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Empreiteiras: o plano de salvação

“O esquema era simples. Quando se anunciava alguma obra pública, o que valia não era a concorrência. Todas as concorrências vinham com cartas marcadas, funcionavam como mera fachada”. Em sua biografia, o jornalista Samuel Wainer, fundador do jornal Última Hora, descreveu dessa forma as relações promíscuas entre empreiteiras e o governo. Poderia ser hoje. Mas […]

OBRA DA ODEBRECHT: o tempo do “primeiro vamos analisar o que é subornar…” ficou para trás  / Germano Luders

OBRA DA ODEBRECHT: o tempo do “primeiro vamos analisar o que é subornar…” ficou para trás / Germano Luders

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Da Redação

Publicado em 18 de junho de 2016 às 09h35.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h26.

“O esquema era simples. Quando se anunciava alguma obra pública, o que valia não era a concorrência. Todas as concorrências vinham com cartas marcadas, funcionavam como mera fachada”. Em sua biografia, o jornalista Samuel Wainer, fundador do jornal Última Hora, descreveu dessa forma as relações promíscuas entre empreiteiras e o governo. Poderia ser hoje. Mas era na década de 50.

Quase 70 anos depois, neste domingo, o ex-presidente da Odebrecht, Marcelo Odebrecht, completa um ano na cadeia e ainda negocia um acordo de delação premiada. Sua empresa, com mais de 100 bilhões de reais de faturamento, encabeça a dúvida sobre o futuro de grupos que simbolizaram o auge da pujança econômica do Brasil. Afinal de contas, as grandes empreiteiras vão quebrar?

Em 2014, a receita do setor caiu 19% em relação ao ano anterior. Com isso, estados e municípios ultrapassaram a União em repasses para obras públicas. Como os dados se referem a 2014, não levam em conta a gigantesca crise que assolou os estados – que hoje negociam tudo o que podem com o governo. A paralisação de obras levou a 500.000 demissões no setor de construção em 2015 – somente na Odebrecht, 50.000 funcionários foram demitidos.

Após a Lava-Jato, os grupos foram asfixiados por uma tóxica combinação de fatores que inclui restrição de crédito, dívidas a vencer, falta de pagamento pelos projetos executados – e, além de tudo isso, falta de liderança (boa parte, afinal, está incomunicável). Por isso, planos de reestruturação e de recuperação judicial surgiram como instrumentos para renegociar dívidas e suspender pagamentos enquanto se buscam novos caminhos. No Clube do Bilhão, ao menos três já pediram recuperação judicial: Galvão Engenharia, Mendes Junior e OAS. As outras tentam de tudo para não precisar chegar lá.

Para economistas, consultores, advogados e engenheiros ouvidos por EXAME Hoje, os grupos mais diversificados conseguirão sair da crise. Alguns podem ficar pelo caminho – ou diminuir muito suas operações. O certo é que o setor refundará suas bases, diminuirá e voltará às origens: a construção. “Há um consenso de que vão pagar multas fortes o suficiente para que elas sempre se lembrem, mas não tão fortes para que quebrem”, afirma Alexandre Garcia, diretor da agência de classificação de risco Fitsch. “O jogo vai mudar. Vai ter lucro ainda, só vai ser um pouco menos”, afirma o advogado escocês Barry Wolfe, sócio do Wolfe Associates, que há 20 anos investiga crimes de colarinho branco no Brasil.

O Clube do Bilhão

A Lava-Jato investiga e processa 23 empreiteiras. Dessas, há um grupo mais seleto apelidado de Clube do Bilhão. Fazem parte dele Camargo Corrêa, Queiroz Galvão, Engevix, Andrade Gutierrez, Constran-UTC, Odebrecht, Mendes Júnior, Iesa, Galvão Engenharia e OAS. Essas empresas são ícones da história do capitalismo brasileiro.

Boa parte delas testemunhou – e se beneficiou – do plano de metas de Juscelino Kubitschek, do desenvolvimentismo da ditadura militar e das privatizações do governo de Fernando Henrique Cardoso. Mais recentemente, muitas apostaram na internacionalização para diminuir a relação com o governo brasileiro – e aumentar a relação com outros governos.

Nos últimos anos, os contratos com o poder público explodiram. A receita bruta do setor de engenharia e construção saltou de 31 bilhões de reais, em 1995, para 111 bilhões, em 2013 – variação mais de três vezes superior à do PIB no período. De 2003 a 2013, o governo federal aumentou em 12 vezes os repasses: de 251 milhões de reais para três bilhões de reais. Desde 2003, o faturamento da Odebrecht saltou de 17,3 bilhões para 108 bilhões. “É uma indústria fundada no relacionamento político e não em critérios de sucesso empresarial, como competitividade e eficiência. A Lava-Jato mostrou o que todos pensavam que existia”, diz o economista Claudio Frischtak, da consultoria Inter.B

Elite enxuta

Na ponta do ranking das grandes empresas afetadas pela Lava-Jato, a nata da construção pesada brasileira passa a olhar para dentro ao invés de para fora. Após décadas de expansão ininterrupta, com crédito farto na praça e alto endividamento, grupos como Odebrecth, Andrade Gutierrez e Queiroz Galvão terão de vender participações em boa parte de seus empreendimentos e pretendem blindar os melhores negócios, sobretudo suas construtoras.

A Odebrecht, segundo analistas, é um ponto fora da curva. Em 1971, ocupava a 19ª posição no ranking da revista O Empreiteiro. Desde 1997, é líder do mercado. O desempenho está associado à elevada receita no exterior, superior ao faturamento no Brasil. “A expectativa da Odebrecht Engenharia e Construção é de ter aproximadamente 10% da receita de 2016 em operações nacionais.”, informa o grupo, em nota. É um percentual que mostra a expansão do negócio de construção pelo mundo, mas também revela a derrocada recente da economia brasileira.

Economistas avaliam que o risco de uma recuperação judicial é baixo. No grupo, com dívida que gira em torno de 100 bilhões de reais – cerca de quatro vezes sua geração de caixa anual –, tem se buscado blindar duas empresas: a construtora e a Braskem, braço petroquímico da Odebrecht. Um programa de venda de ativos prevê levantar 12 bilhões de reais até o final do primeiro semestre de 2017. A empresa negocia se desfazer da Odebrecht Ambiental, e está em negociações avançadas com o fundo de investimentos canadense Brookfield. Também devem ser repassadas concessões rodoviárias no Peru e a mina de diamantes Catoca, em Angola.

Na construtora, de acordo com a Fitch Ratings, a dívida é de 13,7 bilhões de reais, dos quais 1,8 bilhão de reais vencem nos próximos 12 meses. A próxima grande amortização é em 2018, de 500 milhões de reais. Além disso, são previstas pesadas multas quando a empresa acertar seu acordo de leniência. A força-tarefa da Lava-Jato estuda multar a empresa em 6 bilhões de reais, segundo o jornal Folha de S. Paulo. Seria um cruzado de direita mesmo para um grupo do tamanho da Odebrecht.

Na realidade, algumas empreiteiras já entenderam a segunda chance que tiveram e tratam de aproveitá-la. Na Andrade Gutierrez, um dos objetivos é voltar a fazer contratos com a Petrobras. Em 1983, Sergio Andrade, então presidente do grupo, refutou que houvesse concentração de mercado na construção pesada nacional. Em maio deste ano, a empresa publicou uma carta se desculpando com a nação pelas ilegalidades cometidas ao formar um cartel e confirmou o pagamento de 1 bilhão de reais em multas. No campo criminal, 11 executivos já homologaram uma delação premiada e avança seu acordo de leniência.

Apesar da escala menor, o grupo da Andrade Gutierrez também pretende manter a liquidez da construtora. Segundo analistas, por ter adiantado seu acordo de leniência, é possível olhar para frente. Na empreiteira, as dívidas somam 2,7 bilhões de reais, sendo 590 milhões de curto prazo. O caixa de 1,9 bilhão de reais dá segurança na liquidez. O próximo grande vencimento, de 500 milhões de reais, ocorre em 2018. Além disso, a compra de 81% do The Dennis Group, uma das maiores empresas americanas da área de projeto e construção de unidades industriais para o setor de alimentos e bebidas, parece mostrar disposição de buscar novos recursos no Brasil e nos EUA.

Na Camargo Corrêa, o executivo Flavio Rímoli, trazido da Embraer e responsável pelo compliance do grupo, costuma dizer que a empresa “não vai ter outra chance”. Pela primeira vez nos 78 anos de história, os netos do fundador Sebastião Camargo adotaram o mantra de enxugar a empresa e se concentrar em obras privadas. A Alpargatas, dona da Havaianas, foi vendida por 2,7 bilhões de reais para quitar os compromissos.

A previsão é que o acordo da Camargo termine em duas semanas. Sua multa de 800 milhões de reais foi acertada com a Justiça, e será parcelada em oito vezes. A situação, porém, pode mudar com a delação do ex-presidente da Transpetro, que acusa Luiz Nascimento, um dos controladores do grupo, de repassar propina ao PSDB.

Recuperação

Abaixo dessas empresas, estão as companhias que já tiveram que recorrer à recuperação judicial. Uma das mais encrencadas, a OAS espera terminar no final do mês seu processo, que já dura 15 meses. Em 2015, o grupo tinha dívida de 8 bilhões de reais, 75% para bonds de fundos “abutres”, como o Aurelius. Nas tratativas, dividiu seus credores em quatro grupos e separou o faturamento que está por vir para acertar as obrigações.

Com 66 projetos na carteira, avaliados em 10 bilhões de reais, conseguiu uma carência de cinco anos para amortizar sua dívida. Isso dará uma folga de cerca de 200 milhões de reais anuais até 2021 – e terá de arrumar espaço para as multas com a Justiça. Reestruturou a dívida para 2,8 bilhões de reais. A participação na Invepar, que administra concessões e era um dos trunfos de seus ativos, passou a ser controlada pelos credores.

No final deste mês, a Justiça de São Paulo julgará 19 recursos que questionam as condições de repactuação de seus créditos. “Depois de um Everest, falta agora um Pão de Açúcar para superarmos”, diz Josedir Barreto, diretor financeiro do grupo OAS. Passado o julgamento, os credores podem assumir a Invepar e, segundo seus executivos, é possível “tocar a vida”. O projeto no grupo é se internacionalizar. Nos próximos dois meses a empresa montará um escritório no Marrocos, onde criará um hub para operações na África, e deve anunciar obras no terceiro trimestre. A empresa projeta faturar 4,4 bilhões de reais neste ano, 1,8 bilhão desse total em operações externas. No auge, segundo Barreto, o faturamento anual do grupo chegou a12 bilhões de reais.

Para essas empresas, o principal desafio é garantir que conseguirão cumprir os acordos mesmo em um contexto de paralisia econômica. Na Mendes Júnior, o faturamento atual é de 600 milhões de reais, menos de um terço dos 1,9 bilhão de reais de 2013. No plano de recuperação, emitiu títulos de pagamentos futuros de estados como o Mato Grosso e companhias como a Valec para pagar 80% dos 270 milhões de dívidas em até um ano. A empresa espera quitar os primeiros compromissos trabalhistas em 90 dias e completar os pagamentos dos 26 milhões de reais que deve aos 4.000 funcionários em até um ano.

Em outubro, deve ocorrer a assembleia de credores para definir se aceitam ou não o plano. A ideia é não precisar vender ativos. “Se a empresa faturar, vai pagar com o giro. Podemos até vender algum ativo, mas queremos resolver com valores mobiliários”, diz o advogado José Murilo Procópio, que comanda a recuperação da Mendes Júnior. A empreiteira foi a primeira a ser declarada inidônea pela Controladoria-Geral da União e está proibida de fazer contratos públicos pelos próximos dois anos.

Na Galvão Engenharia, a operação é comandada pela consultoria Alvarez & Marsal, que não quis conceder entrevista. Além da falta de pagamento da Petrobras, 80% de seus negócios são focados no Brasil. Seus trunfos são ativos considerados bons para fazer caixa, como a CAB Ambiental. Outras empreiteiras do Clube renegociam com credores e tentam evitar o fechamento das portas, como a UTC e a Engevix.

Luz no fim do túnel?

Para alento das empreiteiras, o Brasil parece ter atingido o fundo do poço de sua recessão econômica. O mercado projeta um crescimento de 1% do PIB em 2017. Uma das saídas mais alardeadas é por meio das concessões e PPPs. Hoje, quase tudo está parado enquanto o secretário especial Moreira Franco tenta tirar do papel seu Programa de Parcerias e Investimentos.

Investidores estrangeiros começaram a despertar para as oportunidades no Brasil e, segundo analistas, devem se associar às grandes construtoras para desenvolver projetos no país. “O acerto do passado entre empreiteiros acabou. Para estruturar obras maiores, terão que se juntar e entender mais a conjuntura. Não dá para formar mais esses cartéis e dominar determinados setores”, diz o especialista em logística, Renato Pavan, diretor da consultoria Macrologística.

Além de competir entre elas, as empreiteiras vão precisar encarar as novatas. Uma das grandes defensoras de maior concorrência no setor, a Câmara Brasileira da Indústria de Construção (CBIC), lançará na quarta-feira uma cartilha para guiar o comportamento das menores em um ambiente de negócios mais transparente. Uma das bandeiras é aumentar a competição no setor. “Todos estão extremamente animados. Já existem empresas se agregando para fazer propostas e participar de PPPs”, diz José Carlos Martins, presidente da CBIC.

Se elas vão conseguir incomodar as grandes, é cedo para dizer. Uma das poucas certezas de toda essa mudança é que os tempos de conivência com empreiteiras e obras envoltas em corrupção, em tese, estão ficando para trás. Não deixa de ser uma ruptura. Em 1992, há apenas 24 anos, em sua primeira entrevista, ao Jornal do Brasil, Emílio Odebrecht, pai de Marcelo, foi perguntado se já havia subornado alguém. Saiu-se com essa: “Primeiro vamos analisar o que é subornar…”.

(Luciano Pádua)

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