Mundo

Puigdemont na pior em Barcelona e Bruxelas

Exilado na Bélgica e cada vez mais criticado em sua terra, o líder catalão levou sua região a uma separação forçada em que todos saíram perdendo

O Tribunal Superior de Justiça da Catalunha aceitou o pedido de investigação contra Puigdemont por malversação de fundos, prevaricação e desobediência

O Tribunal Superior de Justiça da Catalunha aceitou o pedido de investigação contra Puigdemont por malversação de fundos, prevaricação e desobediência

DR

Da Redação

Publicado em 3 de novembro de 2017 às 09h57.

Última atualização em 3 de novembro de 2017 às 10h16.

De líder independentista e futuro presidente do Estado da Catalunha a governante destituído, foragido da Justiça, aguardando extradição e sujeito a penas de até 30 anos de prisão. O destino de Carles Puigdemont, ex-presidente catalão, mudou drasticamente desde que o primeiro-ministro da Espanha, Mariano Rajoy, apoiado pelo Senado, acionou o artigo 155 da Constituição, que lhe permite intervir na região.

Rajoy nomeou sua vice, Soraya Sáenz de Santamaría, presidente interina da Catalunha. Seus ministros assumiram as secretarias regionais correspondentes a suas áreas. E foram convocadas eleições para o dia 21 de dezembro.

O Tribunal Superior de Justiça da Catalunha aceitou o pedido de investigação contra Puigdemont por malversação de fundos, prevaricação e desobediência, por causa da realização do plebiscito do dia 1.º de outubro, declarado ilegal pelo Tribunal Constitucional (TC) da Espanha, e por ter depois proclamado a independência da Catalunha — ainda que com efeito retardado, na esperança de uma negociação com o governo espanhol que não veio.

O líder catalão, juntamente com seus 14 secretários de governo, também foi convocado a responder pelo crime de rebelião, que prevê até 30 anos de prisão. A audiência foi marcada para esta quinta-feira. Mas Puigdemont, exilado na Bélgica, já avisou que não vai comparecer.

Nesta quinta-feira, a Justiça espanhola decretou a prisão provisória de oito membros destituídos do governo catalão e emitiu uma ordem de prisão europeia contra Puigdemont. A resposta do líder catalão foi inflamada. Em um comunicado em vídeo, desde Bruxelas, ele “exigiu” a libertação imediata dos encarcerados e chamou os catalães a “combater” com “ataque” com serenidade, e sem violência.

Suas declarações sobem de tom na medida em que o cerco de Madri se fecha. Em entrevista coletiva na terça-feira, Puigdemont disse que só voltará à Espanha quando tiver a “garantia de tratamento e de julgamento justos”, e acusou o país de “politização da Justiça”. O pedido de prisão tende a envenenar ainda mais o ambiente entre ele e Rajoy. A Espanha, uma das democracias mais jovens da Europa Ocidental, é bastante suscetível a questionamentos em relação a seu Estado de Direito, ainda mais na sede da União Europeia (UE).

A escolha da Bélgica e de seu advogado de defesa, Paul Bekaert, indica que Puigdemont pode estar acuado, mas não está improvisando. Bekaert defendeu vários membros do grupo terrorista basco ETA (que renunciou à luta armada em 2011) e conseguiu evitar sua extradição à Espanha. Além disso, os juízes belgas são conhecidos por sua sensibilidade a casos de pessoas que alegam ser vítimas de violações dos direitos humanos.

O tema do separatismo divide o governo belga, uma delicada coalizão formada em outubro de 2014, depois dos cinco meses de impasse que se seguiram às eleições, que deixou o país sem governo.

O Partido Nova Aliança Flamenga (N-VA), que defende a separação de Flandres, do norte, de língua holandesa, participa da coalizão. Num gesto de apoio ao separatismo catalão, o ministro de Asilo, Migração e Simplificação Administrativa, Theo Francken, que pertence ao N-VA, foi quem concedeu o asilo a Puigdemont.

Já o primeiro-ministro Charles Michel, do Partido Reformista, representa os valões, de língua francesa. Ele é contra a separação, assim como o vice-primeiro-ministro Kris Peeters, que pertence ao Partido Cristão-Democrata e Flamengo.

“Não quero pré-julgar nada”, declarou Peeters, que também é ministro da Economia e do Emprego, sobre o exílio de Puigdemont. “Mas quando alguém declara independência, é melhor ficar perto de seu povo.”

De qualquer maneira, a decisão sobre a entrega ou não de Puigdemont à Espanha não será do governo, mas da Justiça belga. Pedidos de extradição passam pelo governo, mas no caso do Espaço Schengen, a área de livre circulação de pessoas que envolve 26 países europeus, é diferente. Há um mecanismo chamado Ordem Europeia de Detenção, ao qual a Espanha aderiu em novembro de 2014, pelo qual o pedido é feito de juiz para juiz.

Metade não basta 

A situação de Puigdemont é, no mínimo, precária. Para o constitucionalista Diego López Garrido, patrono da Fundação Alternativas, de Madri, Rajoy venceu a disputa por causa de uma sequência de erros de cálculo de Puigdemont. “Ele pretendia impor a independência contra a metade da população, contra o Estado, contra os principais partidos, contra os empresários e contra a União Europeia, e isso é impossível”, analisa López, que foi deputado pelo Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE) e secretário de Estado para a UE.

“Ele confundiu os desejos com a realidade”, prosseguiu López, cujo PSOE defende maior autonomia para a Catalunha, em contraste com o Partido Popular, no governo, que é mais inflexível e centralizador. “Uma coisa é ter apoio popular e outra é romper um Estado”, disse o constitucionalista a EXAME. “Não se pode edificar um país independente baseado em 50% a favor e 50% contra.”

No plebiscito do dia 1.º de outubro, 90% votaram a favor da independência, mas o comparecimento foi de apenas 43%. A imensa maioria dos catalães contrários à independência não compareceu. Esses dados, fornecidos pelo governo catalão, confirmam as pesquisas, que indicavam que apenas 40% era a favor da separação.

“A aplicação do artigo 155 foi um êxito para o governo”, avalia Juan Jesús González, professor de sociologia da Universidade Nacional de Educação a Distância, de Madri.

“Puigdemont não convocou as eleições porque preferia que o governo o fizesse, com a esperança de que a intervenção espanhola sobre o governo autônomo da Catalunha gerasse una escalada do conflito entre centro e periferia, mas não foi assim”, disse González a EXAME.

“Pelo contrário, a intervenção do governo central tem sido um alívio para as duas partes, na medida em que acabou com o beco sem saída em que havia se colocado o governo de Puigdemont, provocando fuga de empresas, falta de reconhecimento internacional e assim por diante”, observa o sociólogo.

Já a catalã Lourdes Casanova, professora da Universidade Cornell, no Estado de Nova York, acha que é cedo para dizer quem vai sair perdendo: “Vamos ver as eleições de dezembro. Em princípio, todos perderam”.

A professora lembra que, tradicionalmente, os separatistas radicais eram os bascos. “Dessa vez, o presidente do País Basco (Juan José Ibarretxe) pediu a Puigdemont que convocasse eleições, para evitar que o artigo 155 fosse acionado”, diz ela. O presidente catalão teria concordado, mas depois mudado de ideia. Suas posições são resultado de pressões no interior de seu governo.

A coalizão liderada por Puigdemont vai da extrema esquerda a liberais. A Candidatura da Unidade Popular (CUP) considera que ele não é suficientemente radical, e exigia a declaração imediata da independência, sem negociação. Já integrantes do seu Partido Democrata Europeu Catalão (PDeCAT) queriam uma conduta mais moderada.

Casanova é especialista em mercados emergentes, e dá aulas de globalização em Cornell. Ela vê o conflito do ponto de vista da tensão entre local e global. “Há 30 anos as escolas da Catalunha ensinam em catalão, as pessoas cultivam os costumes catalães, a maioria não viaja, e vive numa bolha catalã, assistindo só a TV catalã, que por sinal é muito boa”, descreve a professora.

“O movimento independentista esperava mais apoio internacional, sobretudo da Europa, mas não teve, e foi muito desconcertante”, disse Casanova a EXAME. “Não há um projeto sólido sobre o dia seguinte à independência. Não estava claro o que aconteceria depois de nos tornarmos uma república, se se podia usar o euro. Falou-se em uma moeda eletrônica que a IBM estaria criando.”

Casanova lembra que ninguém estava preparado para o uso do artigo 155, que nunca tinha sido acionado antes. Assim como ninguém esperava que, da noite para o dia, 1.500 empresas anunciariam sua saída da Catalunha. Ela observa que as duas manifestações contra a separação, realizadas depois do plebiscito, tiveram a participação de líderes catalães “muito respeitados”.

“A maioria dos que não queriam a separação não votava nas eleições regionais”, diz a professora. Foi assim que os separatistas chegaram ao poder na Catalunha, depois das eleiçõe de 2015. “Todo mundo achava que nunca chegaria a independência. Agora, todo mundo vai votar.”

A divisão é visível até no grupo de WhatsApp da família Casanova. A professora conta que todas as manhãs vai ver quem saiu e quem voltou ao grupo, por causa das brigas em torno da independência. Uma parte da família apoia, outra rejeita. Alguns de seus sobrinhos foram à manifestação a favor da separação, e outros foram ao protesto pela continuação da Catalunha na Espanha.

Ela já propôs que não falassem disso no grupo, mas lhe responderam: “Como não falar de um assunto tão importante?”

Em dezembro, os catalães poderão falar nas urnas.

Acompanhe tudo sobre:BélgicaCatalunhaEspanhaExame Hoje

Mais de Mundo

Drones sobre bases militares dos EUA levantam preocupações sobre segurança nacional

Conheça os cinco empregos com as maiores taxas de acidentes fatais nos EUA

Refugiados sírios tentam voltar para casa, mas ONU alerta para retorno em larga escala

Panamá repudia ameaça de Trump de retomar o controle do Canal