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Baguete, greve e startups na França

O maior campus para empresas de tecnologia no mundo, em Paris, mostra o tamanho da ambição francesa em empreendedorismo

Station F, em Paris: 1.000 startups, mais de 40 fundos de investimento e vários cantinhos “instagramáveis” | Divulgação /  (Divulgação/Divulgação)

Station F, em Paris: 1.000 startups, mais de 40 fundos de investimento e vários cantinhos “instagramáveis” | Divulgação / (Divulgação/Divulgação)

Karin Salomão

Karin Salomão

Publicado em 27 de fevereiro de 2020 às 05h30.

Última atualização em 27 de fevereiro de 2020 às 05h30.

O maior campus para startups no mundo não fica nos Estados Unidos, mas, sim, na França. E isso é o reflexo do que vem acontecendo no ecossistema de empreendedorismo francês. Construída em uma antiga estação de trem, a Station F fica em um bairro pouco turístico na capital francesa, Paris. É a casa de 1.000 startups, mais de 30 programas de mentoria e aceleração e com parcerias com 40 fundos de investimento. O local foi fundado pelo bilionário Xavier Niel, fundador também do provedor de internet e telefonia Iliad, da marca Free. “Com um ambiente aberto, grande e visível, mostramos que algo está acontecendo com o empreendedorismo francês”, diz a diretora da Station F, Roxanne Varza.

Se um ambiente de trabalho aberto é a última moda nos escritórios modernos, a Station F leva essa tendência ao extremo. As salas de reunião, as mesas de trabalho e os espaços para empresas ficam nas laterais, enquanto um grande vão corta toda a estação e garante a integração entre os ambientes. Obras de arte e grandes esculturas compartilham o ambiente com sofás e mesas de sinuca.

Há ainda dois espaços de alimentação abertos ao público que atraem amigos e famílias, além de pessoas interessadas em lotar as redes sociais com fotos do lugar, cheio de cantos “instagramáveis”. A Station F também tem um alojamento próximo que acomoda 600 pessoas, já que encontrar uma moradia em Paris pode ser caro e burocrático.

Conhecida por indústrias tradicionais, pelo luxo e pelo turismo, a França passa por uma explosão no empreendedorismo. Segundo Varza, é uma volta ao passado: a própria palavra “empreendedor” tem raiz francesa e vem de entrepreneur, ou aquele que faz acontecer. De 2014 a 2019, o investimento em startups passou de 1,1 bilhão para 5,1 bilhões de euros. Em 2020, em apenas dois meses, já foram investidos 1 bilhão de euros. Atualmente são 14.000 startups no país, mais de metade delas baseada em Paris. No mundo, startups levantaram cerca de 295 bilhões de dólares em investimentos em mais de 32.800 aportes no ano passado, segundo um levantamento feito pelo site Crunchbase.

Embora o mercado francês esteja crescendo, ainda há chão pela frente. Os Estados Unidos e o Canadá concentraram cerca de 39% do número de aportes feitos no ano passado. Com sete unicórnios (startups com valor superior a 1 bilhão de dólares), a França está atrás até do Brasil, com 11. Não há nenhuma empresa europeia entre as dez maiores de tecnologia no mundo — são todas americanas ou asiáticas.

Mas com eventos geopolíticos, como a guerra comercial entre os Estados Unidos e a China, o aumento das restrições de Donad Trump para imigração e o Brexit, investidores e empreendedores passaram a olhar outros países. E a França emergiu como uma opção viável. Um incentivo importante vem do governo francês. Em 2013, criou a La French Tech, instituição que elabora e divulga políticas para o empreendedorismo francês. Foi criado um visto de trabalho específico para empreendedores, investidores e funcionários de startups, assim como um fundo de 400 milhões de euros para investimentos em startups no estágio seed, ou semente.

O governo tem centros espalhados pelo país para ajudar startups a tirar dúvidas sobre investimentos e burocracias. Em setembro, o presidente Emmanuel Macron anunciou que firmou um compromisso com investidores para levantar 5,5 bilhões de dólares para startups. Ainda que a mudança de cenário tenha começado antes da chegada de Macron à Presidência em 2017, Varza acredita que seu posicionamento a favor dos negócios ajude a atrair ainda mais investidores. Nem todas as iniciativas governamentais foram bem recebidas pela população. A França viveu nos últimos meses ondas de greves e protestos contra reformas sociais, com grandes movimentações sindicais pela manutenção de leis trabalhistas. São as duas faces de um país que precisa se mexer.

As iniciativas pelo empreendedorismo impulsionaram o número de startups com status de unicórnio, com três estreantes na lista em 2019. Alguns dos unicórnios franceses são empresas conhecidas por aqui, como a BlaBlaCar, aplicativo de caronas, e o streaming de música Deezer, concorrente do Spotify. Na lista também estão a Doctolib, empresa franco-alemã de softwares para saúde, e a OVH, fornecedora de internet.

Outro exemplo é a Meero, plataforma que conecta fotógrafos a empresas para trabalhos rápidos. Com 700 funcionários em sete escritórios pelo mundo, a empresa levantou 230 milhões de dólares em junho do ano passado. A Meero desenvolve fotografias mais padronizadas para clientes como o site de hospedagem Airbnb e o app de delivery Uber Eats, com diretrizes claras de ângulos, composição e iluminação. “Ainda temos muitos anos de trabalho pela frente e o valor da startup não vai mudar nossa realidade”, diz Thomas Rebaud, fundador e presidente da Meero.

Thomas Rebaud, fundador da Meero, plataforma que conecta fotógrafos a empresas | Martin Barzilai/Bloomberg/Getty Images

Com sete unicórnios até agora, a tendência é que esse número se multiplique na França nos próximos anos. A La French Tech desenvolveu uma lista com as 40 startups com maior potencial de se tornarem os próximos unicórnios, a Next 40, e realiza turnês periódicas com investidores e fundos para apresentar as apostas. Essas startups têm negócios tão diversos quanto a economia francesa. Uma delas é a Ynsect, fabricante de ração animal e fertilizantes à base de insetos.

Com duas fazendas verticais, a startup tem capacidade para produzir 20.000 toneladas de proteína de insetos para alimentação de peixes em piscicultura ou como fertilizante agrícola, com um impacto menor no meio ambiente. A empresa já recebeu 172 milhões de dólares em aportes. “Claro, há muito risco no nosso negócio porque é um campo novo. Mas o mercado também é gigantesco, de 1 trilhão de dólares. Para o meio ambiente, o maior risco é não fazer nada”, diz Alain Revah, diretor de marketing e estratégia.

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À medida que o ecossistema amadurece, surgem os empreendedores em série — que já estão em sua segunda ou terceira empreitada. Um exemplo é a Qonto, fintech para pequenas e médias empresas fundada em 2016 por Alexandre Prot e Steve Anavi. Ambos já haviam criado outro negócio, a Smokio, de cigarro eletrônico conectado, que foi vendida em 2015. Uma das dificuldades dos empreendedores nos negócios anteriores era a relação com os bancos, já que startups são mais complexas e menos lucrativas do que grandes companhias.

“Percebemos que nós mesmos teríamos de criar o banco que adoraríamos ter tido”, diz Prot. A Qonto tem contas de 75.000 empresas e, além da França, chegou há poucos meses a Alemanha, Itália e Espanha. “Nossa ambição não é ter só um negócio legal na França, mas ser uma empresa líder em toda a Europa”, diz o cofundador.

Entusiasta das startups: Emmanuel Macron, presidente da França | Michel Euler/Reuters

O crescimento do empreendedorismo na França é reflexo da descentralização do Vale do Silício como o principal polo para a criação de startups. A região próxima a San Francisco tornou-se concorrida e cara, abrindo espaço para que investidores procurem alternativas em outros lugares. “A cultura do Vale do Silício rompeu as barreiras e é replicada em vários centros pelo mundo”, diz Pedro Englert, presidente da escola de negócios brasileira StartSe.

Segundo ele, o mundo só tem a ganhar com a descentralização de startups. Para o Brasil, o movimento também pode ser positivo, pois investidores estão em busca de oportunidades em novos mercados. Nesta competição global, os empreendedores brasileiros têm a Station F como concorrente. Parada dura. 

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