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Como funcionava a máquina de corrupção da Odebrecht

Na última década, a Odebrecht financiou esquemas que elegeram meia dúzia de presidentes e molhou a mão de centenas de políticos na América Latina

Odebrecht: com a Lava Jato, os homens da Odebrecht estavam desesperados para esconder os registros (Nacho Doce/Reuters)
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Da Redação

Publicado em 10 de junho de 2017 às 08h00.

Última atualização em 10 de junho de 2017 às 08h00.

Santiago/Rio de Janeiro/São Paulo - No fim do inverno de 2015, os responsáveis pelo departamento de propinas na construtora Odebrecht SA tramavam mais uma operação.

Não para obter um contrato, a especialidade da casa, nem se meter na política de um país, como já haviam feito em outras tantas ocasiões. Desta vez, a operação era para salvar a própria pele.

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Hilberto Silva, Fernando Migliaccio e Luiz Eduardo Soares eram funcionários de carreira da Odebrecht. Na última década, o Departamento de Operações Estruturadas, no qual atuavam, ajudou a empresa a conseguir contratos para construção de barragens, usinas elétricas, aeroportos e refinarias pela América Latina e África.

O método usado era mover dinheiro por contas secretas em diferentes países e emitir notas falsas submetidas por clientes falsos. Na ponta final, sempre estavam pessoas com poder de aceitar outra oferta da Odebrecht.

Muitas vezes estes eram políticos. A companhia vinha bancando campanhas eleitorais no Brasil desde a época em que propina era paga de forma rudimentar.

Desde que o Departamento de Operações Estruturadas foi montado, a Odebrecht financiou esquemas que elegeram meia dúzia de presidentes na América Latina, comprou a amizade de chefes de Estado em Angola, Peru e Venezuela e molhou a mão de centenas de políticos do Panamá à Argentina.

Desta vez, havia muito em jogo. No Brasil, a Operação Lava Jato chegava a um ponto crítico. Investigadores haviam descoberto contas da Odebrecht em Antígua e Barbuda e faziam pressão para obter mais informações. Os homens da Odebrecht estavam desesperados para esconder os registros.

Soares, que tinha reputação de fazer o que fosse preciso para atingir seus objetivos, recorreu a Luiz França, cônsul honorário de Antígua no Brasil. França havia passado quase uma década supervisionando os assuntos financeiros da Odebrecht na ilha.

Soares pediu a auxílio dele para convencer o primeiro-ministro Gaston Browne a bloquear o pedido das autoridades brasileiras.

Para acelerar o processo, França convidou um respeitado consultor e advogado local, Casroy James, para uma conversa em Miami.

A Odebrecht ofereceu pagar US$ 4 milhões para ajudar a convencer o primeiro-ministro a ocultar os dados, uma revelação feita pela Odebrecht a autoridades americanas.

Por escrito, James afirma ter chegado a um acordo, mas não para influenciar o governo de Antígua e sim para processar inscrições para um programa que oferece cidadania e passaporte de Antígua a estrangeiros que investem no país.

James nega qualquer conduta imprópria e prometeu devolver parte do valor recebido. A Odebrecht admite ter pago a James três parcelas de € 1 milhão cada.

James conseguiu que Soares e França se encontrassem com Browne, o temperamental líder do Partido Trabalhista que havia sido eleito no ano anterior.

Eles conversaram durante a inauguração de um terminal no aeroporto internacional de Antígua, uma construção que outra empreiteira brasileira implicada na Lava Jato ergueu perto das águas azuis do Caribe.

Soares disse a Browne que a investigação que evoluía no Brasil seria devastadora para a imagem e reputação de Antígua.

Nos dias que se seguiram, Soares se reuniu com outros representantes do governo, argumentando que entregar os registros bancários seria ruim para todos.

Não adiantou. Em entrevista realizada na capital St. John’s em meados de abril, Browne disse que rejeitou veementemente as investidas de Soares.

Segundo o primeiro-ministro, a polícia de Antígua já estava juntando pilhas de documentos para as autoridades brasileiras, conforme exigem os acordos bilaterais.

O Departamento de Operações Estruturadas — talvez a máquina de corrupção mais eficiente e de maior alcance já desmantelada no mundo dos negócios — estava prestes a dar uma trombada.

A Odebrecht admitiu à corte distrital dos EUA no Brooklyn, em Nova York, em dezembro do ano passado, que o Departamento de Operações Estruturadas distribuiu aproximadamente US$ 788 milhões em propinas no Brasil e outros 11 países, garantindo mais de 100 contratos que geraram US$ 3,3 bilhões em retornos para a empresa.

Em dezembro, a Odebrecht e seu braço petroquímico Braskem SA aceitaram pagar US$3,5 bilhões em multas no Brasil, nos EUA e na Suíça relativas a atividades da área em Miami e além.

Foi a maior multa por corrupção já imposta a uma empresa por autoridades internacionais, ainda maior do que a multa de US$ 3,16 bilhões do governo brasileiro a outro alvo da Lava Jato, o frigorífico JBS.

A Odebrecht cultivou durante décadas uma narrativa corporativa, segundo a qual se tornou uma das maiores empresas de engenharia e construção do mundo graças a uma obsessão por superar resultados e servir ao cliente.

Os principais executivos absorvem os ensinamentos do fundador, o falecido Norberto Odebrecht, por meio do manual dele de melhores práticas, chamado Tecnologia Empresarial Odebrecht, que tem três volumes.

Mas, em 13 de dezembro, quando Emílio Odebrecht, o filho de Norberto que hoje tem 72 anos, se sentou diante do microfone em uma sala do edifício da Procuradoria-Geral da República em Brasília, ele descreveu um império familiar erguido sobre práticas de suborno.

Ele disse que, no fundo, só conhecia aquela empresa. Seu pai, o engenheiro de fala mansa que fundou a Odebrecht em 1944, chamou o filho para trabalhar como aprendiz quando ele ainda estava no colégio.

Quando Emílio assumiu a presidência, em 1991, a distribuição de dinheiro ilícito era parte crítica do negócio. Dar uma “ajudinha” aos políticos, segundo ele, era necessário para obter contratos.

Pausando para alisar os cabelos grisalhos, Emílio contou que, para conseguir os melhores contratos, era preciso bancar secretamente as campanhas eleitorais.

“Tudo isto que está acontecendo era um negócio normal, institucionalizado”, afirmou. “Era uma coisa normal, em função de todos esses números de partidos.”

Com o tempo, o negócio da corrupção passou a ser responsabilidade de Marcelo, o filho de Emílio que estava galgando a hierarquia da companhia.

Ano após ano, segundo depoimentos de Marcelo a promotores, uma parcela de 0,5 por cento a 2 por cento da receita era direcionada a pagamentos ilícitos, principalmente a políticos brasileiros e executivos de empresas estatais, especialmente da Petrobras.

Em alguns anos, de acordo com Marcelo, os desembolsos se aproximavam de R$ 2 bilhões (US$ 611 milhões). O valor dependia das demandas dos contatos políticos da Odebrecht.

O pagamento rotineiro de propinas era feito por meio de doleiros, com apelidos como Kibe e Esfirra.

Um deles, um chinês conhecido como Dragão, atuava na 25 de Março, tradicional rua do comércio popular de São Paulo, que saía de lá com tanto dinheiro que chegava a contratar um carro-forte para transportá-lo.

Emílio, que tentou se apresentar como uma espécie de diplomata do mundo corporativo, ainda cuidava dos clientes de mais alto nível.

Ele atendia às necessidades de chefes de Estado, incluindo figurões como o falecido líder venezuelano Hugo Chávez e José Eduardo dos Santos, que governa Angola desde 1979. “Eu não tinha tido oportunidade de poder transferir essa relação”, disse Emílio. “Eu continuei dando esse apoio com essas pessoas”.

Mas nenhum cliente era mais importante para Emílio do que Luiz Inácio Lula da Silva. O ex-sindicalista chegou à presidência em 2003 com a promessa de acabar com a miséria e reativar a economia.

Ele foi uma mina de ouro para a Odebrecht. Lula iniciou uma onda de gastos em obras públicas, na indústria naval e na Petrobras. A Odebrecht abocanhou uma parcela enorme dos contratos e se tornou a maior construtora da América Latina.

No Brasil, a companhia fazia parte de um cartel de companhias de engenharia que pagava propinas para fraudar licitações, especialmente da Petrobras (foi este o foco original da Lava Jato).

Enquanto Lula se empenhava em aumentar a influência do Brasil nos países vizinhos, a Odebrecht aproveitava para enviar dinheiro para seus aliados na região.

A Odebrecht diz que fazia os pagamentos porque tinha interesses em ganhar obras nos países, não por pedido de políticos brasileiros.

“O ex-presidente nunca autorizou ninguém a pedir doações de qualquer tipo em contrapartida de atos governamentais de qualquer tipo”, a equipe de Lula informa em nota publicada em seu site.

A escala e a complexidade da máquina de propina acabaram ficando grandes demais para Marcelo. As operações da empresa cresceram à medida que Lula acelerava os gastos em rodovias, portos e estaleiros, e abria mercados fora do Brasil.

Tudo isso exigia pagamentos ilícitos e Marcelo não conseguia acompanhar os detalhes e o ritmo dos desembolsos. Assim, no final de 2006, ele ofereceu um novo posto a Hilberto Silva, que trabalhava na Odebrecht desde a década de 1970, principalmente com finanças. Assim como a família Odebrecht, Hilberto é baiano, de Salvador.

O pai dele conhecia Norberto e os Odebrecht recebiam a família de Hilberto na casa de praia. "Foi pedido para que eu arrumasse direito aquela área. Não só atender a solicitações” de propinas, afirmou Silva em depoimento após ter sido preso, em março de 2016.

"Como você está lidando com um caixa que é fora da contabilidade, ele pode sumir. Então, precisava de alguém que garantisse que não sumiria."

No começo de 2007, Hilberto estava de mangas arregaçadas. Contratou uma equipe e teve montados escritórios nas instalações da Odebrecht em Salvador e São Paulo.

Pouco depois, o grupo entrou no organograma corporativo como Departamento de Operações Estruturadas. "Não entendo por que colocaram esse nome", disse Hilberto. Vieram trabalhar com ele Migliaccio, Soares e quatro assistentes de confiança.

Conforme necessário, o departamento recebia reforços de funcionários e prestadores de serviços com habilidades especiais.

Por exemplo, o contador que montou a rede de empresas de fachada e os programadores responsáveis por um sistema de mensagens secretas.

Era tudo criptografado, mas, para garantir, cada um recebeu um codinome: Migliaccio era Waterloo, Soares era Tushio e Hilberto era Charlie.

Hilberto também contratou um advogado em Miami para cuidar da documentação das empresas de fachada.

Em São Paulo, uma advogada redigia contratos para serviços falsos para justificar o pagamento de propinas. Era tanto trabalho que a Odebrecht pagava a ela uma mesada de US$ 6.000.

Mas nada poderia acontecer sem bancos e a Odebrecht encontrou o que precisava em Antígua. É uma linda ilha — com 365 praias, segundo o órgão nacional de turismo, uma para cada dia do ano — com uma população pobre.

Em St. John’s, há bancos em ruas esburacadas e até fétidas que são voltados para clientes estrangeiros. Existem 12 desses bancos offshore, alguns com telhado de zinco e placas de madeira desgastadas. Antígua tem uma longa história como porto seguro para criminosos de colarinho branco do mundo todo.

O investidor Robert Allen Stanford, de Dallas, administrava dali um esquema de pirâmide que quebrou em 2009. O ex-primeiro-ministro da Ucrânia, Pavlo Lazarenko, condenado nos EUA em 2004 por lavagem de dinheiro, guardou dezenas de milhões de dólares em bancos de Antígua.

No final de 2010, de acordo com o depoimento de França, o Departamento de Operações Estruturadas havia canalizado mais de US$ 1 bilhão por meio do Antigua Overseas Bank (AOB).

Porém, o banco enfrentava uma crise de liquidez e começou a atrair a atenção das autoridades reguladoras locais.

Havia mais de US$15 milhões na conta de uma das empresas de fachada mais utilizadas pela Odebrecht para propinas, a Klienfeld Services Ltd. Iriam perder o dinheiro, Hilberto não conseguia sacá-lo.

Ele e França se mexeram, fazendo uma parceria com um empresário brasileiro dono de cervejaria que também tinha dinheiro preso no banco e tentaram comprar o AOB.

Mas era tarde demais: funcionários de Compliance do banco já haviam relatado às autoridades reguladoras do setor bancário de Antígua suspeitas nas transações da Klienfeld e de outras contas ligadas à Odebrecht.

A Odebrecht precisava de outro banco. França tinha ouvido falar que o Meinl Bank AG, sediado na Áustria, tinha uma agência em Antígua praticamente inativa.

Ele, Migliaccio e Soares elaboraram um plano para comprar o negócio. No final de 2010, junto com outras pessoas que ajudavam a administrar a rede de propinas, eles pagaram cerca de US$ 4 milhões por 51 por cento do Meinl Bank (Antigua).

Isso não só resolveria as necessidades bancárias do departamento como enriqueceria os homens que armaram o acordo. Para cada dólar que a Odebrecht passava pelo Meinl Bank, os participantes recebiam uma comissão de 2 por cento.

França também conseguiu um pagamento mensal adicional de US $10.000. Ele ajudaria a administrar o banco, principalmente a partir de São Paulo.

Em resposta enviada por email, o Meinl Bank afirma que não tinha "nenhum controle gerencial ou visão operacional" sobre a filial de Antígua desde a venda de sua participação majoritária em 2010. O banco vendeu sua participação restante de 33% no final de 2014.

Depois que tudo isso foi acertado, Hilberto e equipe abriram contas no Meinl Bank para as consultorias e empresas de fachada. Quando tudo estava pronto, pelo menos 33 bancos transferiam dinheiro da Odebrecht para pelo menos 71 contas em Antígua.

A esta altura dos acontecimentos, Marcelo havia tomado o lugar do pai na presidência e estava empenhado para fazer a empresa crescer e disposto para isso a usar o dinheiro da empresa para auxiliar políticos no Brasil e no exterior. João Santana e a esposa e sócia Mônica Moura eram peça fundamental do esquema.

O igualmente baiano Santana foi responsável pela campanha de reeleição de Lula. Também tocou as duas campanhas da sucessora Dilma Rousseff, que sofreu impeachment no ano passado. Mônica cuidava do dinheiro.

Ela recorria frequentemente a Hilberto para acertar transferências para a conta do marido no Banque Heritage, da Suíça, por meio de uma empresa de fachada do casal chamada Shellbill Finance.

Ela e o marido afirmaram em depoimentos que Lula pediu em 2009 que fossem a El Salvador para ajudar a cuidar da campanha do candidato de esquerda à presidência Mauricio Funes. A campanha já estava nos planos da Odebrecht, mas o pedido reforçou a intenção.

Esta seria a primeira de sete campanhas presidenciais em que o casal atuou na América Latina e em Angola, em parte com recursos da Odebrecht. Em comunicado publicado no Twitter, Funes nega ter recebido fundos da construtora. O retorno às vezes era astronômico.

Entre 2001 e 2016, a Odebrecht desembolsou US$439 milhões em pagamentos ilícitos a autoridades em 11 países, sem contar o Brasil.

Em troca, segundo a companhia admitiu no acordo para encerrar processos de corrupção nos EUA, os governos desses países deram à Odebrecht contratos que geraram retornos de US$ 1,4 bilhão.

Em meados de 2014, a Lava Jato começou a fechar o cerco a concorrentes da Odebrecht por fraudes em licitações e pagamento de propinas.

Marcelo passou a temer por seu pessoal. O departamento era seu principal ponto de exposição. Ele falou para Hilberto atuar fora do Brasil.

"Eu acho que vocês todos deveriam ir para o exterior para conseguirem trabalhar, porque aqui, na hora que vocês falarem no telefone, vocês vão ter medo. Na hora que usarem o computador, vocês vão ter medo. Vão ter medo de a sala ser grampeada”, ele lembrou ter dito a seus funcionários, segundo depoimento .

"Além do que, vocês dormem achando que no outro dia de manhã vai ter uma operação com vocês. Então, seguinte: Vão para o exterior."

Ele disse a Hilberto para fazer o que fosse preciso. "A única coisa que eu orientei na época foi: Não trabalhe dos EUA”, relatou Marcelo.

Hilberto ficou no Brasil. Soares e Migliaccio também não ouviram o conselho do patrão. Após considerarem Antígua, República Dominicana, Dubai e Portugal, acabaram emigrando com as famílias para Miami e arrumaram empregos de fachada na divisão da Odebrecht em Coral Gables, na Flórida.

Soares conseguiu um apartamento em Miami e Migliaccio foi morar em Aventura, cidade ao norte de Miami Beach com prédios com vista para o mar muito populares entre brasileiros.

“Ele parecia ser um homem muito gentil e, quando entendi o que ele queria, comecei a mostrar apartamentos para ele”, lembra a corretora de imóveis Patricia Musa. Segundo ela, os brasileiros adoram prédios com piscina e churrasqueira e apartamentos grandes com vista para o oceano.

Em agosto de 2014, ela vendeu a Migliaccio, por US$ 1,3 milhão, uma unidade no sexto andar do edifício onde ela já também já morou, no condomínio de três blocos chamado Peninsula. Vários dos moradores são brasileiros.

Em Miami, o foco de Migliaccio era desmontar a operação de propinas da Odebrecht e não ser preso. Ele, Hilberto e Soares trabalhavam principalmente em um escritório de três salas em Santo Domingo, capital da República Dominicana, e pensavam estar longe do alcance dos investigadores americanos.

Obter o dinheiro para pagar as dívidas da divisão já era uma complicação. A empresa devia R$ 70 milhões somente a um doleiro em São Paulo e ele não era nem de longe o único.

A Odebrecht era tão boa cliente que os doleiros costumavam emprestar dinheiro à empresa. Fora isso, ainda era preciso pagar propinas.

Em depoimento, a Odebrecht revelou que a área de propinas continuou atuando ao longo de 2016, organizando pagamentos ilícitos no Equador e na Venezuela.

Em 2015, Hilberto se afastou após uma isquemia e Migliaccio se tornou o responsável pelas operações. Uma secretária em que os dois confiavam, Maria Lúcia Tavares, trabalhava de Salvador. Maria Lúcia era funcionária da Odebrecht há décadas.

Sua função era fazer com que os pagamentos fossem registrados em um sistema de contabilidade online criptografado. Discreta e com hábitos simples, ela era uma das poucas pessoas com acesso ao sistema.

Em junho, o sistema interno criptografado havia sido extinto e os dados estavam fora da internet, Migliaccio precisava revisar os números e pediu que Maria Lúcia fosse a Miami.

No dia 15, ela embarcou de Salvador na classe econômica. Na bolsa, levava dezenas de planilhas que organizavam os pagamentos ilegais. Ela imprimiu as planilhas para facilitar o trabalho do chefe.

Na manhã seguinte, fez check-in no hotel 5 estrelas Conrad Miami, na Brickell Avenue, coração do centro financeiro da cidade. Em seguida, fez o que legiões de turistas brasileiros fazem em Miami: foi a um shopping.

No dia seguinte, começou o trabalho para Migliaccio. Ainda estava em Miami quando, dois dias depois, no início da noite de 19 de junho, três viaturas da Polícia Federal em São Paulo entraram na mansão de Marcelo Odebrecht e o levaram preso.

Em poucas horas, um dos bilionários mais poderosos do Brasil e com fortes conexões políticas estava sentado em uma cela em Curitiba, no quartel-general da Lava Jato.

Quando Maria Lúcia se reuniu novamente com Migliaccio, ele estava preocupado. Ele pediu que levasse os arquivos de volta para o Brasil. Quando chegou em casa, ela guardou a papelada no armário. Eram 200 páginas que descreviam uma rede de pagamentos ilícitos.

Em algumas páginas, ela escreveu à mão os nomes e telefones de doleiros e executivos que organizavam os pagamentos, para melhor decifrar os codinomes.

Também havia notas com as contas bancárias usadas para transferir dinheiro para contas secretas em Antígua, Panamá e outros países. Maria Lúcia presumia que os documentos estariam a salvo em sua casa até que o chefe precisasse deles.

E foi então que um rato dentro de uma churrasqueira desmontou a bilionária máquina de propinas da Odebrecht.

No começo de 2015, um vizinho de Migliaccio em Aventura descobriu o roedor quando ia acender a grelha, perto da piscina do prédio. Circulou-se então entre os residentes a proposta de compra de uma nova churrasqueira.

Um endereço de e-mail chamou a atenção do delegado da Polícia Federal Felipe Pace, investigador da Lava Jato que estava monitorando Migliaccio.

A mensagem foi enviada para os endereços de e-mail de dezenas de proprietários de apartamentos, incluindo um que Pace sabia ser de Migliaccio. No entanto, uma conta do Hotmail que aparecia associada a Migliaccio no campo de destinatários, “O.Overlord” (uma referência à Operação Overlord, o desembarque das Forças Aliadas na França no Dia D, em 1944), apareceu como novidade para Pace. Em janeiro de 2016, ele conseguiu uma liminar no Brasil exigindo que a Microsoft liberasse o acesso à conta do Hotmail.

Na caixa de entrada, estavam planilhas e mensagens que mapeavam o fluxo diário de propinas. Uma das planilhas havia sido criada por Maria Lúcia Tavares, o que levou a Polícia Federal a fazer uma busca na casa dela. Os arquivos ainda estavam guardados no armário.

"’Tivemos muita sorte de ela ter deixado aquilo em casa. Foi naquele momento que identificamos que eles são organizados para pagar propina", disse Pace. "Deu um novo fôlego para a operação."

Os investigadores levaram os documentos para uma sala segura no terceiro andar do prédio da Polícia Federal em Curitiba e devoraram seu conteúdo. Davam risadas enquanto percorriam as folhas, haviam chegado no centro do esquema. Quando trouxeram Maria Lúcia, ela passou três dias depondo, tempo recorde de uma colaboração.

Os responsáveis pelo Departamento de Operações Estruturadas foram presos pela Lava Jato. Junto com outros 75 funcionários da Odebrecht, eles fizeram acordos de colaboração premiada.

Marcelo Odebrecht foi condenado a 19 anos de reclusão por crimes de corrupção e lavagem de dinheiro. Em troca de cooperação, a pena dele foi reduzida para dois anos e meio de cadeia e cinco anos de prisão domiciliar.

Seu pai Emílio foi condenado a quatro anos de prisão domiciliar. Em resposta por e-mail a perguntas da reportagem, a companhia afirmou que deseja virar a página e deixar seus erros no passado e citou providências tomadas contra corrupção.

"A determinação de virar a página e deixar no passado erros e atos não condizentes com as melhores práticas empresariais, reconhecidos publicamente, provocou e continua provocando mudanças que são acompanhadas pela implementação de novas políticas, controles e práticas de monitoramento."

Os depoimentos de executivos da Odebrecht — incluindo gravações divulgadas recentemente — causaram turbulência política, econômica e social pela América Latina.

O Peru reduziu a projeção de crescimento econômico neste ano em meio ponto percentual por causa de atrasos e custos ligados a contratos fraudulentos celebrados com a Odebrecht.

O ex-presidente Alejandro Toledo era estudante visitante em Stanford, na Califórnia, quando o Peru solicitou sua extradição. Se voltar ao Peru, ele pode ser preso por acusações de corrupção envolvendo a Odebrecht. Ele nega qualquer ilegalidade.

Na República Dominicana, onde a Odebrecht aceitou pagar US$184 milhões em multas, o governo está emitindo dívidas e desviando recursos de programas sociais para bancar os US$900 milhões necessários para finalizar uma usina de eletricidade que a Odebrecht não terminou de construir porque seus empréstimos foram suspensos.

Em Antígua, perto do topo de uma ladeira em St. John’s, o edifício do Meinl Bank é um monumento decrépito a um dos maiores esquemas de corrupção corporativa que o mundo já viu desmantelado.

O andar térreo está vazio, escuro e empoeirado. Em dezembro, a autoridade reguladora do setor bancário de Antígua removeu os diretores da Odebrecht e colocou um consultor da KPMG como administrador.

A expectativa é que os investigadores descubram o que aconteceu ali. Esse administrador, Cleveland Seaforth, se recusou a fazer comentários.

Descobrir o estrago que a Odebrecht fez em Antígua é a missão ingrata do Tenente-Coronel Edward Croft, que comanda o Escritório de Política Nacional de Drogas e Lavagem de Dinheiro. Ele trabalha a partir de uma base militar.

Desde meados de 2015, lida com uma avalanche de solicitações de investigadores brasileiros em busca de documentos, planilhas e relatórios. Recentemente, a Argentina solicitou formalmente a entrega de informações financeiras para ajudar sua investigação sobre a Odebrecht.

Croft tem somente dois investigadores de crimes financeiros, que passam pelo menos um terço do horário de trabalho organizando o envio de arquivos sobre a Odebrecht para o Brasil.

“São caixas e caixas e mais caixas”, ele disse. “É um processo muito intenso. Cuidar disso realmente suga nossos recursos.”

Os investigadores de Croft estão analisando as contas da Odebrecht junto ao Meinl Bank. Essas contas, que foram congeladas pelo governo de Antígua, ainda têm US$ 77 milhões.

Pessoas ligadas ao empreendimento de propina da Odebrecht atolaram os tribunais da ilha com processos para tentar chegar ao dinheiro.

O primeiro-ministro também foi consumido pelo escândalo da Odebrecht. Em abril, ele estava furioso e, em princípio, se recusava a falar sobre o que aconteceu. “Eu não conheço nenhum desses caras da Odebrecht”, ele disse.

Browne, que já trabalhou no setor bancário, afirma que sua missão é fazer todo o possível para impedir que Antígua seja usada como base para crimes financeiros.

Ele nega veementemente que tenha cometido qualquer ilegalidade no caso dos pagamentos dos executivos da Odebrecht a Casroy James, que foram revelados no acordo para encerrar os processos por corrupção.

“Eu nunca aceitei suborno e qualquer um que me conhece vai lhe dizer que eu expulsaria do meu gabinete qualquer pessoa que sugerisse isso”, ele disse, com tom de voz elevado.

Segundo Browne, o estrago que a Odebrecht causou em seu pequeno país foi enorme. O departamento de propinas desestabilizou a nação e ele ainda está tentando limpar a bagunça.

“Eles são grandes canalhas que prejudicaram muito a imagem e reputação de Antígua”, disse o primeiro-ministro. “Eu espero que eles passem muito tempo na cadeia. Muito tempo.”

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