A seleção mais concorrida do Brasil
A AmBev atraiu 60 000 candidatos para seu último programa de trainee -- o dobro de sua média histórica. E escolheu apenas 26 entre eles. Como funcionou o processo de escolha mais disputado do país
Da Redação
Publicado em 10 de outubro de 2010 às 04h11.
Um burburinho eufórico tomou conta da sede da AmBev, na zona sul de São Paulo, na manhã de sexta-feira 11 de dezembro. Um grupo de 26 jovens recém-saídos da universidade trocava ideia na área de convivência dos funcionários, um bar com chopeira e máquina de refrigerante instalado numa empresa obcecada por trabalho e pelos resultados que ele deve gerar. E o que essas 26 pessoas mais queriam fazer naquele momento era exatamente isso -- trabalhar. O grupo forma a mais nova turma de trainees da AmBev e estava ali para seu primeiro compromisso oficial - um café da manhã com o presidente da companhia, João Castro Neves, e nove diretores. Entre porções de salada de frutas e pães de queijo, eles falaram sobre os rumos da empresa e os desafios que vão enfrentar ao longo de 2010. Nunca foi tão difícil participar desse tradicional ritual de iniciação, que acontece desde o primeiro programa de trainees, em 1990, ainda na antiga Brahma. No ano passado, foram 32 000 candidatos para 19 selecionados. Desta vez, o número de inscritos dobrou para quase 60 000 - o que resultou num recorde de 2 310 candidatos por vaga. Nenhum outro processo de seleção na iniciativa privada ou na esfera pública é tão concorrido no Brasil. A disputa por uma vaga na AmBev supera concursos públicos, como o da Polícia Federal, um dos mais disputados do país, com 192 candidatos por vaga. É também maior do que o vestibular de medicina da Universidade de São Paulo. "Todos que chegaram à etapa final do processo viam a entrevista de seleção como se fosse uma final de Copa do Mundo", diz Arthur Ourivio Nieckele Massa, de 25 anos, recém-formado em ciências econômicas pela UFRJ e um dos 26 selecionados pela AmBev.
O recorde no número de inscritos ocorreu graças a uma reinvenção do programa. Pela primeira vez em sua história, por exemplo, a AmBev fez um estudo prévio para conhecer o público-alvo de seu programa de trainees -- estratégia usada mais na área de marketing do que na de recursos humanos. Entre março e maio de 2009, a companhia reuniu dois grupos de universitários -- um em São Paulo e outro no Rio de Janeiro - para uma bateria de entrevistas. Descobriu que, acima de qualquer outra coisa, os jovens dão preferência a empresas que lhes permitam um crescimento profissional rápido - justamente uma das características mais marcantes da AmBev. De posse dessa informação, a companhia optou por usar a possibilidade de ascensão acelerada como mote da campanha de divulgação. Questões que chegaram a ser destacadas em anos anteriores, como ações de sustentabilidade desenvolvidas pela companhia, passaram para segundo plano. "A pesquisa nos mostrou que tínhamos todos os atributos necessários para atrair os universitários, só não estávamos nos vendendo direito", diz Tiago Porto, gerente de RH da AmBev e responsável pelo programa de trainees em 2009.
Uma vez definido como o programa seria "vendido", era preciso alcançar o maior número possível de jovens -- quanto maior o número de inscrições, maior a chance de encontrar gente boa. Atrair milhares de candidatos, portanto, não era visto como um estorvo, mas como uma oportunidade. Para ampliar o alcance do programa, a AmBev mergulhou na internet e nas redes sociais. Até 2008, os meios de divulgação utilizados eram apenas jornais e revistas. Em junho, porém, a situação começou a mudar. A AmBev enviou kits sobre o programa para 200 blogueiros selecionados e lançou um jogo no Orkut que simulava a distribuição de bebidas. No mesmo mês, um site específico para os candidatos entrou no ar e, em seis meses, teve mais de 300 000 visitantes. Seis trainees da turma de 2008 iniciaram blogs para contar as próprias experiências e responder às perguntas dos candidatos. "A verdade é que nós mesmos nos inscrevemos em 2008 sem saber muito bem qual seria a estrutura do treinamento", diz Clarissa de Araújo, uma das blogueiras. "Por isso conseguíamos entender bem as dúvidas dos interessados em participar do programa." Com seu nome divulgado no site, Clarissa passou também a receber convites de amizade e a conversar com candidatos que a encontram no Orkut e no Facebook. Em paralelo, executivos mais experientes ficaram responsáveis por apresentar a empresa e tirar dúvidas dos universitários. Nos anos anteriores, esses executivos participavam apenas de palestras organizadas em 60 universidades de todo o país. Desta vez, também conversaram com os potenciais candidatos em chats que aconteciam todas as sextas-feiras ao longo de dois meses. O mais concorrido deles, com o presidente João Castro Neves, atraiu 1 800 inscritos. "Esse tipo de interação é importante para mostrar que damos realmente valor ao programa", diz Porto.
A triagem começou com uma prova online de inglês, português e conhecimentos gerais. Todos os candidatos que acertaram pelo menos metade das questões passaram para as fases seguintes, que previam a interação com funcionários da companhia. O primeiro contato foi com os trainees dos anos anteriores, que coordenaram as dinâmicas de grupo. À medida que as etapas avançavam, a graduação dos executivos que interagiam com os jovens também subia. Gerentes de fábrica faziam entrevistas em suas regiões. Diretores e o próprio Castro Neves cuidaram das etapas finais. Com o aumento do número de inscritos, mais executivos tiveram de se envolver no processo, já que a AmBev não terceiriza nenhuma etapa da seleção. Neste ano, 419 deles participaram de alguma fase do recrutamento - ante 300 em 2008.
O funil é tão estreito que dos 60 000 candidatos apenas 59 chegaram à última entrevista. Nessa etapa, eles foram divididos em dez grupos - e cada um deles se sentou frente a frente com Castro Neves e cinco diretores. Antes das conversas, cada executivo recebe uma espécie de dossiê com os pontos fortes e fracos de cada candidato e um relato sobre seu desempenho ao longo do processo. A entrevista dura cerca de 2 horas, e passa pelos mais variados temas. Os executivos perguntam o que cada candidato mudaria na companhia, questionam sobre quais os maiores líderes da atualidade, pedem opinião sobre temas polêmicos, como apagão e privatização. No fim, os aprovados devem ser escolhidos por consenso. "Queremos jovens com raciocínio lógico e brilho nos olhos", diz Castro Neves.
Ao longo dos últimos 19 anos, o programa de trainees tem sido a principal máquina da fábrica de talentos em que a AmBev se transformou. Das 500 pessoas que já passaram pelo treinamento, 150 ocupam hoje cargos de gerentes seniores e 22 são diretores. Um deles, o carioca Luiz Fernando Edmond, tornou-se presidente em apenas 15 anos e, desde 2008, comanda as operações da ABInBev na América do Norte. Marcio Froes, presidente da Labatt no Canadá, também passou pelo processo. Desde o início os trainees são preparados para assumir cargos dessa importância. Nos primeiros cinco meses do programa, eles migram entre as fábricas, a área de vendas e a administrativa e têm a chance de conhecer cada detalhe do negócio - o que inclui tarefas tão distintas quanto carregar caixas de cervejas morro acima em favelas cariocas e participar de reuniões executivas no exterior. Depois, recebem cinco meses de treinamento na área que escolherem. Em dois anos, a maioria é promovida a gerente e, se cumprir as metas, embolsa até 18 salários extras por ano. A cobrança, como é de imaginar na ultracompetitiva cultura da AmBev, é proporcional às oportunidades. "Entrar no programa é só o primeiro passo", diz Castro Neves. "Eu costumo dizer a esses jovens que eles precisam começar a entregar resultados logo no primeiro dia."
Embora recordista em inscrições, a AmBev não é a única empresa que tem experimentado uma explosão no número de interessados em participar de seus programas de trainees. Na Unilever, que até o ano passado tinha o processo seletivo mais disputado do país, o número de candidatos passou de 35 000 para 47 000 no último ano. No Itaú Unibanco, o salto no mesmo período foi de 21 000 para 34 000 inscritos. Parte desse aumento se justifica pelo "congelamento" no número de vagas. Historicamente, a quantidade de companhias que oferecem esse tipo de recrutamento cresce 30% ao ano. Por causa da crise, em 2009 o número ficou estagnado em 200 empresas. Para Sofia Esteves, sócia e fundadora da Companhia de Talentos, consultoria especializada na coordenação de programas de trainees, a importância desse tipo de iniciativa deverá aumentar nos próximos anos. "Ter cada vez mais executivos qualificados vai ser primordial para um cenário de crescimento que deve vir pela frente", diz ela. Nesse sentido, quebrar o recorde de candidatos é um bom começo -- mas não uma garantia de que entre os 26 aprovados pela AmBev estarão os futuros diretores ou presidentes da companhia. "O tempo vai mostrar se essa é a melhor turma de nossa história", diz Castro Neves.