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O renascimento da Microsoft

David Cohen Uma vaca pode voar? Quase três anos depois de o indiano Satya Nadella substituir o destemperado Steve Ballmer em seu comando, a resposta da Microsoft parece ser sim – se conseguir deixar de ser vaca. Nos últimos dez anos, a Microsoft foi considerada primordialmente uma vaca leiteira – a analogia não muito lisonjeira […]

SATYA NADELLA, CEO DA MICROSOFT: sua humildade e tranquilidade estão fazendo a microsoft renascer / Lucas Jackson/ Reuters (Lucas Jackson/Reuters)

SATYA NADELLA, CEO DA MICROSOFT: sua humildade e tranquilidade estão fazendo a microsoft renascer / Lucas Jackson/ Reuters (Lucas Jackson/Reuters)

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Da Redação

Publicado em 24 de novembro de 2016 às 16h30.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h18.

David Cohen

Uma vaca pode voar? Quase três anos depois de o indiano Satya Nadella substituir o destemperado Steve Ballmer em seu comando, a resposta da Microsoft parece ser sim – se conseguir deixar de ser vaca.

Nos últimos dez anos, a Microsoft foi considerada primordialmente uma vaca leiteira – a analogia não muito lisonjeira para empresas que tenham grande receita mas pouca capacidade de crescer. Um reflexo disso foi a estagnação do valor de suas ações.

No final de outubro, no entanto, as ações da Microsoft ultrapassaram seu recorde histórico de 59,56 dólares, atingido em 1999. E não pararam de subir. Na última semana, oscilaram entre 60 e 62 dólares… e, segundo vários analistas, ainda têm viés de alta. De repente, a gigante desengonçada parece ter se tornado a empresa de tecnologia mais atraente do mercado.

Parte desse resultado se deve a uma manipulação contábil: nos últimos anos, a Microsoft retirou ações do mercado. Portanto, mesmo suas ações tendo passado a cotação de 1999, o valor de mercado da companhia, por volta dos 470 bilhões de dólares, ainda está longe do seu ápice de 618,9 bilhões.

Ainda assim, a recuperação da companhia é fantástica. Quando Nadella tomou posse, a Microsoft, às vésperas de completar 40 anos, tinha um quase monopólio no sistema operacional dos computadores (Windows) e nos programas de produtividade (o pacote Office) que lhe garantia um fluxo de dinheiro de dar inveja a muitos países. Mas não conseguia inventar nada que rivalizasse minimamente com esse sucesso. Pior: os computadores perdiam espaço para tablets e smartphones – ou seja, seu império se reduzia. Desde 2010, ela deixara de ser a empresa mais valiosa do planeta, ultrapassada pela rival de longa data, a Apple.

Sob vários aspectos, a transformação que Nadella implementou na Microsoft faz lembrar a mítica reviravolta que a IBM deu nos anos 90, depois que seu modelo de negócios de venda de computadores foi chacoalhado pela própria Microsoft.

Nos dois casos, a receita foi reconhecer as derrotas, lamber as feridas e apontar a empresa para outra direção. Para fazer isso, a IBM foi buscar um executivo no mercado, Lou Gerstner, um ex-consultor da McKinsey. A Microsoft, de forma mais surpreendente, recorreu a uma “prata da casa”: Nadella está na empresa desde 1992.

Largar um trem, pegar o próximo

A estratégia de Nadella consiste em largar a alça do trem atual para ter condições de embarcar no próximo. Parece ter se formado um consenso entre futuristas e executivos das empresas de tecnologia de que estamos à beira de uma “quarta revolução industrial”. Depois da mecânica, da elétrica e da digital, estaria na hora da “internet das coisas”, uma mistura das três revoluções anteriores suportada pela conexão à internet.

Não à toa, a primeira grande aposta da Microsoft é a nuvem de dados. A empresa quer ser a maior fornecedora de serviços pela nuvem, e a principal plataforma de conexão entre diferentes aparelhos das pessoas e das empresas.

O sucesso que tem conseguido na nuvem, divulgado em seu relatório de resultados do trimestre passado, foi o principal motivo para o salto que suas ações deram. A Microsoft afirmou ter chegado a uma receita anualizada de 13 bilhões de dólares em sua divisão de nuvem – 1 bilhão a mais do que os analistas previam. E reforçou sua promessa de atingir 20 bilhões até o final de junho de 2018.

Mais ainda, num mercado extremamente competitivo, em que a líder é a Amazon, conhecida por pressionar os preços para baixo, a companhia conseguiu elevar suas margens de lucro, de 42% para 49%, num trimestre em que a IBM, outra grande contendora nesse setor, decepcionou os investidores.

Nos últimos anos, a plataforma da Microsoft para a nuvem, o Azure, vem crescendo a um ritmo mais rápido que rivais poderosos como o Alphabet (Google), a IBM e a HP.

É difícil precisar as participações das empresas porque a nuvem é um mercado emergente, com muito terreno a ser conquistado, e cada companhia divulga seus resultados com padrões diferentes – a Microsoft, por exemplo, mistura a receita da plataforma com os serviços online (seu pacote Office). Mas, segundo a consultoria Gartner, a Microsoft está na vice-liderança, atrás apenas da Amazon Web Services (AWS).

A Amazon tem os servidores com maior capacidade de armazenagem de dados na nuvem, mas o Azure oferece mais compatibilidade com diferentes programas. Não só ele se beneficia de conversar com os programas da Microsoft (uma base de clientes que abrange 80% dos maiores bancos do mundo e 70% das 500 maiores companhias), o Azure abriu as portas também para o sistema aberto Linux. Para as empresas, usar sistemas com os quais já estão acostumadas é um conforto enorme (não só a curva de aprendizado é mais suave, elas precisam ter segurança de migrar os dados sem solavancos). Isso ajuda a explicar as margens de lucro da Microsoft na sua divisão de nuvem.

Se a nuvem é a alça do novo trem, que a Microsoft decidiu agarrar com força total, a alça do antigo trem eram justamente o sistema operacional e os pacotes de produtividade, que tanta receita ainda dão. A empresa tomou a decisão de transformar alguns de seus produtos (com renda pontual, na hora da compra) em serviços (com renda perene, como um aluguel).

O processo começou bem antes de Nadella tomar posse, mas ele tratou de expandi-lo. É uma aposta ousada. Por um lado, a “servicificação” é uma tendência num mundo em que os produtos têm de ser atualizados a uma velocidade extraordinária, para dar conta de inovações de equipamentos ou ofertas de concorrentes. Por outro lado, dificilmente as receitas dos serviços serão tão altas como já foram as dos produtos. Trata-se de uma decisão corajosa, de não se agarrar aos números do passado.

Além disso, a Microsoft passou a vender seu pacote para sistema rivais (da Apple e do Google) em vez de usá-lo como chamariz de venda para seu ecossistema. Na mesma linha, a companhia substituiu a fracassada oitava versão de seu sistema operacional pelo Windows 10, oferecendo-o de graça durante um longo período – e abrindo mão de outra fonte de receita.

A revolução tranquila

É quase uma norma dos manuais de gestão que, para realizar uma reviravolta, o melhor é chamar um executivo-chefe de fora, alguém que não esteja comprometido com a velha forma de fazer as coisas na companhia. Essa foi a lógica para contratar Lou Gerstner, me disse uma vez o headhunter Luiz Carlos Cabrera, que participou do processo de busca para um novo CEO da IBM em 1993.

Na época, as pessoas estranharam muito um candidato que vinha de uma empresa de alimentos, a Nabisco. Mas era justamente essa falta de apego às tradições (aliada à sua visão estratégica, burilada nos anos como consultor da McKinsey) que lhe facilitou traçar o caminho da recuperação da companhia.

No caso da Microsoft, o executivo escolhido para liderar a transformação da empresa tinha 22 anos de casa. Mas dificilmente alguém teria achado no mercado um profissional mais radicalmente diferente dos dois comandantes prévios da Microsoft.

Bill Gates, co-fundador da empresa, era um gênio auto-centrado. Até em sua vida amorosa, uma de suas primeiras perguntas era qual nota a garota tinha tirado nos testes para admissão à universidade (o SAT). Era ríspido com os funcionários (“essa é a ideia mais idiota que eu já ouvi” era uma de suas frases mais comuns) e sabia de cor as placas dos carros de todos, de tal forma que sabia quando eles haviam chegado para trabalhar (segundo ele próprio contou à BBC). Também não tinha nenhum prurido em adotar práticas agressivas contra competidores, como o famoso bundling (a mistura de produtos diversos num só pacote) que valeu à Microsoft processos de abuso de poder econômico.

Steve Ballmer, que o sucedeu, elevou a agressividade no trabalho a um patamar ainda mais alto, que incluía jogar uma cadeira na mesa durante uma discussão, xingar concorrentes e promover uma competitividade exacerbada entre as divisões da própria companhia.

Satya Nadella era, em muitos aspectos, o oposto do padrão dos dois. Seu temperamento, de acordo com a maioria dos relatos, é de uma pessoa tranquila e humilde. Em vez de explosões, ele costuma se comunicar por longos memorandos em que disseca estratégias. É possível mudar uma empresa com um líder que tenha se formado nela? “Sim”, respondeu Nadella à revista Fortune, publicada este mês. “Se você der um jeito na cultura.”

Nascido em Hyderabad, na Índia, em 1967, numa época em que guerrilheiros comunistas enfrentavam as forças do governo Indira Gandhi, Nadella Satyanarayana se tornou uma pessoa avessa a conflitos. Formou-se em engenharia elétrica e foi para os Estados Unidos estudar ciências da computação. Acabou ficando. Trabalhou primeiro na Sun Microsystems e, dois anos depois, mudou para a Microsoft, onde ocupou vários cargos.

Assim que assumiu como CEO, distribuiu a todos da sua equipe direta o livro Nonviolent Communication (comunicação não violenta), do psicólogo Marshall Rosenberg, já num primeiro indício de sua batalha para modificar a cultura da Microsoft.

Não ficou só nisso, é claro.“Durante anos a Microsoft cultivou líderes que queriam ser os astros de seu próprio show”, disse à Fortune. Nadella passou a selecionar pessoas que trabalhassem em equipe – o que significou dispensar vários executivos. Em 2015, lançou uma campanha interna, conhecida como “Uma Microsoft”, frisando a necessidade de união e trabalho em conjunto das várias divisões.

Sua personalidade tranquila não significa que ele fuja das decisões difíceis. Logo no início de sua gestão, promoveu a demissão de 18.000 funcionários, quase 15% do total; eliminou a divisão de telefones, de 9,4 bilhões de dólares, que a Microsoft havia comprado da Nokia, e vendeu os dados de mapeamento do programa Bing para o Uber.

Os novos mantras

A mudança de personalidade no comando logo se refletiu nas decisões de negócios. Ballmer referia-se ao sistema aberto Linux como um “tumor maligno”; Nadella diz que a Microsoft “adora o Linux” – embora tenha deixado claro que a companhia precisa desenvolver sua própria plataforma, além de se dar bem com as outras.

Sob sua gestão, a empresa fez as pazes com vários antigos inimigos. A Microsoft fez parcerias com competidores como a Salesforce, Box e Dropbox, resolveu uma longa disputa de patentes com o Google e passou a ter um novo tipo de relacionamento com a Apple.

O maior símbolo disso foi uma campanha feita pela Microsoft no Natal passado: um coro composto por seus funcionários foi até o cubo de vidro em frente à loja ícone da Apple em Nova York e entoou a música Let There Be Peace on Earth (Que haja paz na Terra), com o verso “e que ela comece com a minha atitude”.

Hoje, a Microsoft desenvolve apps para rodar nos sistemas Android, do Google, e iOS, da Apple. Não só adaptou os programas Windows e Office para a rival, também criou projetos como Send, NewsPro, Arrow e vários outros. A estratégia está dando resultados: o Office 365 passou o Google Apps for Work em participação de mercado.

Até mesmo a missão da companhia agora reflete essa postura mais gentil. Em 2015, um ano depois de assumir o posto, Nadella comunicou aos funcionários, por email, o novo lema da Microsoft: “dar oportunidade a toda as pessoas e a todas as organizações do planeta de realizar mais”.

O grande mantra de sua gestão, porém, é “mobile primeiro, nuvem primeiro”. Quando Nadella assumiu, a Microsoft era uma empresa focada em computadores pessoais com uma divisão de empresas e de nuvem promissora.

Nadella, que cuidava da divisão de nuvem, virou a chave. Investiu bilhões de dólares na construção de centros de dados no mundo todo para apoiar o negócio da nuvem, e rompeu tabus ao migrar seus programas do modelo de licenças permanentes (com receita pontual) para assinaturas (com receita recorrente).

Não menos importante que os investimentos, Nadella escolheu para substituí-lo no comando da divisão de nuvem o executivo Scott Guthrie, alguém com prestígio semelhante ao de um ídolo de rock para os desenvolvedores de programas, por ter promovido inúmeras ferramentas que facilitam a codificação. A batalha das nuvens é em grande parte a batalha pela aliança dos desenvolvedores de programas e as empresas para as quais eles trabalham, e aceitar tecnologias abertas como Node permite que a Microsoft seja uma opção para qualquer cliente.

Até nos games essa estratégia provocou mudanças. A Microsoft passou a vender o Xbox sem a obrigação de levar junto o Kinect. Isso significa uma renda menor, mas possibilidade de uma participação de mercado maior.

Acreditam os especialistas em tecnologia que as grandes oportunidades no futuro próximo estão em ter uma rede de servidores capaz de sustentar a computação em nuvem; em criar uma plataforma de programação rica para os usuários; e em fornecer hardware que as pessoas queiram usar. Com o Azure, o Windows 10 e sua nova linha de computadores, a Surface, a Microsoft está, pela primeira vez em vários anos, bem posicionada para ganhar mercado e crescer.

A batalha da percepção

Não que o futuro esteja garantido. Longe disso. Como se disse acima, a competição nas nuvens está apenas começando, e não apenas a Amazon tem um poder de fogo fantástico mas rivais poderosos como o Google e a IBM não vão ficar parados.

No campo do sistema operacional, os números do Windows 10 parecem ótimos, mas a adoção ainda é muito inferior à do Windows 7, de uma época em que o uso de computadores pessoais estava no auge. Além disso, o Windows 10 foi distribuído de graça por muito tempo, o que significa que a receita não deve crescer muito – pelo menos até que as empresas comecem a aderir ao novo sistema. E este sempre foi um dos maiores rendimentos da companhia. Ainda por cima, trata-se de um mercado em declínio.

A empresa é também uma incógnita em dois mercados fundamentais. Em telefones, a Microsoft reconheceu o fracasso de sua união com a Nokia (um reconhecimento que apagou de sua contabilidade 7,6 bilhões de dólares). Nadella diz que a companhia não vai lançar um aparelho novo se não for capaz de trazer algo diferente para os consumidores. Em recente entrevista ao Financial Review, um jornal australiano, ele afirmou estar mais interessado no que as pessoas e empresas estão fazendo com seus telefones do que com os aparelhos propriamente ditos. Em outras palavras, mais atento ao software do que com o hardware.

O segundo mercado fundamental em que a Microsoft é uma incógnita é o de Inteligência Artificial. Segundo Nadella, a Microsoft está bem posicionada, com seus programas de ponta em capacidade de reconhecimento de voz e de imagem. Até agora, porém, a empresa não deu sinais de ter um produto campeão para um mercado em formação.

Também ainda está para se provar o acerto da compra do LinkedIn, por 26,2 bilhões de dólares, anunciada em junho. É a maior aquisição da história da companhia. Nadella diz que os serviços de rede social profissional podem ser incorporados ao Office, mas é difícil dizer como ela pode alavancar os resultados da Microsoft.

Finalmente, há a incerteza do Surface. A linha de computadores – a primeira da Microsoft – está indo surpreendentemente bem. Esta foi outra razão para o entusiasmo de investidores, iniciado em outubro. A receita do Surface atingiu 926 milhões no último trimestre, 38% acima do mesmo período no ano passado. Não chega ao joelho da Apple, que vendeu 5,7 bilhões de dólares com sua divisão de Macs no último trimestre. Mas a receita dos Macs caiu 6,9% em relação ao mesmo período do ano passado, enquanto a da Microsoft subiu.

De certa forma, os papéis das duas empresas se inverteram. A Apple agora domina o mercado, e tem de ser cuidadosa em suas mudanças; a Microsoft, a desafiante, pode apostar em inovações mais ousadas. Foi o que fez com o Surface Studio, um computador de mesa que impressionou a classe dos designers, uma velha base de apoio da Apple (que agora está descontente com os Macs).

A ambição do Surface não é dominar o mercado. É ajudar a construir a marca de uma nova Microsoft, agregar uma comunidade de apoio e mostrar que a empresa é uma fonte de inovações. “Mesmo que você racionalmente saiba que não gastaria tanto dinheiro ou não seria capaz de usar todos os recursos do Surface Studio, uma parte de você o quer”, disse Ewan Spence, em sua crítica no site da Forbes. “A Microsoft criou o desejo.”

Essa explicação também vale para o mercado acionário. Nadella conseguiu criar uma nova imagem para a Microsoft. Como disse Ballmer, seu antecessor e o maior acionista individual da empresa: “Satya é um grande líder. Ele está melhorando a percepção da companhia de um modo que ajuda a avançar sua agenda com desenvolvedores, participantes da indústria e investidores”.

Em suma, Nadella passa a impressão de que uma empresa gigantesca pode se revigorar e tornar-se outra vez dinâmica e inovadora. Mais ou menos como fez Gerstner, na IBM, duas décadas atrás.

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