Revista Exame

Depois de 100 anos no Brasil, o que quer a Nestlé?

A fabricante suíça de alimentos Nestlé comemora um século de Brasil com produtos em 99% das casas brasileiras. Mas corre como nunca para se manter relevante num mercado que se transformou ainda mais na pandemia

Marcelo Melchior, presidente da Nestlé no Brasil: esforço para atender às demandas do cliente. (Leandro Fonseca/Exame)

Marcelo Melchior, presidente da Nestlé no Brasil: esforço para atender às demandas do cliente. (Leandro Fonseca/Exame)

Mariana Desidério

Mariana Desidério

Publicado em 11 de fevereiro de 2021 às 05h54.

Vai comer um Kit Kat? Pois saiba que ele agora é feito por robôs. Na fábrica de chocolates da Nestlé em Caçapava, interior de São Paulo, praticamente tudo é feito por um maquinário inteligente, da disposição do chocolate em cada barra à checagem do recheio de biscoitos waffle. Chocolates prontos, caixas e pacotes também são fechados de forma automática, por robôs que trabalham em cooperação com os operadores. Em vez de passar 8 horas por dia montando caixas de chocolates, os funcionários agora controlam o trabalho das máquinas por meio de tablets.

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A modernização da fábrica começou em 2019 e foi acelerada em 2020, em plena pandemia. Rendeu um ganho de eficiência de até 7%. Ela expressa a forma como a Nestlé quer comemorar um século no Brasil: mostrando que é possível aliar tradição com dinamismo.

“Quando vai comprar um produto Nestlé, o consumidor não se importa se aquilo tem 100 anos, dois anos ou seis meses. A marca tem de se manter atual, vinculada às necessidades de cada um de nós, caso contrário o cliente pode simplesmente comprar de outro”, afirma Marcelo Melchior, presidente da Nestlé no Brasil. 

Centro de Distribuição da Nestlé em Cordeirópolis, em São Paulo, o maior do país (Leandro Fonseca/Exame)

Manter-se atual é um desafio gigantesco para a maior empresa de alimentos do planeta, dona de 2.000 marcas, como o leite condensado Moça, o leite em pó Ninho e o achocolatado Nescau. Fundada em 1866 na Suíça, a Nestlé começou vendendo leite condensado e instalou sua primeira fábrica no Brasil em 1921. Por aqui, o produto passou a se chamar Leite Moça, apelido dado pelos consumidores brasileiros por causa da mulher suíça desenhada na lata.

Passados 100 anos, a Nestlé está hoje em 99% dos lares brasileiros, tem mais de 30.000 funcionários e 2.000 produtos no Brasil. É líder no mercado brasileiro em chocolates, com uma fatia de 30% em 2020, vice-líder em laticínios, com 11,7%, e terceiro em cafés, com 15%, de acordo com dados da consultoria Euromonitor.

O faturamento global em 2019 foi de 92,6 bilhões de francos suíços, com lucro de 12,6 bilhões de francos suíços. A empresa vale 327 bilhões de dólares na bolsa e é vista como um investimento seguro. Mas nada disso garante seu futuro. 

(Arte/Exame)

Assim como suas principais concorrentes, a Nestlé encara um mercado em transformação, ditado pela busca por alimentos mais saudáveis, mais frescos e que deem conta de alimentar 7 bilhões de pessoas com menos impacto ambiental. São desafios compartilhados por gigantes como a americana Kraft Heinz e a holandesa Unilever, que chegaram a negociar uma fusão.

A Nestlé tem uma estratégia mais discreta, mas também está em meio à maior transformação de sua história. Em 2019, os produtos renovados ou novos chegaram a 30% das vendas. O Brasil, quarto maior mercado da empresa, é peça-chave na renovação. Na produção, a meta é inserir as fábricas na indústria 4.0. A unidade de Caçapava é onde a empresa testa inovações que depois poderão ser ampliadas para as outras 19 unidades industriais no Brasil.

A fábrica de Caçapava tem 14 robôs que interagem com o ser humano. Até o final do ano, serão 20. Para acelerar o processo de modernização, a Nestlé inaugurou no final de 2020 um Centro de Inovação e Tecnologia (CIT), instalado no Parque Tecnológico de São José dos Campos, em São Paulo. O objetivo é interagir com o ecossistema do parque, incluindo startups, em busca de soluções para as necessidades da Nestlé.

Hoje o centro tem 260 projetos, em áreas como robótica, veículos autônomos e inteligência artificial. Nos últimos três anos, a ­Nestlé investiu mais de 2 bilhões de reais no Brasil, em especial em modernização e ampliação de linhas nas fábricas. Neste ano, os investimentos chegarão a 900 milhões de reais, sendo 300 milhões para automação e modernização das fábricas. 

Fábrica da Nestlé em Caçapava, São Paulo: produção com robôs inteligentes (Germano Lüders/Exame)

Outra frente que tem passado por um banho tecnológico é a de logística. Com a corrida aos supermercados vista no início da pandemia, a Nestlé passou a buscar novas soluções para garantir que os produtos chegassem às prateleiras. No final do ano passado, a companhia começou a testar uma ferramenta que ajuda as lojas a montar seu pedido ideal com base em suas vendas pregressas, a fim de evitar que elas fiquem sem estoque.

Outra tecnologia em teste é um software que ajuda o funcionário a separar as cargas de acordo com os pedidos de cada cliente. Desde 2013, a Nestlé possui uma torre de controle que acompanha onde está cada veículo que transporta seus produtos. Todos os dias são cerca de 800 caminhões rodando pelo país.

“O momento da verdade é quando o consumidor chega na gôndola e encontra nosso produto para comprar. Se ele não encontra, nosso trabalho não deu certo”, afirma Marcelo Nascimento, vice-presidente de cadeia de suprimentos. 

A pandemia impulsionou os canais digitais, como o Empório Nestlé online, e-commerce da marca. Nesse espaço, a companhia tem contato direto com o consumidor e testa produtos e preços. O site tem mais de 100.000 consumidores cadastrados. Desde 2019 a Nestlé tem também a plataforma Vem de Bolo, um serviço especializado de confeitaria feito em parceria com boleiras cadastradas.

O cliente pede o bolo ou o doce de sua preferência pela internet e recebe o produto em casa. As vendas da plataforma foram de 1.000 unidades em 2019 para mais de 10.000 em 2020. Com o marketplace, a Nestlé ganha experiência na venda direta ao consumidor e conhece melhor o comportamento do cliente.

“Temos aprendizado na cadeia inteira”, afirma Carolina Sevciuc, vice-presidente de transformação digital da Nestlé. 

(Arte/Exame)

Historicamente, as indústrias de bens de consumo se esforçaram para ter um marketing assertivo nos pontos de vendas (o chamado trade marketing) e um contato próximo com o varejo. Para saber o que o consumidor queria, a solução eram pesquisas por amostragem. Tudo mudou com o avanço do universo digital.

“Não basta fazer estudos amostrais como antigamente, é preciso interagir permanentemente. O que está em jogo é a capacidade de inovar, de interpretar mudanças de demanda e identificar oportunidades”, afirma Alberto Serrentino, especialista em varejo e fundador da consultoria Varese Retail.

Um dos exemplos mais emblemáticos quando o assunto é a relação direta entre indústria e cliente vem da própria Nestlé, com a Nespresso. A marca de café vende um produto aspiracional e de alta recorrência, cria um vínculo com o cliente com um clube de relacionamento e atende o consumidor em diversas plataformas, seja nas lojas físicas, seja na venda online.

“É um dos melhores exemplos do mundo de como uma grande empresa pode ser inovadora. A pergunta é onde está o próximo Nespresso”, afirma Michael Poynor, especialista em varejo baseado em Londres.

(Arte/Exame)

Enquanto busca sua próxima bala de prata, a Nestlé corre para se alinhar às tendências que o mercado já conhece. Uma delas é a da busca por produtos mais saudáveis e naturais. O mercado de produtos saudáveis cresceu 55% no Brasil em cinco anos e movimentou 46 bilhões de reais em 2020. A expectativa é crescer mais 35% até 2025, de acordo com a Euromonitor.

A Nestlé dominou como nenhuma outra indústria o mercado das grandes marcas — agora precisa mostrar ser capaz de competir com as novatas. “Se a Nestlé apostar só no campeão de vendas, daqui a pouco pode se surpreender com vários pequenos mordendo uma parte do mercado”, afirma Cynthia Antonaccio, especialista em inovação no setor de alimentos. De 2015 a 2020, a Nestlé investiu mais de 400 milhões de reais em pesquisas para ter um portfólio mais saudável.

Nos últimos anos a empresa reduziu mais de 14.000 toneladas de açúcar em seus produtos. Agora é possível encontrar itens como o Nescau 0% açúcar e papinhas para bebê orgânicas nas prateleiras. Em 2019, trouxe para o Brasil a marca Nature’s Heart, de produtos naturais e plant-based.

A marca faz parte da Terrafertil, companhia fundada no Equador e comprada pela Nestlé em 2018. A Nestlé fez mais de dez aquisições desde 2017. "Como maior empresa de alimentos do mundo, temos um papel importante a desempenhar para melhorar as opções dos consumidores no mercado", diz o presidente da Nestlé para a região das Américas Laurent Freixe. O desafio é vender os produtos que um público crescente — mas ainda pequeno — de consumidores deseja sem deixar de atender a massa de clientes da marca.

A aposta da Nestlé é de que há espaço para atender os dois. “O mundo não vai ser preto e branco. Todos nós navegamos de um mundo para outro; às vezes somos salada, às vezes somos picanha”, diz o presidente, Marcelo Melchior. 

Outra frente cada vez mais importante para conectar-se com o consumidor pós-pandemia é a da sustentabilidade. A companhia inaugurou recentemente um instituto na Suíça voltado para a produção de embalagens 100% recicláveis e sustentáveis. Também é signatária do compromisso global da Fundação Ellen MacArthur, que prevê metas para a redução do uso de plásticos até 2025.

Entre elas estão a eliminação de embalagens desnecessárias e a utilização de 100% de embalagens reutilizáveis, recicláveis ou compostáveis. “São mudanças complexas porque envolvem o modelo de negócios. É preciso ter um sistema de logística reversa; isso interfere na forma de se relacionar com os pontos de venda, por exemplo”, afirma Thais Vojvodic, integrante da fundação.

No caso da Nestlé, entre as mudanças visíveis para o consumidor brasileiro estão a substituição dos canudos de plástico pelos de papel e a retirada do plástico que envolvia a caixa de bombons Especialidades, o que permitirá reduzir 450 toneladas de plástico por ano. A meta da empresa para o Brasil é reduzir, em três anos, o uso de mais de 6.100 toneladas de materiais em embalagens. A empresa tem desenvolvido, ainda, embalagens que possam não só ser recicladas mas também absorvidas pelo meio ambiente. 

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Todos esses movimentos fazem parte de uma mudança geral na Nestlé, acelerada com a chegada do presidente global Mark Schneider, um outsider que veio do setor de saúde quebrando a tradição da companhia de indicar talentos internos para o cargo. Desde que Schneider assumiu, em 2017, o gigante dos alimentos ampliou sua margem de lucro de 8% para 13,6% e acelerou mudanças e aquisições.

Só no final do ano passado, comprou a empresa americana de comidas prontas Freshly, por 950 milhões de dólares, e também uma fatia da britânica Mind­ful Chef, que vende receitas saudáveis e refeições congeladas. Ambas as empresas são focadas em alimentação saudável e vendem direto ao consumidor.

Em entrevista recente, Schneider afirmou que o segmento de saúde e nutrição “será um dos principais vetores de crescimento da companhia”. Outros segmentos que têm ganhado força são os de produtos para pets e itens com foco em saúde.

“A Nestlé é uma empresa conservadora, que promete menos e entrega mais. Porém, para entrar nesses negócios mais contemporâneos, ela vai precisar pagar um prêmio”, afirma Poynor. O gigante que tem um ninho como símbolo vai precisar sair cada vez mais de sua zona de conforto.  

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