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Por que tanto do comércio global depende do Canal de Suez?

O encalhamento do navio Ever Given deixou clara a dependência mundial do pequeno estreito no Egito. O trajeto alternativo, pela África, pode durar dez dias a mais

Menino observa Ever Given encalhado no Canal de Suez: navio bloqueou todo o transporte de mercadorias pelo estreito (Samuel Mohsen/picture alliance/Getty Images)
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Carolina Riveira

Publicado em 27 de março de 2021 às 08h01.

Última atualização em 28 de março de 2021 às 10h26.

Como um único navio pode colocar de cabeça para baixo o comércio global? O bloqueio do Canal de Suez pelo navio Ever Given, que encalhou nesta semana no Egito, pode afetar países em todo o mundo. Além das mercadorias no próprio navio — que podem somar 1 bilhão de dólares —, quanto mais tempo a embarcação ficar parada, maiores serão os efeitos na cadeia de suprimentos.

Cerca de 12% da economia do mundo consiste em mercadorias que passam pelo Canal de Suez. O estreito liga o Mar Mediterrâneo e o Mar Vermelho, funcionando como um atalho entre a Europa e a Ásia.

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Só esses dois continentes representam 63% do produto interno bruto do mundo, segundo estimativa do Fundo Monetário Internacional para 2021.

Mas mesmo quando o comércio não se faz diretamente entre europeus e asiáticos, o canal também é rota intermediária para uma série de outros destinos, como produtos vindos da América do Norte para países da Ásia e petróleo exportado do Golfo Pérsico para todo o mundo.

Dez dias a mais

Com o Ever Given bloqueando a rota, mais de 200 navios estavam ancorados esperando a possibilidade de passar pelo canal nesta semana. A estimativa é que o canal parado, por hora, resulte em atraso de cerca de 400 milhões de dólares em mercadorias embarcadas, ou quase 10 bilhões de dólares por dia.

Sem Suez, os navios têm de dar a volta em toda a extensão da África, passando pelo chamado Cabo da Boa Esperança (ou Cabo das Tormentas, temido pelos navegadores europeus no século 15). Alguns dos navios esperando a remoção do Ever Given já desviaram rotas e estão fazendo o trecho mais longo em torno da África, segundo as agências internacionais, mas o trajeto é muito maior e mais custoso.

Foto de satélite do Ever Given encalhado: navio bloqueando a passagem no Canal de Suez pode ser visto do espaço (Satellite image (c) 2020 Maxar Technologies./Getty Images)

Dar a volta na África faria do trajeto de oito a dez dias mais longo, com quase 9.000 quilômetros a mais de viagem, segundo o World Shipping Council.

Outra alternativa seria transportar as mercadorias por terra no Oriente Médio e países do Mediterrâneo até chegar à Europa — uma solução usada antes do canal mas pouco eficiente para toneladas de mercadorias.

A versão mais recente do Canal de Suez tem mais de 150 anos de vida, inaugurado em 1869 após uma obra de dez anos. A construção foi tocada por um consórcio britânico e francês, quando o Egito ainda era colônia da Inglaterra. O canal só seria devolvido ao Egito em 1956.

Mapa de partes de Europa, África e Ásia: continentes ligados pelo canal de Suez (em vermelho) (Google Maps)

Em 2015, o canal passou também por uma duplicação e expansão ao custo de 9 bilhões de dólares, com o governo egípcio chamando a obra de "Novo Canal de Suez". Mas o trecho onde o Ever Given encalhou não foi contemplado, de modo que não há rota alternativa dentro do canal.

Nos anos 50 e 60, o canal também parou

Os criadores do Canal de Suez juraram que a rota funcionaria "em tempos de paz ou de guerra" e "sem distinção de bandeira". Mas não é a primeira vez que o trecho é bloqueado. Em 1956, uma crise militar entre europeus, israelenses e egípcios pararia o canal por alguns meses; anos depois, Suez ficaria fora de uso por uma década devido ao conflito árabe-israelense, entre 1967 e 1975.

O primeiro embate, em 1956, aconteceu enquanto o Egito vivia uma revolução sob liderança do presidente Gamal Abdel Nasser. Em meio ao processo de descolonização ante à Inglaterra, Nasser nacionalizou o Canal de Suez, que era ainda controlado por franceses e ingleses.

Foto do século 19 mostra escritório da Suez Company, controladora do Canal de Suez: consórcio de ingleses e franceses dominaram o canal até 1956 (Photo12/Universal Images Group/Getty Images)

À época, a Europa tinha dois terços do petróleo que consumia passando por Suez. Com apoio de Israel, Inglaterra e França invadiram o Canal de Suez em outubro de 1956. O recém-criado Estado de Israel estava na ocasião em disputa com os países árabes do Oriente Médio, contrários à criação de Israel em território palestino.

A invasão no Canal de Suez seguiria até o fim daquele ano, com o canal paralisado por mais de três meses. A guerra acabou sobretudo devido à pressão de Estados Unidos e União Soviética, num raro acordo em meio à Guerra Fria.

O bloqueio na região, afinal, afetava os negócios soviéticos e estadunidenses, e era de interesse das potências que o Canal de Suez fosse liberado. Os EUA também ficaram furiosos com o fato de os europeus terem invadido o canal sem comunicar os americanos, e ameaçaram aplicar sanções contra os aliados.

Com a retirada das tropas europeias e israelenses, o canal ficou com o Egito, mas o conflito com Israel continuaria. Uma década depois, o Canal de Suez seria ainda bloqueado após a Guerra dos Seis Dias, depois que Israel invadiu a Península do Sinai e parte do Canal de Suez em 1967. O canal só voltaria a ficar aberto para toda navegação internacional em 1975, após a Guerra do Yom Kippur, que se seguiu à Guerra dos Seis Dias.

Canal dos faraós e o Brasil

Historicamente, a rota Europa-Ásia foi sempre de interesse das grandes potências de cada época. Após o fim da Idade Média, o objetivo principal era conseguir especiarias nas chamadas Índias para comercializar na Europa. O Mar Mediterrâneo foi muito usado para esse fim, com os árabes da região atuando também como comerciantes que faziam a ponte entre Europa e Índias, muitas vezes por terra.

(A busca por um caminho direto para as Índias resultou até mesmo na chegada dos portugueses ao Brasil em 1500, após terem se lançado ao ao mar na procura por rotas.)

O plano de ter um atalho entre o Mar Vermelho e o Mar Mediterrâneo já remontava aos tempos dos faraós no Egito, com a primeira versão do Canal de Suez possivelmente tendo existido por volta do século 13 a.C, chamada de "Canal dos Faraós".

Festa no Egito para reabertura do Canal de Suez, em 1975: passagem ficou parada por quase uma década em meio a conflito árabe-israelense (Giorgio Lotti/Mondadori/Getty Images)

Séculos depois, por volta de 500 a.C, outra construção na região da qual se tem notícia vem do governo dos persas, do imperador Dario I, quando este conquistou o Egito. Com o canal, navios persas (onde hoje é o Irã) puderam se deslocar com mais facilidade para as terras egípcias, ampliando a integração regional e comércio entre vários países, que foi uma marca do rico Império Persa.

Segundo os registros históricos, o canal seria então sucessivamente destruído e reconstruído nos anos seguintes em meio às várias guerras e conquistas na região. Em toda a história, Suez também serviu para transporte de armas e outros itens de guerra, tendo papel crucial na logística nas duas grandes guerras mundiais no século 20 e em outros confrontos.

Impactos globais

Mesmo em meio aos avanços na logística desde o tempo dos faraós, os 200 quilômetros de Suez ainda valem ouro. Especialistas já calculam que, se o Ever Given seguir encalhado por muitos dias, os estragos podem chegar a bilhões de dólares. Além dos custos da paralisação, empresas na cadeia logística podem ter de buscar novas rotas, como as vias aéreas, que são mais caras.

Com o crescimento do comércio mundial, navios como o Ever Given (que pesa 200.000 toneladas) ficaram maiores, dobrando de tamanho em média, segundo a BBC. A vantagem é carregar mais mercadorias ao mesmo tempo. O tamanho, no entanto, tornou mais difícil removê-los no caso de acidentes como esse.

Mesmo depois que o Ever Given for retirado (o que pode levar dias ou até semanas), os estragos ainda durarão por dias, devido ao congestionamento causado nos portos enquanto o fluxo estava paralisado. Especialistas apontam ainda provável falta de contêineres para transportar novas mercadorias em várias partes do mundo, uma vez que o material está hoje preso nos barcos parados.

Bandeiras de diversos países no Canal de Suez, em 2019: aberto há 150 anos e por onde passam mais de 10% da economia global (KHALED DESOUKI/AFP/Getty Images)

Os impactos podem chegar até mesmo a países que estão muito longe do Mar Mediterrâneo, como o Brasil. Um dos exemplos mais notórios é o petróleo, que passa em abundância por Suez vindo dos países do Golfo Pérsico.

Os problemas no canal devem prejudicar o escoamento do produto, podendo fazer os preços subirem no mercado internacional, o que levaria a Petrobras a ajustar os valores também no mercado interno.

A indústria também pode sofrer com falta de componentes importados que passam pelo canal. Mesmo antes de o Ever Given encalhar, a cadeia de suprimentos já vivia problemas devido ao coronavírus, levando a um cenário de mais demanda do que oferta em alguns setores e falta de peças.

Na prática, muita coisa pode ser afetada — até o cafezinho ou o estoque de papel higiênico. A prova de que, das grandes civilizações antigas ao Egito contemporâneo, a localização estratégica e importância econômica seguem fazendo do Canal de Suez um dos trechos de água mais relevantes do mundo.

 

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