que ciência. Mas poderia o Netflix e sua imensa coleção de dados sobre hábitos dos assinantes inaugurar também a era do big data para o talento artístico?

A programação da TV é tradicionalmente pensada de acordo com horários e perfis demográficos, mas o exemplo do Netflix sugere que a análise do comportamento individual dos assinantes pode dar origem a uma programação baseada em indivíduos. Trata-se de uma transformação radical em um dos pilares do negócio da TV.

Em uma entrevista recente, Ted Sarandos, o responsável pelo conteúdo do Netflix, disse que as decisões sobre os investimentos artísticos da empresa seguem uma proporção de mais ou menos 70-30 — ou seja, 70% dependeriam dos dados; e 30%, da intuição. Hastings, porém, é mais conservador. “É difícil usar essas informações para decidir em que roteiro investir. Usamos muita intuição e discernimento. Mas, uma vez produzido o programa, podemos usar esses dados para fazer marketing e para sugeri-lo aos usuá­rios.”

Tenham sido decididas por homens ou máquinas, o fato é que o Netflix tem acertado mais do que errado em suas escolhas. Séries como House of Cards e Orange Is the New Black foram aclamadas pelo público e pela crítica. Em pouco mais de dois anos exibindo programação própria, o Netflix recebeu indicações para 45 Emmys, dez Globos de Ouro e dois Oscars.

Neste ano, a empresa planeja lançar mais 320 horas de programação original inédita. Entre as estreias está Narcos. Filmada na Colômbia, a série tem a direção de José Padilha (dos filmes Tropa de Elite 1 e 2), e o papel principal cabe ao ator brasileiro Wagner Moura, que interpreta o narcotraficante Pablo Escobar.

A empresa também vai lançar uma continuação de O Tigre e o Dragão, de 2000. O filme vai estrear simultaneamente no Netflix e em salas de cinema Imax nos Estados Unidos. Nem todos os lançamentos são gol de placa. A série épica Marco Polo, que estreou em dezembro, recebeu péssimas avaliações da crítica. “Não tenho dúvidas de que eles vão acabar errando a mão, mas parece que chegaram a uma fórmula relativamente boa de investir em conteúdos originais”, diz Mike Olson, analista do banco americano Piper Jaffray.

Se as séries produzidas profissionalmente são o jantar na dieta diária de entretenimento, o YouTube é o lanchinho da tarde. Todos os meses, o YouTube recebe a visita de 1 bilhão de pessoas, que assistem a mais de 9 bilhões de horas de vídeos. O YouTube parece imune à lei dos grandes números: a audiência cresce 50% ao ano (e o Brasil fica em segundo lugar no mundo nos rankings de audiência, atrás dos Estados Unidos).

Ao lado do Netflix, a empresa lançada em 2005 e comprada pelo Google um ano e meio mais tarde apresenta outra questão fundamental para a TV do futuro: como descobrir novos talentos. O maior canal do YouTube no Brasil em número de assinantes é o Porta dos Fundos, com 9,5 milhões.

Os humoristas responsáveis pelo canal são cinco ex-funcionários da Globo. Um deles, Antonio Tabet, o Kibe Loco, diz que a televisão brasileira está presa a uma linguagem que precisa ser compreendida por 100% dos brasileiros. “Hoje em dia isso não faz mais sentido”, defende Tabet. Lançado há três anos, o Porta dos Fundos é uma empresa estabelecida, contratou uma presidente (a argentina Juliana Algañaraz, ex-diretora de canais como Fox e Discovery) e tem faturamento estimado em 30 milhões de reais.

Outros produtores independentes estão fazendo um caminho inverso: começando com uma estrutura profissional e depois buscando a audiência do YouTube. André Barros trabalhava com marketing esportivo de clubes e jogadores de futebol. Em 2012, ele e dois amigos começaram a planejar um canal para falar de futebol de maneira mais descontraída. A ideia era levar o espírito da conversa de bar para a TV.

Antes de lançar o Desimpedidos, Barros tinha um plano de negócios. “Queríamos ter tudo pronto para aproveitar a Copa do Mundo”, diz. O Desimpedidos lança quatro programas semanais, sempre nos mesmos dias e horários, e já conta com quase meio milhão de assinantes. O sucesso foi tão grande que o canal virou uma empresa, a Network Brasil.

No meio do ano passado, a startup recebeu investimento do fundo e.bricks, do grupo gaúcho RBS. Hoje, tem estúdio próprio, usado para gravar e editar o Desimpedidos e outros seis canais menos conhecidos, e emprega 40 funcionários.

Parte da receita vem dos anúncios veiculados pelo YouTube, que repassa 55% do valor aos donos dos canais. Mas a maior fatia, tanto no caso do Porta dos Fundos como no da Network Brasil, corresponde aos patrocínios e à inserção de produtos e marcas nos vídeos.

E esse é um dos dilemas do YouTube: apesar de ter um público cativo muito maior do que o de qualquer TV do mundo, a empresa ainda não conseguiu capturar receitas de publicidade à altura de sua audiência.

A consultoria eMarketer estima que o YouTube tenha faturado no mundo 1,1 bilhão de dólares em publicidade no ano passado, um valor pequeno diante dos 66 bilhões de dólares de receita do Google em 2014.

“O mercado publicitário dos vídeos online está crescendo, mas ainda não vemos um impacto grande nas receitas das grandes emissoras”, diz Paul Zwillenberg, consultor do Boston Consulting Group especializado em mídias digitais. Em outras palavras, o dinheiro da publicidade ainda não está acompanhando a migração digital da audiência.

Lenta transformação

Receitas publicitárias à parte, o YouTube está desafiando o poder de atração que os canais tradicionais sempre tiveram sobre artistas e comunicadores. A internet é uma opção real de caminho para a fama. “Os criadores de grandes hits na web têm cada vez mais força”, diz Zwillenberg.

Iberê Thenório, criador e apresentador do Manual do Mundo, conquistou quase 3 milhões de assinantes interessados em seus vídeos, que ensinam a fazer uma pistola de brinquedo com um pregador de roupa ou uma prancha com garrafas PET. Num evento realizado no fim de 2014, perguntaram para Susan Wojcicki, presidente do YouTube, se a TV paga sobreviveria mais dez anos. “Talvez”, respondeu ela, com um sorriso.

Nenhum especialista de renome nega que a revolução da TV já esteja em curso, mas a maioria acha que esse processo vai ser longo. As emissoras e os canais pagos não oferecem de graça na internet conteúdos pelos quais costumam cobrar, como fizeram jornais e revistas.

Séries de TV só são licenciadas para empresas como Net­flix depois de exibidas na TV (e remuneradas via publicidade). E existe um tipo de programação que nunca estará ameaçado pelo mundo sob demanda: esportes e, em menor medida, coberturas jornalísticas de grandes eventos.

As maiores audiências da TV americana são, ano sim, outro também, os jogos de futebol americano. A final do campeonato deste ano bateu mais um recorde: 114,4 milhões de telespectadores acompanharam o Super Bowl. Pelos direitos de transmissão do campeonato inglês de futebol de 2016 a 2019, a Sky vai pagar 8 bilhões de dólares. O contrato anterior, também válido por um perío­do de três anos, era de 4,6 bilhões. Esse é um tipo de programa que só faz sentido ao vivo. Para todo o resto, existe a internet.

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