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A Nintendo solta seus monstros

Realidade aumentada é uma boa descrição para o tipo de jogo em que investidores de bolsas de valores costumam se meter: com base em umas poucas pistas, forma-se a percepção de que um determinado investimento possa se transformar rapidamente em algo muito melhor ou muito pior – e age-se para capturar o valor dessa transformação. […]

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Da Redação

Publicado em 12 de julho de 2016 às 11h43.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h02.

Realidade aumentada é uma boa descrição para o tipo de jogo em que investidores de bolsas de valores costumam se meter: com base em umas poucas pistas, forma-se a percepção de que um determinado investimento possa se transformar rapidamente em algo muito melhor ou muito pior – e age-se para capturar o valor dessa transformação.

Tem algo de poético, portanto, o frenesi do mercado financeiro em torno do jogo Pokémon Go, que a fabricante de jogos Nintendo lançou no último dia 6 de julho, em sua segunda incursão no mundo dos jogos para celulares e tablets. Em apenas dois dias, o valor de suas ações saltou mais de 25%, o que levou a companhia a um valor de mercado de cerca de 28 bilhões de dólares

O jogo usa a tecnologia de realidade aumentada, pela qual o celular permite enxergar informações que o olho nu não é capaz de ver. Neste caso, quando se aponta a câmera do smartphone ou tablet para algum ponto previamente preparado, é possível enxergar, além da paisagem real, pequenos monstros, os pokémons, personagens criados em 1996 pelo gênio dos games Shigeru Miyamoto, também inventor de dois jogos extremamente populares nos últimos 30 anos: Super Mario e Zelda.

A ideia é colecionar os monstrinhos. O aplicativo usa os serviços de localização e mapas do celular para detectar onde você está e faz algum pokémon “aparecer” para você (na tela do celular). Como há vários tipos de pokémon (das águas, das florestas etc.), as pessoas são incentivadas a explorar áreas diversas – incluindo igrejas e delegacias. (Uma delegacia australiana colocou um cartaz admitindo que ali era um lugar de pokémons, mas não havia necessidade de entrar no prédio para caçá-los).

O jogo é revolucionário, porque une o universo dos games ao mundo real. A Nintendo já havia chacoalhado o mercado de jogos de forma parecida, dez anos atrás, quando lançou o Wii, um console que permitia interação com o jogo através de movimentos similares aos do mundo físico (em vez de apertar botões para rebater uma bola de tênis, faz-se o movimento do braço como um tenista). O Wii eliminou a noção de que videogame é para jogar sentado no sofá. Com o Pokémon Go, ele se torna uma atividade ao ar livre.

A excitação dos investidores veio em duas ondas. Na primeira, as ações da Nintendo subiram quase 9%, graças ao sucesso instantâneo do game. Lançado em apenas três países inicialmente (Austrália, Nova Zelândia e Estados Unidos), nas plataformas da Apple e do Google, o Pokémon Go teve cerca de 7,5 milhões de downloads. Em usuários ativos por dia, ultrapassou o aplicativo Tinder, uma rede social para encontrar um par romântico, e está praticamente emparelhado com o Twitter, que está no mercado há dez anos.

Usuários de outros países passaram a tentar burlar as app stores, e o aplicativo apk, que permite criar um endereço fantasma para a sua conta, saltou de 600.000 visitas em 5 de julho para 4 milhões de visitas no dia seguinte.

A segunda onda começou na segunda-feira 11, com a expectativa de lançamento do jogo no Japão, o maior mercado para games. Quando surgiram rumores de que a estreia em mercados asiáticos seria na semana que vem, aproveitando um feriado japonês, as ações da Nintendo dispararam até a valorização de 25% – o limite diário para uma alta na bolsa de Tóquio.

A ideia de estrear em mercados menores foi corrigir problemas antes de um suposto grande lançamento na Ásia. E problemas houve: a demanda foi tão feroz que os servidores saíram do ar algumas vezes, levando a reclamações; um rapaz afirmou ter caído num buraco e quebrado a perna porque andava olhando para o celular; a casa de um homem virou um “ginásio” de treinamento de pokémons e dezenas de pessoas ficaram procurando monstros em seu jardim; entusiastas não conseguiram fazer login para iniciar o jogo; autoridades advertiram que ladrões podem usar ferramentas de atrair pokémons (sim, existe isso, uma das formas de a empresa ganhar dinheiro) para atrair vítimas.

Em sua maior parte, porém, esses são os bons problemas para uma empresa: ser surpreendida pelo sucesso. E a Nintendo estava precisando disso.

A migração para o celular

Em seu auge, no final de 2007, as ações da Nintendo valiam 3,5 vezes mais do que hoje. Aí as vendas do Wii começaram a cair – sua poderosa rival, a Sony, lançou um console similar, e ainda por cima a Microsoft lançou o Kinect, um avanço em relação à tecnologia de detecção de movimentos.

Entre 2006 e 2009, o Wii vendeu 20 milhões de unidades por ano no mundo. Em 2011, havia caído para 11,6 milhões. A resposta da Nintendo, o Wii U, lançado em 2012, não chegou a empolgar. Em 2008, a Nintendo tinha 60% do mercado de consoles. Sua participação caiu para cerca de um terço, hoje.

O declínio fez o então CEO da Nintendo, Satoru Iwata, anunciar em 2014 que cortaria seu salário pela metade por vários meses. Iwata, um programador que virou líder da empresa em 2002, dois anos depois de ser contratado, presidiu o bem-sucedido lançamento do Wii, mas vinha sendo batido pelas rivais.

Pior. Àquela altura, já estava claro para todo mundo que o futuro dos games estava migrando para os celulares. Segundo a consultoria Newzoo, especializada em games, este mercado deve faturar 99,6 bilhões de dólares este ano, um crescimento de 8,5% em relação a 2015. Pela primeira vez, a maior fatia desse bolo vem de celulares e tablets, que ultrapassam os computadores e os consoles com 37% de participação, ou 36,9 bilhões de dólares.

A previsão para 2019 é que celulares e tablets respondam por 46% do mercado, que até lá deverá chegar a 118 bilhões de dólares. Os consoles, o principal ramo da Nintendo, devem perder importância paulatinamente. Hoje, representam cerca de 30% do mercado. Em três anos, deverão representar 26%.

A Nintendo resistiu a aceitar essa tendência. É o usual em empresas de mercados que sofrem ruptura, porque as novas tecnologias em geral oferecem margens de lucro muito menores. Os games para celulares e tablets são gratuitos ou muito baratos e os jogos são baixados de lojas que ficam com parte dos lucros.

Até que em 2014 Iwata aceitou o inevitável. “O mundo está mudando e qualquer companhia que não lidar com a mudança irá escorregar para o declínio.” Ele então começou a virar o barco da Nintendo na direção dos games para dispositivos móveis. Pouco depois, no entanto, foi diagnosticado com câncer nas vias biliares, um tipo de câncer raro e rápido, e morreu em julho de 2015, aos 55 anos.

Coube a seu sucessor, Tatsumi Kimishima, levar adiante a transformação. Em outubro passado, a Nintendo investiu 30 milhões de dólares na empresa Niantic – que viria a desenvolver o Pokémon Go. Em fevereiro deste ano, Kimishima tentou acalmar investidores, depois de uma queda 36% nos lucros trimestrais, dizendo que os números melhorariam com o lançamento de um novo console, o NX, previsto para o ano que vem, e com os novos jogos para celulares, como o Pokémon Go. Aparentemente, tinha razão.

Com a ajuda do Google

A rigor, o Pokémon Go não pertence à Nintendo. O jogo é uma joint venture entre a Pokémon Company, da qual a Nintendo possui um terço do controle, e a Niantic, uma empresa que se separou da Alphabet, a holding que controla o Google (na qual a Nintendo tem cerca de 10% das ações).

Mas a presença de Miyamoto, o artista que criou os pokémons, no anúncio do game, em setembro, leva a crer que a empresa ajudou a moldar a experiência. “Ver Miyamoto lá indica que ele foi parte do processo de dar o tom do jogo”, disse Serkan Toto, um consultor da indústria de games. “Isso é muito mais importante do que parece, e uma grande parte do sucesso do Pokémon Go.”

Como “guia espiritual”, porém, a receita da Nintendo não é a mesma. Segundo analistas da consultoria australiana Macquarie, a Nintendo recebe cerca de 10% das vendas do game nas lojas da Apple e do Google, mais 30% da receita da Pokémon Company. Isso significa que o game tem de ser um estrondoso sucesso comercial para dar um retorno significativo à empresa.

Parece que isso está calculado. Embora o jogo seja gratuito, ele está recheado de oportunidades de a empresa “monetizar” – quer dizer, transformar o dinheiro do usuário em dinheiro dela. Há itens especiais à venda no próprio aplicativo, como armas, moedas e outras ferramentas para fortalecer os pokémons conquistados. Ainda este mês, a Nintendo deve lançar um aparelho de 35 dólares para facilitar a captura de pokémons, com um botão para apertar, em vez de um toque de dedo no celular. Sem falar nas possibilidades de acordos de marketing para atrair para lojas ou bancos os fãs à caça de monstrinhos.

Além disso, o sucesso do Pokémon Go está fazendo os investidores reavaliarem suas expectativas para os outros cinco jogos que a Nintendo diz que vai lançar para smartphones até março do ano que vem. “O sucesso do Pokémon Go foi uma lembrança de que a Nintendo guarda uma propriedade intelectual incrivelmente poderosa”, diz David Gibson, da Macquarie. “Dada essa força, a melhor relação possível seria algum tipo de união entre a Nintendo e a Disney.”

Para o jogo em celulares, porém, dificilmente a Nintendo teria arranjado um parceiro melhor. A Niantic foi criada em 2010, a partir da divisão de mapas do Google, e se tornou uma empresa independente em agosto passado. Seu CEO é John Hanke, o fundador da Keyhole, empresa de mapas que o Google comprou para construir seu serviço de mapas em 2004.

Há quase três anos, a Niantic lançou um outro game, Ingress, em que desenvolveu boa parte dos elementos usados no Pokémon Go, misturando geolocalização e design de games. Em entrevista ao The New York Times, no mês passado, ele disse: “Todo mundo está passando tanto tempo dentro de prédios, com seus computadores. Ninguém vai aos parques. Nós queríamos fazer algo inspirador. Vamos botar as pessoas para fora. Parte da alegria do jogo está em percorrer caminhos diferentes. Nós não somos a favor de ficar colados num sofá imersos na realidade virtual como a do filme Matrix.”

Talvez a Nintendo não capture todo o valor criado pelos games de realidade aumentada. Mas certamente, mais uma vez, mudou o rumo da indústria.

(David Cohen)

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