Empresas usam Justiça para sair da "lista suja" do trabalho escravo
Doze empresas envolvidas com o trabalho escravo foram à Justiça para suspender a inclusão na lista enquanto recorrem da decisão
Reuters
Publicado em 17 de junho de 2019 às 14h20.
Última atualização em 17 de junho de 2019 às 15h16.
Rio de Janeiro — Grandes empresas no Brasil estão usando medidas liminares na Justiça para evitar sua inclusão na "lista suja" do trabalho escravo no país. De acordo com procuradores e juízes, a prática enfraqueceu uma ferramenta importante para impedir que empresas lucrem com o trabalho escravo .
Doze empresas que, segundo o governo, estão envolvidas com o trabalho escravo, foram à Justiça para suspender a inclusão na lista enquanto recorrem da decisão, conforme revelaram registros obtidos exclusivamente pela Thomson Reuters Foundation.
De acordo com especialistas, as empresas incluídas na lista não podem receber empréstimos de bancos públicos e sofrem restrições em suas vendas. A lista também é usada por bancos privados para medir o risco de crédito e por compradores internacionais preocupados com suas cadeias de suprimentos.
Se, após dois anos, a empresa conseguir demonstrar que tomou medidas para melhorar as condições de trabalho, ela é removida da lista, que atualmente inclui cerca de 186 empresas e indivíduos.
A JBS Aves, uma unidade da maior empresa de processamento de carnes do mundo, a JBS , a gigante dos sucos de laranja Citrosuco e a marca de moda Fábula Confecção e Comércio de Roupas estavam entre as 12 empresas que usaram a prática através de uma solicitação feita por meio da Lei de Acesso à Informação.
Outras empresas incluíam a Rumo Malha Paulista, uma empresa de logística, e a Spal Indústria Brasileira de Bebidas, uma fabricante local da Coca-Cola. Todas as empresas que recorreram à Justiça, de acordo com a solicitação, afirmaram que nunca usaram trabalho escravo e que sua inclusão foi um erro.
É a primeira vez que estes números são divulgados, mas não é claro o número total de medidas liminares relacionadas à escravidão concedidas nos últimos 15 anos.
Embora não tenha havido suspeita de irregularidade por parte das empresas, de acordo com a procuradora do trabalho Catarina von Zuben, é provável que mais empresas descobertas usando trabalho escravo sigam o exemplo e busquem medidas liminares para evitar ficar dois anos no limbo e ter que mostrar melhorias.
"Quem tem vastos recursos econômicos para bancar grandes advogados sai na frente", disse von Zuben, titular da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo no Brasil (Conaete), uma rede que inclui vários procuradores do trabalho.
"Eu, como uma compradora internacional, estaria bem preocupada", disse ela, referindo-se ao fato de que as medidas liminares fazem com que algumas empresas nunca sejam expostas publicamente em razão de descobertas relacionadas ao trabalho escravo.
A Secretaria do Trabalho, responsável pela "lista suja", negou um pedido de entrevista sobre as revelações.
Em declaração, a secretaria afirmou que as medidas liminares são decisões judiciais que serão cumpridas "sem juízo de valor sobre cada uma delas".
Um fiscal do trabalho, que se manifestou de forma anônima por não estar autorizado a falar com a mídia, disse que acha que essas decisões da Justiça minam o trabalho do seu departamento.
"Fiscais do trabalho sabem que uma empresa grande pode não entrar ... e se entrar, vai ficar só um curto período."
Negociação
No Brasil, a escravidão é definida como trabalho forçado, mas também inclui escravidão por dívida, condições de trabalho degradantes, horas excessivas que representem risco à saúde e trabalho em violação à dignidade humana.
Cerca de 370.000 pessoas no Brasil, um país com uma população de cerca de 210 milhões, são escravos modernos, de acordo com o Índice Global de Escravidão do grupo de direitos humanos australiano Walk Free Foundation.
A "lista suja" foi lançada em 2004 e foi reconhecida pela Organização das Nações Unidas (ONU) como uma ferramenta chave no combate à escravidão no Brasil.
Algumas das 12 empresas que conseguiram medidas liminares disseram que não acreditam que as condições enfrentadas por seus trabalhadores fossem de escravidão; outras disseram que não podiam ser responsabilizadas, já que os trabalhadores não eram empregados diretamente por elas, mas por seus fornecedores.
Em seus pedidos de liminar, várias das empresas disseram não ter tido assegurado seu direito de contestar a decisão inicial, e que sua inclusão na lista sem direito a recurso causaria danos financeiros irreparáveis, de acordo com os documentos.
A Fábula, de propriedade do Grupo Soma, uma empresa com cerca de 4.000 empregados, disse que considerava sua inclusão "injusta", mas que estava negociando com o governo para sair da "lista suja".
O acordo incluiria a contratação, pela Fábula, de uma auditoria independente de sua cadeia de fornecimento e a criação de um departamento de compliance subordinado diretamente ao presidente do Grupo Soma, entre outras medidas, segundo a declaração da empresa em resposta à reportagem.
"A grande maioria destas obrigações já estão em prática desde 2017 por iniciativa própria da empresa", afirmou a Fábula em comunicado. "(O acordo) deve ser assinado nas próximas semanas."
Não ficou claro se as outras 11 empresas concordaram em alterar suas práticas comerciais ao pedir liminares.
O juiz federal Charles de Moraes, que aceitou o recurso da Fábula, disse que a empresa seria adicionada à lista se não cumprir suas promessas de melhorar suas iniciativas de combate ao trabalho escravo."(Se o acordo não sair) sem dúvida nenhuma: a liminar cai."
"Enfraquecendo" a lista
Em suas decisões judiciais, alguns juízes disseram estar preocupados com as consequências financeiras da inclusão de uma empresa na lista.
Ao conceder uma liminar à JBS Aves em novembro de 2017, a juíza do trabalho Janice Bastos disse que era necessário "agir com cautela", já que a inclusão da empresa na lista poderia afetar negativamente tanto a empresa quanto seus funcionários. Ela se negou a comentar a decisão.
Luciano Frota, juiz do trabalho e membro do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), afirmou que as empresas têm o "direito de recorrer à Justiça", mas que ele estava preocupado com o número de medidas liminares concedidas em relação à lista.
O CNJ anunciou recentemente que todos os novos juízes do trabalho devem participar de um treinamento sobre trabalho escravo, e Frota disse que o CNJ estava trabalhando para conscientizar melhor todos os juízes sobre a "importância da lista suja", uma vez que o nível de conhecimento dos juízes não estava claro.
"Nos cabe saber em que medida decisões judiciais podem estar enfraquecendo este instrumento valioso", disse Frota, que preside o comitê do CNJ voltado à questão do trabalho escravo."Precisamos do Poder Judiciário comprometido com o que o Estado brasileiro está comprometido, que é o combate ao trabalho escravo."
A questão da concessão de medidas liminares em relação ao trabalho escravo para as empresas será discutida em uma audiência no Senado no mês que vem, sobre os esforços do Brasil no combate à escravidão moderna.
O senador Paulo Paim (PT-RS), presidente da Comissão de Direitos Humanos do Senado, disse que a concessão de liminares faz parte de uma tendência maior de "enfraquecimento" da lista, fazendo referência também à falta de recursos para que os fiscais do trabalho viagem para realizar trabalho de campo.
A Secretaria de Inspeção do Trabalho está em um estado "calamitoso", disseram vários funcionários do alto escalão do governo ao Congresso em abril.
"Não é só pelas liminares. O governo não investe mais nas inspeções. (Inspetores) não têm recursos para se deslocar para as áreas onde pode estar o trabalho escravo. A estrutura é pífia", afirmou Paim.
As tentativas do Legislativo de dar força à lista, como um projeto de lei proposto por Paim que proibiria contratos de entes públicos com as empresas incluídas na lista, foram arquivadas no ano passado, acrescentou o senador.
"Tudo aponta para um enfraquecimento da lista suja."