A parte 2 da peregrinação de Haddad por Brasília
O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, passou a semana em via sacra por Brasília. Desde que a viagem do presidente Lula à China foi cancelada e abriu espaço para a agenda interna, Haddad foi e voltou do Alvorada — onde Lula se recupera de uma pneumonia —, do Congresso, de conversas reservadas com ministros e parlamentares, de declarações a jornalistas entre um compromisso e outro. Após questionamentos diversos, o arcabouço fiscal foi finalmente apresentado à sociedade na manhã desta quinta-feira, 30.
A proposta, segundo o ministro, foi “estressada” de todos os lados nos últimos dias, e teria provado sua resiliência. A proposta do governo inclui uma meta primária por bandas, com compromisso de zerar o déficit em 2024, e crescimento real da despesa (hoje ausente do teto de gastos) de no mínimo 0,6% e no máximo 2,5% ao ano.
"A rota está traçada, com aval do presidente da República. E nós vamos perseguir", disse Haddad.
Se aprovar a proposta com as alas internas do governo foi difícil, porém, começa agora a “parte 2” da caminhada da Fazenda: o Congresso. Haddad disse estar confiante na aprovação da medida, mas a pergunta que fica é o quanto do texto que passeou por Brasília nas últimas semanas será mantido .
Desde que o governo Lula assumiu o poder em janeiro, está posto que o arcabouço fiscal, e, além disso, a reforma tributária, serão os temas do ano, que deixarão legado do mandato e abrirão caminho para todas as outras agendas.
Por outro lado, o governo ainda sofre com a falta de uma base parlamentar, enquanto nomes da direita e do Centrão (como o PL do ex-presidente Jair Bolsonaro) tiveram votação expressiva. A volta do ex-presidente Bolsonaro ao país, horas antes de Haddad anunciar o arcabouço, é mais um elemento no bolo.
Ainda que o Congresso tenha começado a trabalhar há dois meses, a capacidade do governo de aprovar seus dois projetos mais prioritários começa a ser medida de fato a partir dos próximos dias.
Votação em abril, com relator do PP
Embora tenham ocorrido reuniões preliminares de apresentação do texto entre Haddad e lideranças parlamentares, o arcabouço ainda não foi protocolado no Congresso. Isso deve ocorrer entre esta sexta-feira, 31, e a próxima semana. O ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, disse que o arcabouço será enviado aos parlamentares “provavelmente já no começo da semana que vem”.
O texto em si não será novidade aos congressistas, mas é só a partir do envio oficial que começa a tramitação de fato. Além disso, o envio do texto deve trazer mais detalhes extensivos, como metodologia dos cálculos da Fazenda, que ficaram de fora da apresentação mais geral.
Haddad teve em março reuniões com os presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), para apresentar o arcabouço. Na véspera da apresentação ao público, se reuniu novamente com Lira e, depois, com Pacheco. As reuniões também tiveram a participação de líderes das bancadas nas casas.
Sobre as negociações, Haddad disse ter tido a sensação de que o Congresso está "realisticamente otimista".
"Passei quatro horas respondendo a parlamentares da oposição. As pessoas perguntaram o que quiseram para mim", disse o ministro sobre as conversas com líderes da Câmara e do Senado desde ontem. "Minha impressão é de que faz sentido para eles que a mudança é benéfica para o Brasil."
Nesse embalo, Lira disse nesta quinta-feira que trabalha para aprovar o arcabouço ainda em abril, e que o relator será de seu partido, o PP.
Nos bastidores, Lira tem dito que quer um deputado com trânsito no mercado, segundo afirmaram fontes à agência Reuters. Até o momento, os nomes mais cotados são:
- Cláudio Cajado (BA),
- Fernando Monteiro (PE),
- André Fufuca (MA).
Dentre eles, Cajado desponta como favorito para relatar o texto na Câmara. Em seu oitavo mandato, ele foi vice-líder do governo de Jair Bolsonaro na Câmara, além de procurador da Casa. Atualmente, é líder do PP.
O passo a passo do arcabouço no Congresso
O texto começa a jornada na Câmara e vai depois ao Senado. De acordo com a Agência Câmara, o projeto enviado deve se juntar a outro que já tramita na casa, o PLP 62/23, apresentado neste ano pelo deputado Pedro Paulo (PSD-RJ).
Além disso, outras mudanças ao texto original devem vir, sobretudo pelas mãos do relator escolhido por Lira para o processo e outros grupos de pressão. O projeto deve seguir a seguinte linha do tempo:
- Um projeto de lei complementar enviado pela Presidência da República começa a tramitação na Câmara e vai para comissões de mérito pertinentes ao tema;
- A distribuição da proposição às comissões específicas é feita pela Secretaria-Geral da Mesa, o que dá poder nesse processo ao grupo do presidente Arthur Lira;
- Se forem mais de quatro comissões necessárias, o texto vai a uma comissão especial em vez de comissões separadas, o que, por ora, é mais provável de ocorrer;
- A comissão especial tem então um relator indicado e sessões de análise da proposta, podendo o relator alterar o texto original em seu relatório substitutivo, além de aceitar ou rejeitar sugestões de pares da comissão;
- Após passar na comissão, o texto vai a plenário, com votação dos 513 deputados;
- O que vai a votação em plenário é não o texto original enviado pelo governo, mas o substitutivo do relator. Após a votação do substitutivo em si, deputados podem ainda propor destaques, mudanças no texto principal;
- Após passar na Câmara, o texto vai ao Senado, que funciona como casa revisora;
- Se houver mudanças significativas no Senado, o texto volta à Câmara, que tem a palavra final.
“O grande desafio de Haddad será evitar a desconfiguração do projeto, bem como impedir que surjam impasses que paralisem a votação e coloquem em risco os planos de Lula de acabar com o teto de gastos”, disse em nota a clientes a consultoria política Barral M. Jorge.
Depois do processo legislativo, o projeto segue para sanção presidencial, com o presidente podendo vetar partes do texto. Nesse caso, o veto volta para análise do Congresso.
Há ainda outros artifícios legislativos que o governo poderia usar, como enviar o projeto em regime de urgência - nesse caso, o texto vai direto a plenário, sem passar pelas comissões. Esse formato, porém, costuma exigir nos bastidores um acordo de líderes e não parece até o momento ser o dispositivo que será usado pelo governo.
Aumento de arrecadação
Além do arcabouço, Haddad pontuou nesta quinta-feira que deve enviar em abril medidas de arrecadação que podem chegar a R$ 100 bilhões ou R$ 150 bilhões, como revisão de benefícios e alíquotas maiores para setores como apostas eletrônicas. As medidas não são diretamente vinculadas ao arcabouço, mas são importantes para que as metas de superávit propostas na regra fiscal sejam cumpridas, e uma discussão tende a afetar a outra.
Outros temas de interesse do Planalto que podem ficar no centro das negociações são as medidas provisórias (MP) enviadas pelo governo e que aguardam votação (caso da MP que reonerou combustíveis ou a que reestruturou o número de ministérios), diz Marcus Deois, diretor da consultoria Ética, de inteligência política em Brasília.
Embora inicialmente não haja relação direta entre as MPs e o arcabouço, os temas podem se entrelaçar nas negociações de bastidores. "Existe um caminho complexo, com inúmeras possibilidades técnicas e políticas que permitem mudança radical no interesse do projeto ou não", diz.
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Não é PEC: quantos votos são necessários?
Apesar desses desafios, para o governo, um dos pontos cruciais no arcabouço será seu caráter de lei complementar, que exige somente maioria simples dos 513 deputados e 81 senadores.
Isso muda tudo em relação ao teto de gastos, a regra fiscal que vigora desde o governo Michel Temer.
Da forma como foi aprovado em 2016, o teto implicava que quaisquer mudanças têm de ser passadas via emenda constitucional (ou que aguardassem uma revisão do teto em 2026, dez anos depois). Mudanças constitucionais exigem 3/5 dos votos no Congresso, como teve de fazer o presidente Jair Bolsonaro em momentos em que mudou o teto, como na PEC dos Precatórios. Mas é uma aprovação que necessita de ampla articulação política para qualquer governo — o que seria ainda mais desafiador ao governo Lula, que ainda não tem uma base estruturada.
A autorização para o governo aprovar a âncora somente via lei complementar ocorreu durante a tramitação da PEC de Transição, no fim do ano passado e ainda antes de o governo Lula tomar posse. No texto aprovado — a primeira grande vitória do governo Lula no Congresso —, abriu-se espaço no Orçamento de 2023 para frentes como o Bolsa Família ampliado e ficou também decidido que a âncora que substituiria o teto de gastos não precisaria ser uma emenda constitucional.
O arcabouço fiscal será entregue ao Congresso antes da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), que também tem de ser enviada pelo governo até 15 de abril. A ideia é que o arcabouço seja já incorporado à discussão do Orçamento ao longo do ano. Para o governo, o ideal seria uma tramitação rápida, mas entre idas e vindas, o tema pode se arrastar até o fim do primeiro semestre.
O primeiro teste do governo
Aquela negociação da PEC de Transição ainda em 2022 foi crucial para que o governo, hoje, pudesse ter confiança na aprovação da nova regra fiscal. Desde então, porém, parte da composição do Congresso mudou, o que obrigará o governo Lula a reabrir negociações. Na Câmara, onde o trabalho tende a ser mais difícil e onde Lula tem relação ambígua com o presidente Arthur Lira, serão precisos 257 votos dos 513 deputados.
É um número possível, apesar da base pequena do governo. A estimativa é que, do núcleo duro da base do governo, sejam 140 deputados, segundo Antônio Augusto de Queiroz, do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (DIAP). Há ainda, só pela análise partidária, apoio possível de outros 206, de partidos como União Brasil, MDB ou PSD.
“Considerando potenciais dissidências nos 3 grupos, estimamos que o governo poderá contar com base máxima entre 330 e 364 deputados, e entre 51 a 57 senadores”, escreveu Queiroz em análise de fevereiro após a posse dos eleitos.
Mas o caminho da aprovação será intenso. Nas primeiras horas após a apresentação do arcabouço, alguns dos núcleos parlamentares, à esquerda e à direita, deixaram claro que o texto será disputado no parlamento.
O senador Ciro Nogueira (PP-PI) chegou a chamar a proposta de “arcabouço do mal” nesta quinta-feira.
Ex-ministro da Casa Civil de Bolsonaro, Ciro Nogueira tem se posicionado para — pela primeira vez em sua trajetória no Centrão — se consolidar como oposição ao governo. O mesmo tem ocorrido com nomes do PL, comandado pelo presidente Valdemar da Costa Neto e que votou em peso já contra a PEC de Transição do governo no fim do ano. O comportamento tende a se repetir com o arcabouço.
Na outra ponta do espectro, políticos mais à esquerda criticaram alguns pontos do arcabouço ao longo do dia. Uma das principais críticas é à limitação de despesas mesmo em anos de crescimento.
“Hora de trabalhar para aperfeiçoar, e muito, o texto. Precisa de mudanças profundas. No mínimo, temos que alterar bastante os parâmetros”, escreveu o assessor econômico do PSOL na Câmara, David Deccache, em seu perfil no Twitter.
Na bancada direta do PT, não é segredo que as limitações de gastos sofreram críticas internas. Mas, ao menos nos pronunciamentos públicos, petistas se mostraram mais elogiosos à proposta — que já foi chancelada por Lula antes da apresentação. “Bem recebidas no Congresso, as novas regras devem ser aprovadas em breve”, disse o senador Humberto Costa (PT-CE).
Com o sinal verde do presidente Lula, o arcabouço fiscal elaborado pelo ministro @Haddad_Fernando vai dar o Brasil a estrutura de que precisa para fortalecer nossa economia e avançar no desenvolvimento. Bem recebidas no Congresso, as novas regras devem ser aprovadas em breve. pic.twitter.com/nETSXS2Jyy
— Humberto Costa (@senadorhumberto) March 30, 2023
Será a primeira prova de fogo do governo no Congresso. O resultado desse processo de tramitação nas próximas semanas pode dar confiança (ou não) ao governo para a próxima batalha do ano, a aprovação da primeira parte da reforma tributária, inicialmente com foco no consumo (o governo decidiu fatiar a parcela referente à tributação da renda para uma segunda fase).
Os sonhos "macro" do Planalto
Para além das idas e vindas que estão por ocorrer no Congresso, a apresentação da regra fiscal de forma antecipada (o prazo final era agosto) tem um objetivo claro: ajudar a melhorar as expectativas de agentes econômicos e, com isso, lançar as bases para que o Banco Central inicie um processo de corte de juros.
A taxa básica de juros, a Selic, está hoje em 13,75%, a maior desde 2016. O tema tem sido alvo de embates entre membros do governo Lula e o presidente do BC, Roberto Campos Neto.
Com a regra fiscal apresentada, a expectativa é zerar o déficit a partir de 2024, passar a ter superávit a partir de 2025 e estabilizar a dívida pública (isto é, fazer com que pare de crescer) a partir de 2026, em torno de 76% do PIB. A dívida pública do Brasil tem se descolado da dos demais emergentes em uma combinação de juros altos e aumento de gastos na pandemia e é uma das grandes preocupações entre agentes econômicos no momento.
Ao apresentar o arcabouço, Haddad e secretários pontuaram a necessidade de harmonizar as políticas fiscal e monetária para acelerar a estabilização da trajetória da dívida pública. Não à toa, a apresentação feita pelo secretário do Tesouro, Rogério Ceron, incluía cenários de dívida com os juros atuais e com as expectativas melhoradas, projetando sobre o quanto a dívida cairia mais rápido já com juros menores.
"Se conseguirmos ser bem-sucedidos nessa comunicação, e principalmente no cumprimento do que está sendo sinalizado, é muito razoável imaginarmos o fechamento de 1 ponto percentual na curva termo da taxa de juros", disse Ceron.
A ministra do Planejamento, Simone Tebet, também elogiou o desenho e afirmou que a "grande virtude" da regra é ser crível. Tebet também chamou atenção para o fato de a regra não ter exceções. "Ela é fácil de ser entendida, transparente, o que gera estabilidade e previsibilidade", disse a ministra.
Em sua última ata, o Comitê de Política Monetária do Banco Central (Copom) citou o arcabouço, quando o texto ainda não havia sido apresentado. Na visão dos membros, a nova regra "pode levar a um processo desinflacionário mais benigno através de seu efeito no canal de expectativas", mas também frisou que tal efeito não é garantido. Na outra ponta, o comitê respondeu negativamente ao que chamou de "adoção de políticas parafiscais expansionistas" do governo e citou expectativas de inflação desancoradas.
Nos mercados, a reação à apresentação do arcabouço foi mista. O arcabouço foi considerado positivo na medida em que cria uma trajetória de despesa crescendo sempre abaixo da receita. Mas ainda não se sabe como o governo pretende aumentar as receitas para alcançar as projeções – consideradas otimistas.
O Ibovespa subiu quase 2% após a apresentação do arcabouço, em sua quinta alta consecutiva, mas a ressaca veio logo no dia seguinte, e o índice operava em baixa perto de 1% nesta sexta-feira, 31.
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Créditos
Carolina Riveira
Repórter de Economia e Mundo
Formada pela Universidade de São Paulo, cobre temas de políticas públicas, economia e política internacional para a EXAME. Publicou em veículos como Pequenas Empresas e Grandes Negócios e Folha de S.Paulo.
Luciano Pádua
Editor de Macroeconomia
Formado pela UFRJ e mestre em administração pública pela Harvard Kennedy School. Tem passagens pelo JOTA, revista VEJA, Jornal do Brasil e O Antagonista. Atualmente, é responsável pelas editorias EXAME Agro, Brasil, Economia e Mundo.