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A verdadeira história do uísque Jack Daniel’s

Escritora americana faz pesquisa histórica para revelar como um escravo do Tennessee ensinou Jack Daniel a fazer uísque

Mestre destilador: fotos e outros documentos provam que a famosa marca de uísque surgiu graças a um escravo que trabalhou ao lado de Jack Daniel (Nathan Morgan/The New York Times)

Mestre destilador: fotos e outros documentos provam que a famosa marca de uísque surgiu graças a um escravo que trabalhou ao lado de Jack Daniel (Nathan Morgan/The New York Times)

EH

EXAME Hoje

Publicado em 30 de agosto de 2017 às 17h33.

Lynchburg, Tennessee — No verão passado, Fawn Weaver estava de férias em Cingapura quando leu sobre Nearest Green, o escravo do Tennessee que ensinou Jack Daniel a fazer uísque.

A existência de Green nunca foi um grande segredo, mas, em 2016, a empresa Brown-Forman, dona da Destilaria Jack Daniel, ganhou manchetes pelo mundo com a decisão de finalmente abraçar o legado de Green e mudar significativamente seus roteiros turísticos para enfatizar seu papel.

“Sem dúvida, era perturbador o fato de que uma das marcas mais conhecidas do mundo ter sido criada, em parte, por um escravo”, disse a investidora de bens imobiliários e escritora afro-americana Weaver, de 40 anos.

Determinada a ver as mudanças de perto, logo depois ela pegou um avião de Los Angeles, onde mora, para Nashville. Mas quando chegou a Lynchburg, não encontrou vestígio algum de Green. “Participei de três tours pela destilaria, e nada, nem menção a ele”, disse ela.

Em vez de ir embora, Weaver mergulhou no assunto, decidida a descobrir mais sobre Green e a persuadir a Brown-Forman a seguir sua promessa de reconhecer o papel dele na criação do uísque mais famoso dos Estados Unidos. Alugou uma casa no centro de Lynchburg e começou a entrar em contato com os descendentes de Green, dos quais dezenas ainda moravam na área.

Juntando arquivos no Tennessee, da Geórgia e de Washington, DC, ela criou uma linha do tempo da relação de Green com Daniel, mostrando como Green não ensinara apenas o barão de uísque a destilar, mas também havia trabalhado para ele depois da Guerra Civil, tornando-se o que Weaver acredita ter sido o primeiro mestre destilador negro dos Estados Unidos. Nas suas contas, ela coletou 10.000 documentos e artefatos relacionados a Daniel e Green, muitos dos quais concordou em doar para o novo Museu Nacional de História e Cultura Afro-Americana em Washington.

Através dessa pesquisa, ela também localizou a fazenda onde os dois começaram a destilar — e a comprou, juntamente com uma área de 1,6 hectares no centro da cidade, que pretende transformar em um parque memorial. Weaver até descobriu que o nome real de Green era Nathan; Nearest (não Nearis, como sempre foi relatado) era um apelido.

Ela está escrevendo um livro sobre Green, e em julho lançou o Uncle 1856, um uísque produzido sob contrato por outra destilaria do Tennessee. De acordo com Weaver, a maior parte dos lucros será aplicada na expansão da lista de projetos relacionados a Green.

A maior conquista de Weaver, no entanto, aconteceu em maio, quando a Brown-Forman reconheceu oficialmente Green como seu primeiro mestre destilador, quase um ano depois que a empresa prometeu começar a compartilhar o legado de Green (Daniel está agora listado como o segundo mestre destilador).

“É absolutamente fundamental que a história de Nearest seja adicionada à de Jack Daniel”, disse Mark I. McCallum, presidente da Jack Daniel’s Brands na Brown-Forman, durante uma entrevista.

A decisão da empresa de reconhecer sua dívida com um escravo, relatada pela primeira vez no The New York Times no ano passado, é uma mudança decisiva na história da indústria alimentícia do Sul. Mesmo em uma época em que os inovadores negros da cozinha e da agricultura sulista estão começando a obter o devido reconhecimento, a história do uísque americano ainda é contada como um caso de brancos, sobre como os colonos escoceses e irlandeses trouxeram o conhecimento das artes da destilaria do Velho Mundo para os estados fronteiriços do Tennessee e Kentucky.

Nathan Morgan/ The New York Times
FAWN WEAVER: 10.000 documentos para reescrever a história oficial da destilaria

A trajetória de Green muda tudo isso ao mostrar como as pessoas escravizadas provavelmente forneceram cérebros, assim como músculos, para uma operação que era árdua, perigosa e altamente técnica.

De acordo com Weaver, Green foi alugado pelos seus proprietários, uma empresa chamada Landis & Green, para os agricultores do entorno de Lynchburg, incluindo Dan Call, um rico proprietário e pastor que também empregou um adolescente chamado Jack Daniel para ajudar a fazer uísque. Green, já hábil em destilar, manteve Daniel sob sua asa e, após a Guerra Civil e o fim da escravidão, foi trabalhar para ele na operação da bebida.

Provavelmente, havia muitos outros homens como Green espalhados pelo Sul. Os registros são escassos, embora referências a escravos habilidosos em destilação e produção de uísque apareçam em anúncios de escravos à venda e procurados no início do século XIX. Mas apenas um deles ajudou a criar uma marca de uísque que hoje gera cerca de US$3 bilhões por ano de receita.

A empresa teve a intenção de reconhecer o papel de Green como destilador mestre no ano passado como parte da comemoração de seu 150º aniversário, afirmou McCallum, mas decidiu adiar as mudanças em meio à discussão racial das eleições de 2016. “Achei que seríamos acusados de fazer disso um grande negócio para ganhar comercialmente”, disse ele.

Não ajudou o fato de muitas pessoas entenderem mal a história, assumindo que Daniel era dono de Green e roubou sua receita. Na verdade, Daniel nunca possuiu escravos e falou abertamente sobre o papel de Green como seu mentor.

Foi assim que os planos da empresa voltaram para a prateleira e poderiam ter ficado lá se Fawn Weaver não tivesse ido atrás da história.

Weaver é filha de Frank Wilson, compositor da Motown Records que co-escreveu “Love Child” e “Castles in the Sand” antes de se tornar pastor em Los Angeles. Ela começou sua carreira como empreendedora do ramo imobiliário e de restauração. Como escritora, lançou em 2014 o best-seller “Happy Wives Club: One Woman’s Worldwide Search for the Secrets of a Great Marriage” (“Clube das Esposas Felizes: uma Mulher Busca pelo Mundo os Segredos dos Ótimos Casamentos”, em tradução livre).

Ela explica que estava procurando um novo projeto quando pegou o jornal em Cingapura.

“Minha esposa geralmente pensa e age numa única atividade”, disse seu marido, Keith Weaver, vice-presidente executivo da Sony Pictures. “Como marido, eu sabia, ‘Aqui vamos de novo’.”

O que era uma viagem rápida para Lynchburg transformou-se em uma estadia de um mês, já que Fawn Weaver descobriu uma história não contada, escondida em arquivos esquecidos, em terras vazias e na memória coletiva dos moradores negros da cidade.

Através de dezenas de conversas, as pessoas locais, muitas das quais trabalhavam ou ainda trabalham para a Jack Daniel’s, contaram-lhe sobre como aprenderam a história de Green com seus pais e avós, acreditando nela mesmo que a empresa mantivesse o silêncio.

“É algo que minha avó sempre nos contou”, disse Debbie Ann Eady-Staples, descendente de Green, que vive em Lynchburg e trabalhou para a destilaria por quase 40 anos. “Nós o conhecíamos em nossa família, mesmo que a história não viesse da empresa.”

Nada permanece silencioso em Lynchburg (que possui 6.319 habitantes) por muito tempo, especialmente quando envolve o maior empregador da cidade e, no final de março, Weaver se encontrou com McCallum, o presidente da marca.

Com uma amostra dos estimados 10 mil documentos e artefatos espalhados sobre uma mesa entre eles, rapidamente se tornou óbvio que Weaver, que não tinha conhecimentos anteriores da história do uísque, sabia mais sobre as origens do Jack Daniel’s do que a própria empresa. O que deveria ser uma reunião preliminar transformou-se em uma conversa de seis horas.

McCallum diz que saiu revigorado do encontro, e em algumas semanas tinha os planos traçados para colocar Green no centro da história do Jack Daniel’s. Em maio, numa reunião com 100 funcionários da destilaria, incluindo vários descendentes de Green, ele descreveu como a empresa incorporaria Green na história oficial, e naquele mês a empresa começou a treinar seus 24 guias turísticos.

Eady-Staples, que se encontrou em particular com McCallum antes da reunião, disse que estava orgulhosa pelo fato de seu empregador finalmente corrigir a história. “Eu não culpo a Brown-Forman por não agir mais cedo, porque eles não sabiam”, disse ela. “Uma vez que souberam, entraram de cabeça.”

De sua parte, Weaver não acabou a pesquisa sobre Green — e talvez nunca acabe.

“Eu perdi seu rastro a partir de 1884”, ano em que Jack Daniel mudou sua destilaria para a localização atual, e Green desapareceu dos registros da nova empresa, afirmou. Ela ainda espera encontrar o túmulo de Green, e recentemente viajou para o Missouri para se encontrar com uma parte da família lá.

“Eu poderia fazer isso pelo resto da minha vida”, afirmou.

Clay Risen | © 2017 New York Times News Service

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