Revista Exame

Será a hora da largada para as redes ferroviárias no Brasil?

O Brasil nunca teve uma rede ferroviária competitiva. Dois projetos do setor privado — um deles a fusão das empresas de logística Rumo e ALL — podem diminuir esse gargalo

Em marcha: depois de anos de marasmo, empresas privadas querem investir no setor (Fabiano Accorsi/EXAME)

Em marcha: depois de anos de marasmo, empresas privadas querem investir no setor (Fabiano Accorsi/EXAME)

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Da Redação

Publicado em 18 de abril de 2014 às 06h00.

São Paulo - Num voo de BrasÍlia a São Paulo, em janeiro, o empresário Rubens Omet­to, controlador da Cosan, um dos maiores grupos produtores de açúcar e etanol do Brasil, perguntou a um interlocutor: “O que o pessoal da soja vai achar se a Cosan comprar a ALL?” Ometto se referia a uma eventual aquisição da América Latina Logística, maior transportadora de cargas ferroviárias do país.

A resposta que Ometto ouviu: “Se fosse o papa Francisco que estivesse comprando a ALL, eles ficariam preocupados. Como se trata de você, ficarão muito mais preocupados”. Ometto riu. E, no dia 24 de fevereiro, divulgou a proposta de incorporação da ALL pela Rumo, o braço logístico da Cosan.

A empresa resultante teria um valor de mercado estimado em 10 bilhões de reais. O negócio nem foi fechado (a decisão, que deveria ter sido anunciada pelos acionistas da ALL no dia 4, foi adiada para 15 de abril, após o fechamento desta edição), mas já é alvo de diversos ataques.

Primeiro, produtores de soja de Mato Grosso recorreram ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica contra a fusão. Logo depois se juntaram reclamações de produtores de açúcar, celulose e milho. Todos temem que a nova empresa vá privilegiar o transporte do açúcar e do etanol da Cosan em detrimento de suas cargas.

“Comprar a ALL para transportar nosso açúcar seria tão sem sentido quanto comprar a Sabesp para beber água”, afirma Marcos Lutz, presidente da Cosan, aludindo à companhia responsável pelo abastecimento de água em São Paulo.

E com uma coisa os dois lados concordam: o desfecho do negócio Rumo-ALL poderá ter um impacto decisivo no moroso setor de ferrovias. A falta de linhas férreas é um dos maiores gargalos do escoamento de cargas, especialmente as da agricultura. Em pouco mais de 160 anos, a malha ferroviária brasileira já teve fases de ascensão e queda.

Começou e cresceu privada, no tempo do Império. Ao longo do século 20, entrou em decadência e, no governo militar, foi estatizada. Há 20 anos, voltou às mãos do setor privado, mas nem assim deslanchou. Sua extensão chegou a 40 000 quilômetros no começo dos anos 60.

Hoje, a rede tem 29 000 quilômetros, mas só um terço é operante. A maior malha do mundo, a dos Estados Unidos, é oito vezes maior. Em 2012, o governo lançou um programa que prevê investimentos em recuperação de linhas e construção de novas ferrovias, num total de 10 000 quilômetros. Nada saiu do papel.

Ainda está para ser definido um modelo com regras que atraiam investidores. “A falta de boas ferrovias, aliada a rodovias ruins, eleva o custo do frete e tira a competitividade da produção nacional”, diz Paulo Fleury, sócio da consultoria de logística Ilos. Por isso, vêm em boa hora dois movimentos do setor privado que, ao menos em teoria, podem elevar os investimentos.

Novas rotas

O primeiro deles, a proposta de fusão Rumo-ALL, prevê o aumento da capacidade de transporte de soja de Mato Grosso para o porto de Santos de 12 milhões para 35 milhões de toneladas nos próximos sete anos, de acordo com Lutz. Outra meta é eliminar por ano 1 milhão de viagens de caminhão.


Para que isso ocorra, há previsão de melhoria das linhas que ligam Rondonópolis, no noroeste mato-grossense, a Santos. O objetivo é dobrar a velocidade média, hoje de 17 quilômetros por hora, e aumentar o tamanho e a capacidade dos trens.

“O ciclo de um trem que sai de Rondonópolis, vai a Santos e volta deverá cair de 11 para cinco dias num prazo de três anos”, diz Julio Fontana, presidente da Rumo. Também há investimentos previstos para melhorar o acesso aos portos de Paranaguá, no Paraná, e de São Francisco do Sul, em Santa Catarina.

O segundo movimento privado em curso é um projeto bancado pelas empresas do agronegócio Bunge, Cargill, Louis Dreyfus e Maggi — curiosamente anunciado apenas um mês após a proposta oficial da Rumo pela ALL. Juntas, elas respondem por 75% das exportações de grãos.

As quatro se uniram para encontrar a forma mais eficiente de escoar o milho e a soja que serão despachados em 2020 — na projeção delas, até lá a exportação vai sair de 35 milhões para 52 milhões de toneladas ao ano só em Mato Grosso. Por que concorrentes resolveram se unir para investir em ferrovias?

“Vimos que os investimentos do governo em logística não eliminariam os gargalos”, diz Guilherme Quintella, presidente da Estação da Luz Participações, empresa responsável pelo projeto. Após um ano de estudos, a conclusão foi que iniciativas como a construção da Ferrovia Norte-Sul, ainda em obras, sozinhas, não reduzirão a dependência do transporte rodoviário na remessa dos grãos do cerrado.

Quase 60% da produção ainda terá de sair por caminhão. Buscando alternativas mais eficientes, foram encontradas três novas rotas pelo norte que combinarão ferrovias e hidrovias. Com elas, 96% da carga do Centro-Oeste passaria a ser escoada por trilhos.

O investimento seria de 13 bilhões de reais para a construção das três linhas e a compra de seis locomotivas e 150 vagões. O custo do transporte de 1 tonelada de soja de Lucas do Rio Verde, em Mato Grosso, a Santarém, no Pará, cairia de 230 para 180 reais.

A iniciativa das empresas salienta a distância entre as propostas do governo e o que quer o setor privado. O governo anunciou a intenção de investir 100 bilhões de reais em ferrovias, mas um estudo da consultoria Macrologística concluiu que boa parte do dinheiro poderá não servir para nada.

“Alguns trechos que o governo quer licitar passam por áreas onde não há demanda de carga ferroviária”, diz Renato Pavan, presidente da Macrologística. Um desses trechos é a Transnordestina, ferrovia que corta o Nordeste no sentido oeste-leste, orçada em 7,5 bilhões de reais.“Que carga será transportada por lá?”, diz Pavan.

Já outros projetos, como os que ligam Belo Horizonte a Salvador, seriam menos competitivos do que o transporte rodoviário e, portanto, dispensáveis. Segundo a consultoria, o governo deveria focar os recursos na construção de seis trechos, que permitiriam es­coar 220 milhões de toneladas de grãos e minérios. O custo: 40 bilhões de reais.

Outro problema que empaca os investimentos é o marco regulatório para as novas ferrovias. O governo quer adotar um modelo “desverticalizado”, isto é, em que uma empresa é responsável pela construção e manutenção das linhas e outras pelo transporte de carga. Em princípio, o modelo parece bom.


O objetivo é evitar o monopólio de donos de carga, que joga os preços nas alturas. Mas há quem duvide que esse modelo seja ­viável no Brasil: “Não temos demanda que justifique mais de uma empresa operando o mesmo trecho”, diz o advogado Bruno Werneck, especialista em infraestrutura do escritório Mattos Filho.

Também há receios em relação a possíveis conflitos na operação da via. “Se um trem descarrilhar e impedir a passagem de outro, quem pagará o prejuízo?”, diz o presidente de uma empresa interessada nas concessões. 

A consultoria Bain&Company fez um estudo avaliando modelos de transporte ferroviário de carga. Dois países merecem destaque: Austrália e Estados Unidos. Na Austrália, até os anos 90 as linhas eram utilizadas apenas pelos donos, e os investimentos minguavam.

O país adotou então um novo modelo, que quebrou os monopólios. Obrigou as donas das linhas a permitir o acesso a cargas de outras empresas. E criou uma estatal para construir e operar algumas linhas que não eram consideradas atraentes. O Brasil quer adotar um sistema parecido.

Mas não consta do modelo australiano uma de nossas jabuticabas, a presença de uma estatal como a Valec, hoje uma empresa de engenharia que o governo quer tornar intermediária da operação. A Valec compraria a capacidade ofertada pelos donos das linhas e a revenderia para os usuários.

Esse arranjo provoca calafrios nos investidores, que não confiam no cacife e na estabilidade da Valec — notória pela corrupção nos últimos anos — para cumprir contratos bilionários de 30 anos de duração. 

Na Austrália, o modelo deu certo. O volume de carga triplicou e os custos de frete caíram 24%. Mas o estudo da Bain conclui que, de todos, o modelo mais bem-sucedido foi o americano. Em 1980, o governo dos Estados Unidos desregulou o setor, dando liberdade para as empresas investirem (e desinvestirem) da forma que achassem melhor.

No modelo adotado, o dono da ferrovia ficou responsável pelo transporte da carga — seja dele, seja de clientes. A produtividade triplicou e os custos caíram pela metade. “Quando o dono da ferrovia também cuida do transporte, ele tem mais interesse em manter as vias nas melhores condições possíveis”, diz Fernando Martins, sócio da Bain.

Enquanto não há uma definição do modelo, o governo mostra euforia com os dois projetos privados que estão mexendo com o setor. “Os planos de investimento apresentados parecem robustos”, diz uma fonte do governo. “Sob essa ótica, os projetos são benéficos para o país.”

É verdade que, por enquanto, tudo está apenas no papel. (O projeto das empresas do agronegócio ainda precisa ser aceito pelo governo e posto em consulta pública.) Ninguém sabe se vão virar realidade. Mas já serviram para mostrar o que temos a ganhar se começarmos a nos livrar desse gargalo histórico.

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