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‘Os limites do direito internacional estão sendo testados’, diz presidente Lula

Na Cúpula do Mercosul, presidente alerta sobre intervenção americana na Venezuela. Especialistas veem risco de escalada militar e impactos diretos para a América Latina

Luiz Inácio Lula da Silva, presidente da República: “Uma intervenção armada na Venezuela seria uma catástrofe humanitária para o hemisfério e um precedente perigoso para o mundo” (EVARISTO SA / Colaborador/Getty Images)

Luiz Inácio Lula da Silva, presidente da República: “Uma intervenção armada na Venezuela seria uma catástrofe humanitária para o hemisfério e um precedente perigoso para o mundo” (EVARISTO SA / Colaborador/Getty Images)

Publicado em 20 de dezembro de 2025 às 14h28.

Última atualização em 20 de dezembro de 2025 às 14h56.

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O presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou neste sábado, 20, na abertura da Cúpula do Mercosul, em Foz do Iguaçu, que uma eventual intervenção militar dos Estados Unidos na Venezuela abriria um precedente perigoso para o equilíbrio do direito internacional. A declaração deu um tom político a um encontro que, inicialmente, tinha como foco central a agenda econômica e comercial do bloco.

“Passadas mais de quatro décadas desde a Guerra das Malvinas, o continente sul-americano volta a ser assombrado pela presença militar de uma potência extrarregional. Os limites do direito internacional estão sendo testados. Uma intervenção armada na Venezuela seria uma catástrofe humanitária para o hemisfério e um precedente perigoso para o mundo”, afirmou presidente Lula, em discurso aos chefes de Estado.

A fala ocorre em meio à escalada de tensões entre Washington e Caracas, marcada pelo bloqueio e pela apreensão de embarcações ligadas ao petróleo venezuelano. Para Lula, o movimento ultrapassa a esfera diplomática e passa a tensionar normas internacionais consolidadas, especialmente no campo da soberania dos Estados e do direito marítimo.

Pressão diplomática e risco de escalada

A escalada de tensões entre Estados Unidos e Venezuela combina ameaça militar concreta e pressão diplomática calculada, afirma Rafael Duarte Villa, professor titular de ciência política e relações internacionais da Universidade de São Paulo. Para o especialista, o volume de recursos mobilizados por Washington não deixa dúvidas de que há disposição real para o uso da força — ainda que o objetivo imediato seja constranger politicamente o governo de Nicolás Maduro.

“Ninguém coloca tantos homens, tantos recursos militares, o maior porta-aviões de ataque do mundo frente ao litoral venezuelano se não tem, em algum momento, a intenção de utilizar”, afirma Villa.

Ao mesmo tempo, segundo ele, a operação funciona como uma pressão diplomática “camuflada” sob o discurso do combate ao narcotráfico - rebatizado por autoridades americanas como “narcoterrorismo”.

Na leitura do professor, o cerco busca forçar duas alternativas: abrir negociações para uma eventual saída de Maduro do poder ou pressionar por novas eleições. O bloqueio ao petróleo venezuelano, porém, ocupa uma zona cinzenta do ponto de vista jurídico.

“Não é um ato de guerra segundo o direito internacional, mas é claramente um ato belicoso, que tem inclinação para uma guerra”, diz. Também não se enquadra como sanção econômica tradicional, já que as sanções contra a Venezuela existem há quase duas décadas.

“Trata-se de pressão política e militar,” diz o professor a USP.

Na avaliação do professor Vinícius Vieira, especialista em Relações Internacionais da FAAP e da FGV, as ações dos Estados Unidos configuram uma estratégia de pressão ampliada — juridicamente controversa — que não pode ser tratada como uma sanção convencional.

“Trata-se de uma sanção econômica que, sim, viola o direito internacional, porque ocorre em águas territoriais venezuelanas. Não há uma declaração formal de guerra, mas é um ato preparatório que foge do que se espera no direito internacional”, afirma.

Marília Souza Pimenta, coordenadora de Relações Internacionais da FECAP e pesquisadora do NUPRI-USP, também concorda de que as declarações do presidente dos Estados Unidos não podem ser tratadas apenas como retórica política.

“Ainda que a ameaça também funcione como instrumento de pressão, ela é real o suficiente para ser considerada perigosa, especialmente porque vem acompanhada de ações materiais concretas, como o bloqueio e a apreensão de petroleiros”, afirma.

Do ponto de vista jurídico, Pimenta explica que interferir diretamente na navegação internacional se aproxima da caracterização de um bloqueio naval — historicamente entendido como ato de guerra.

Bloqueio naval e os possíveis impactos na região

Além do impacto humanitário, os especialistas alertam para riscos diretos à estabilidade na região.

“Na América Latina, sempre há o temor de que, se Trump faz isso com a Venezuela, pode fazer com qualquer outro país. E uma instabilidade regional é ruim, porque mudanças abruptas de regime tendem a gerar novos fluxos de refugiados e agravar crises econômicas”, afirma Vieira.

Intensificar os fluxos migratórios será apenas um dos problemas na região. Segundo Pimenta, uma crise em um dos países da América do Sul pode elevar custos em outros setores.

"Um ataque à Venezuela pode causar impactos, por exemplos, no setor energético e afetar cadeias globais de abastecimento, mesmo com a produção venezuelana hoje reduzida.

Villa também alerta que uma eventual intervenção na Venezuela pode abrir precedente para ações semelhantes em outros países latinos, sob justificativas como combate ao narcotráfico ou recuperação de interesses energéticos.

“Colômbia, México e países da América Central poderiam entrar nesse radar,” diz professor da USP.

(Da esquerda para a direita) O presidente do Panamá, José Raúl Mulino, o presidente da Argentina, Javier Milei, o presidente do Paraguai, Santiago Peña, o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, o presidente do Uruguai, Yamandú Orsi, e o ministro das Relações Exteriores da Bolívia, Fernando Aramayo, posam para uma foto oficial durante a Cúpula de Chefes de Estado do Mercosul, nas Cataratas do Iguaçu, em Foz do Iguaçu, no Paraná, Brasil, em 20 de dezembro de 2025 (EVARISTO SA / Colaborador/Getty Images)

Veja também: ‘Considerem o espaço aéreo da Venezuela fechado’, diz Trump

No mar ou no céu: a relação do bloqueio marítimo com o pedido de fechamento do espaço aéreo

O bloqueio marítimo traz também um paralelo ao pedido do Trump sobre o fechamento do espaço aéreo venezuelano, afirma Pimenta.

“Ambos representam mecanismos de estrangulamento soberano. A diferença é que o bloqueio marítimo produz efeitos imediatos, com contato direto entre forças armadas e embarcações civis, o que eleva o risco de incidentes não planejados”, diz a professora da Unesp.

O objetivo de ambas as ações do governo norte-americano, segundo o professor da USP, é desgastar não apenas o núcleo do governo, mas sobretudo a cúpula das Forças Armadas, pilar central da sustentação de Maduro.

“É um recado de que os Estados Unidos estão dispostos a usar todos os instrumentos necessários para agilizar uma saída do poder,” diz.

O professor da USP também afirma que além do componente geopolítico, existe um interesse econômico como variável decisiva. As recentes declarações do presidente Donald Trump reforçam, segundo ele, a centralidade do petróleo venezuelano — uma das maiores reservas do mundo — na estratégia americana.

“Não apenas para empresas como a Chevron, mas também porque Trump, antes de presidente, é empresário. No futuro, haveria interesse direto na exploração dessas reservas.”

O problema que começou em uma região traz um olhar global. O impacto do isolamento internacional de Caracas, segundo Vieira, pesa e muito neste contexto de pressão norte-americana.

“Maduro tenta se cercar de aliados, mas a Rússia não deve oferecer apoio militar direto, e a China evita se envolver. Há uma solidão política evidente, o que limita as opções do regime”, avalia.

Pela primeira vez em mais de um século, a estratégia de segurança nacional dos Estados Unidos recoloca a América Latina no centro das preocupações geopolíticas — movimento que remete à Doutrina Monroe e ao corolário Roosevelt, no início do século XX.

“Uma intervenção na Venezuela seria o primeiro passo concreto dessa nova visão dos Estados Unidos para a região”, afirma Villa.

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