Usina da Engie na Europa: a empresa tem 56 geradoras no Brasil, com dois terços da capacidade de Itaipu (Alamy/Fotoarena)
Juliana Estigarribia
Publicado em 15 de agosto de 2019 às 05h42.
Última atualização em 15 de agosto de 2019 às 11h55.
O dia 8 de abril de 2019 foi celebrado como o início de um novo e ambicioso capítulo no Brasil para a subsidiária do grupo francês de energia Engie. A data marcou sua entrada no segmento de transporte de gás natural no país. É uma atividade que deu visibilidade ao conglomerado mundialmente. O grupo atua na área de energia no Brasil desde 1996, em geral longe dos holofotes. Em 1998, quando tinha o nome de Tractebel, adquiriu a geradora Gerasul. Nos anos seguintes, seus investimentos a levaram a se tornar a maior geradora privada de energia elétrica do Brasil. Lá fora, a belga Tractebel foi incorporada pela francesa Suez.
Desde 2016 a empresa se chama Engie. Apesar de ter surpreendido muita gente por aqui, a nova tacada da Engie é condizente com uma empresa de episódios grandiosos. A história remonta ao século 19, quando a Suez foi criada para construir um canal ligando o Mediterrâneo ao Mar Vermelho. Na década de 40, entrou no setor de gás ao participar do processo de privatização da rede da França. De lá para cá, converteu-se num dos cinco maiores grupos de energia da Europa, com faturamento da ordem de 60 bilhões de euros por ano.
No mercado brasileiro, a Engie, sediada no Rio de Janeiro, atua na geração de energia elétrica, com 56 usinas que somam uma potência de 9.775 megawatts (o equivalente a dois terços da usina de Itaipu) e correspondem a 6% da capacidade instalada no país. É uma energia 90% proveniente de fontes renováveis, em especial de hidrelétricas. Mas o que colocou de vez o nome Engie nas manchetes foi a recente aquisição da Transportadora Associada de Gás (TAG), malha de gasodutos do Norte e Nordeste que pertencia à Petrobras.
O negócio, de mais de 33 bilhões de reais, foi a maior transação envolvendo alvos brasileiros em 2018 e 2019, segundo levantamento da consultoria KPMG. “Estamos participando de outros processos de aquisição além da TAG. O Brasil oferece oportunidades com escala e um mercado pujante”, afirma Maurício Bähr, presidente da Engie no país. Ele trabalha na empresa desde sua chegada ao Brasil e, ao longo de 20 anos, a subsidiária ganhou destaque gradualmente perante a matriz. Nos últimos cinco anos, a receita aqui cresceu 45%, chegando a 9,3 bilhões de reais no ano passado.
No mundo, o grupo francês obteve em 2018 uma geração de caixa de 9,2 bilhões de euros. Aproximadamente 20% desse montante é proveniente da operação brasileira. Segundo Bähr, os projetos do grupo no Brasil são prioridade porque atendem um mercado enorme e de grande potencial. São três os pilares de atuação: geração de energia, principalmente renováveis; infraestrutura, que abrange linhas de transmissão e agora a rede de gasodutos; e parcerias público-privadas em áreas como a de iluminação pública.
Os planos de expansão da Engie começaram a ganhar corpo em 2017, após a definição pelo governo de um cronograma de médio e longo prazo para os leilões de geração e transmissão de energia. Outros conglomerados europeus também estão investindo para brigar pelo valioso espaço que está se abrindo no país. A espanhola Iberdrola, a italiana Enel e a portuguesa EDP são alguns dos grupos que vêm expandindo a atuação por meio dos certames promovidos pela Agência Nacional de Energia Elétrica. Nesse cenário disputado, levar a TAG foi uma vitória e tanto.
Antes dela, a gestora canadense Brookfield já havia comprado da Petrobras há dois anos, por 5,2 bilhões de dólares, a NTS, rede de gasodutos do Sudeste. A capacidade da malha de gasodutos do Nordeste é maior, está 100% contratada e atende dez distribuidoras. O contrato de utilização prevê que a Petrobras pague por toda a capacidade de transporte dos dutos, usando ou não. No entanto, em julho deste ano, a Petrobras assinou um termo com o Conselho Administrativo de Defesa Econômica para encerrar investigações sobre supostas condutas anticompetitivas da empresa no mercado de gás natural no Brasil.
Por meio do acordo, a estatal comprometeu-se a vender ativos relacionados ao setor e definir, no prazo de 90 dias da data da assinatura do tratado, quando vai usar a malha da TAG e em quais pontos. Isso vai permitir à Engie negociar espaços de ociosidade com terceiros. A TAG tem capacidade de movimentação de quase 75 milhões de metros cúbicos de gás natural por dia. Sua expansão depende justamente do fôlego e dos planos da Engie. “Trata-se de uma infraestrutura extremamente importante no Nordeste, além de se conectar ao Sudeste. A partir dessa malha, com novos investimentos, poderemos aumentar nossa atuação para novos clientes”, diz Bähr.
Além da demanda garantida e da possibilidade de expansão dos contratos, a TAG tem outras vantagens num mercado em transformação. Com o avanço da oferta de energias renováveis, como solar e eólica, os preços dos combustíveis fósseis — incluindo carvão, petróleo e gás natural — estão caindo de forma consistente. Mesmo a política de grandes produtores do Oriente Médio e da Rússia para controlar as cotações e a guerra comercial entre os Estados Unidos e a China não têm influenciado a dinâmica desse mercado de forma efetiva.
Em cinco anos, o preço do gás natural caiu pela metade. Somente nos últimos 12 meses recuou 27%, e a tendência é de novas retrações. “Controlar o transporte do gás é uma forma sofisticada de obter informações singulares dessa indústria, ainda mais com a perspectiva de queda dos níveis das cotações. Com a compra da TAG, a Engie terá uma posição estratégica no setor”, diz Jan Jaap Verschoor, analista sediado em Londres da consultoria Oil Analytics.
De acordo com Maurício Bähr, ainda há espaço para aumentar o endividamento da Engie no Brasil se for necessário — os alvos de mais aquisições poderiam ser outros ativos da Petrobras. Sob o comando de Roberto Castello Branco desde janeiro, a estatal está trabalhando para vender tudo o que não faça sentido para o objetivo de se concentrar na exploração e na produção de óleo e gás no pré-sal. Isso inclui a alienação de campos terrestres, campos em águas rasas e também refinarias. Até julho, entraram 15 bilhões de dólares em desinvestimentos no caixa da estatal, o equivalente a 57 bilhões de reais.
A transação de maior valor foi justamente a venda dos 90% da TAG. A venda de refinarias pela petroleira é a próxima grande ação prevista pelo governo para estimular o setor de petróleo no país, algo que deve demandar uma expansão da infraestrutura de escoamento, incluindo o da rede de gasodutos. A malha dos Estados Unidos é a maior do mundo, com cerca de 500.000 quilômetros de dutos; a da Europa soma 200.000 quilômetros de extensão; e a do Brasil, apenas 10.000.
Essa infraestrutura é considerada insuficiente para atender ao aumento expressivo da produção nacional de gás associado ao pré-sal que está sendo previsto. Em junho, a Petrobras fez em Sergipe sua maior descoberta de gás desde 2006. A estatal prevê extrair de seis campos daquele estado 20 milhões de metros cúbicos por dia de gás natural. O volume pode ajudar a concretizar os planos do ministro da Economia, Paulo Guedes, de um “choque de energia barata” para favorecer principalmente o setor industrial.
Mas, enquanto a solução para aumentar a distribuição de gás não chega, empresas seguem adotando alternativas. “Atualmente, ainda não temos estocagem de gás natural no Brasil, mas isso poderia ser feito em campos de petróleo desativados. A Engie tem essa experiência na Europa”, afirma Rivaldo Moreira Neto, diretor da consultoria Gás Energy. A estocagem permite que as empresas administrem a oferta de acordo com a demanda, aproveitando ciclos de alta dos preços para negociar os contratos e até reduzindo os riscos em momentos de escassez.
“Vemos isso como uma segunda fase de desenvolvimento do negócio de transporte de gás no Brasil”, diz Bähr. Os investimentos estimados pelo grupo Engie somam 9 bilhões de reais no Brasil até 2021, incluindo planos de participação em leilões de transmissão de energia elétrica, além do fornecimento direto aos clientes por geração distribuída. “Vamos trabalhar para nos tornar em 2030 uma empresa que conecta os clientes em um cenário de mobilidade elétrica e consumo mais consciente”, diz Bähr. O primeiro, e ambicioso, passo da companhia francesa em seu segundo ciclo no Brasil já foi dado.