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Trump brinca com fogo

Lourival Sant’Anna  Donald Trump disse ao longo das primárias que pretendia unir de novo os americanos. Se continuar nessa toada, ele vai conseguir. Contra ele. Sua briga com os pais paquistaneses de um capitão americano morto no Iraque e sua parceria com o presidente russo, Vladimir Putin, considerado o mais perigoso adversário dos Estados Unidos, […]

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Da Redação

Publicado em 4 de agosto de 2016 às 12h54.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h27.

Lourival Sant’Anna

Donald Trump disse ao longo das primárias que pretendia unir de novo os americanos. Se continuar nessa toada, ele vai conseguir. Contra ele. Sua briga com os pais paquistaneses de um capitão americano morto no Iraque e sua parceria com o presidente russo, Vladimir Putin, considerado o mais perigoso adversário dos Estados Unidos, provocaram nos últimos dias a indignação de membros importantes do Partido Republicano, que a todo custo procuram se distanciar de seus desatinos, antes que suas carreiras políticas sejam contaminadas por eles. Sintomaticamente, depois dos últimos acontecimentos, a democrata Hillary Clinton voltou a liderar nas pesquisas.

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Sondagem da empresa ORC para a CNN indica 52% dos votos para Hillary e 43% para Trump. As entrevistas foram realizadas entre os dias 29 e 31, em seguida à convenção democrata. No dia 14 de julho, quando Trump e Hillary estavam empatados em 40%, Jerry Hagstrom, veterano jornalista de Washington, havia antecipado esse cenário, em entrevista a EXAME Hoje: “Minha previsão é de que ela continuará em baixa nas pesquisas até depois da convenção republicana, na semana que vem. Passada a convenção democrata, que virá em seguida, acho que ela subirá de novo”.

Dito e feito. As convenções partidárias americanas são um grande teatro, com comoventes testemunhos de parentes, amigos e subordinados sobre as qualidades do candidato. A de Hillary, na semana passada, teve uma explosão de charme com Bill Clinton, Michelle e Barack Obama. Mas nada se compara ao impacto do testemunho, na quinta, 28, de Khizr Khan, cujo filho morreu servindo o Exército americano em 2004. Khan, outrora eleitor republicano, acusou Trump de “nunca ter sacrificado nada nem ninguém” pelos Estados Unidos. Advogado em Washington com especialização em Harvard, Khan sacou do paletó uma edição de bolso da Constituição e se dirigiu a Trump: “Você ao menos leu a Constituição dos Estados Unidos? Empresto-lhe a minha com prazer. Neste documento, procure pelas palavras ‘liberdade’ e ‘proteção igual perante a lei’”.

Khan se referia à proposta de Trump de impedir a entrada de muçulmanos nos Estados Unidos, por causa da ameaça terrorista, e também à sua visão geral contrária à imigração. Se essas ideias estivessem em vigor, disse Khan, sua família não poderia ter imigrado em 1980 e seu filho não teria lutado pelos EUA. Humayun Khan morreu aos 27 anos na explosão de um carro-bomba na frente de sua base, em Baquba. Ele foi averiguar o carro, mandando seus subordinados ficar para atrás. Khan contou ainda que seu filho mais velho se formou com notas altas pela Universidade da Virgínia e é co-fundador de uma empresa de biotecnologia, na qual trabalha também seu filho mais novo.

A família faz parte de um contingente de 3,3 milhões de muçulmanos (pouco mais de 1% da população), segundo cálculo do Pew Research Center. O Censo americano não pergunta a religião. Trata-se de uma comunidade bastante heterogênea, que começou a imigrar no início do século 20, vindo sobretudo da Palestina e do Líbano, por razões econômicas. A partir da década de 50, seu perfil mudou, com profissionais de nível universitário vindo de diversas partes do mundo muçulmano, da Bósnia ao Sudeste Asiático, passando pela África e o Oriente Médio. Os muçulmanos superam os hindus, calculados em 2,1 milhões, e são menos numerosos que os 5,7 milhões de judeus. Mas, segundo o Pew, por volta de 2050, serão 8,1 milhões, ou 2,1% da população, por causa de sua alta taxa de natalidade e também da contínua imigração.

O impacto das palavras de Khan foi amplificado pela reação de Trump.
Em entrevista à rede de TV ABC, Trump atacou a mulher de Khan, Ghazala, que ficou em silêncio ao lado do marido durante o discurso da convenção: “Se você olhar para a mulher dele, de pé, ali, ela não tinha nada para dizer. Talvez ela não tenha tido permissão para ter algo a dizer. Diga-me você.” Ghazala respondeu a Trump em entrevistas a canais de TV e em um artigo no jornal The Washington Post, em que escreveu: “Sem dizer uma palavra, o mundo todo, a América toda, sentiu minha dor”.

Trump sendo Trump

Não foi o único choque de Trump com os sacrifícios feitos por americanos nas múltiplas guerras do país. Em julho do ano passado, no começo de sua campanha, e ao final de uma troca de farpas com o senador John McCain, Trump colocou em dúvida o heroísmo dele no Vietnã. McCain, que disputou a eleição com Obama em 2008, foi piloto da Marinha na guerra, acabou capturado e passou cinco anos e meio — dois deles em solitária — na famosa prisão norte-vietnamita apelidada de Hanoi Hilton, onde a tortura corria solta. “Ele não é herói de guerra”, disse o bilionário, para justificar, com seu sistema de valores darwinista: “Ele foi um herói porque foi capturado. Gosto de pessoas que não foram capturadas”.

McCain foi um dos que se insurgiram esta semana contra a crítica de Trump aos pais do capitão morto: “É hora de Donald Trump dar um exemplo para nosso país e para o futuro do Partido Republicano. A nomeação que o partido lhe concedeu não significa licença incondicional para difamar os melhores entre nós”, disse McCain, cujo filho também serviu no Iraque, e cujos antepassados lutaram em guerras. E, dirigindo-se aos pais do capitão: “Seu filho foi o melhor da América, e a memória de seu sacrifício nos tornará uma nação melhor, e ele nunca será esquecido”. Outros líderes republicanos fizeram declarações semelhantes.

A imprensa americana foi atrás dos registros de Trump no alistamento militar. Ele recebeu quatro dispensas entre 1964 e 1968, por estar estudando. Ao se formar em economia na Universidade da Pensilvânia, em 1968, com 22 anos de idade, Trump aparentava uma saúde invejável. Media 1m88, tinha um corpo atlético, havia praticado futebol, tênis e squash. Mesmo assim, foi dispensado, por causa de esporões no calcanhar. Naquele ano, 300.000 americanos foram convocados para a guerra no Vietnã.

A incapacidade de Trump de aceitar críticas o levou ainda a desprezar as credenciais do respeitado general da reserva John Allen, do Corpo de Fuzileiros Navais, que foi comandante das forças da Otan no Afeganistão. Obama pretendia nomeá-lo comandante da Otan na Europa, mas ele declinou e entrou para a reserva como general de quatro estrelas para acompanhar sua mulher no tratamento de uma doença crônica. Em 2014, Allen voltou ao trabalho, quando Obama o nomeou enviado presidencial para a Coalizão Global contra o Estado Islâmico, posição que ele exerceu por um ano.

Pois bem. Ao discursar em favor de Hillary na convenção, Allen criticou indiretamente Trump, que ameaçou não defender os aliados da Otan de uma eventual agressão russa se eles não pagarem pelo preço da operação, e que defende enfiar a cabeça de terroristas na água durante interrogatórios: “Com ela como comandante-chefe, nossas relações internacionais não serão reduzidas a transações de negócios, e nossas Forças Armadas não se tornarão instrumento de tortura, não se envolverão em assassinato nem em outras atividades ilegais”.
Como sempre, Trump se defendeu com sarcasmo: “Ele é um general fracassado. Ele era o general que lutava contra o Estado Islâmico. Eu diria que ele não foi muito bem, certo?”

Qual o risco?

A base eleitoral de Trump são os brancos de baixa instrução, que se sentem prejudicados pelo deslocamento das indústrias americanas para países onde a mão de obra é mais barata, como a China e o México. O desemprego continua baixo nos Estados Unidos, mas houve uma perda na qualidade do emprego.Esse público gosta das teses de Trump contra o comércio exterior e também contra a imigração, porque ademais acha que os estrangeiros tomam seus empregos e sobrecarregam os contribuintes com mais impostos, ao demandar serviços sociais do Estado. Até aí, a xenofobia de Trump cai bem para esses eleitores.

O problema é que esses mesmos americanos são os que colocam uma bandeirinha dos Estados Unidos nos seus gramados na frente de casa, e veneram os sacrifícios dos heróis de guerra e de suas famílias. Muitos deles também tiveram parentes nas guerras e, mesmo que não tenham tido, acham que essas guerras historicamente protegeram a liberdade e a prosperidade dos americanos.

É aqui que Trump dá um tiro no pé. Em geral, ele é admirado por esses eleitores, por sua espontaneidade e sinceridade, seu hábito de chutar o pau da barraca e dizer o que pensa, sem se preocupar com o que é politicamente correto. Mas seu impulso incontrolável de atacar quando é criticado o tem levado a atropelar o tabu do heroísmo na guerra — que também é caro ao seu eleitorado.

Ao lado disso, Trump tem elogiado Putin, como um chefe de Estado que sabe defender os interesses de seu país. Depois que o FBI lançou a suspeita, confirmada por uma firma de segurança contratada pelos democratas, de que russos que trabalham para o Kremlin estariam por trás da invasão de emails trocados por dirigentes do partido, Trump pediu aos russos para encontrarem os que Hillary teria deletado, depois de usar um servidor privado quando foi secretária de Estado, entre 2009 e 2013.

Essa violação sem precedentes de limites e tabus ligados à identidade americana não cobrará um preço na forma de perda de apoio para Trump? As opiniões se dividem entre especialistas em opinião pública ouvidos por EXAME Hoje.

“Não acho que os comentários de Trump lhe custarão nenhum voto entre seus simpatizantes”, avalia Tom Knecht, do Departmento de Ciência Política do Westmont College, em Santa Barbara, Califórnia. “Se os fãs de Trump já não foram desligados por nenhuma das coisas estúpidas e ofensivas que ele tem dito, é improvável que sejam afetados por este último ataque”, continuou Knecht, referindo-se à crítica aos pais do capitão morto. “Trump pode estar certo. Provavelmente ele poderia dar um tiro em alguém na Times Square e não perder nenhum voto. É inacreditável.”

O especialista pondera, no entanto, que o bilionário não perde mas também não ganha: “O ataque de Trump contra os Khans provavelmente não lhe renderá nenhum ponto entre os indecisos. E ele precisa começar a pegar um pouco do voto dos indecisos, se quiser derrotar Clinton”.

George Terry Madonna, diretor do Franklin & Marshall College, da Pensilvânia, tem uma visão diferente. “Acho, sem dúvida, que os comentários dele o prejudicaram, apesar de ele ter tentado se defender”, avalia o especialista em opinião pública. “Veja as pesquisas que saíram esta semana. Antes desses comentários, ele estava um ponto na frente na média das pesquisas do site Real Clear Politics. Enquanto falo com você, ele está 4,4 pontos atrás.” O professor analisa: “Não acho provável que os eleitores de colarinho azul (trabalhadores de níveis mais baixos) como um todo acharão que está tudo bem menosprezar o filho de Khan só porque ele era muçulmano”.

Por via das dúvidas, Trump começou a colocar em dúvida a lisura das eleições — outra linha vermelha que os políticos americanos não costumam cruzar. “Temo que a eleição seja fraudada, tenho que ser honesto”, disse o candidato republicano em um comício em Columbus, Ohio, na segunda-feira. Ele acrescentou que tem ouvido essa suspeita “cada vez mais”. O próprio Trump se encarregou de colocar o sistema em dúvida, depois que o site WikiLeaks vazou emails trocados entre dirigentes democratas, que indicavam que eles estavam favorecendo Hillary em detrimento do senador Bernie Sanders, seu rival nas primárias do partido.

É a segunda vez que Trump acena com jogar areia na engrenagem da democracia americana. No início do ano, ele previu que poderia haver violência na convenção republicana, se sua candidatura fosse bloqueada pelos dirigentes partidários, apesar de sua vitória no voto dos filiados. Trump gosta de brincar com fogo. Até onde os eleitores irão com ele, é algo a que vamos assistir.

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