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O renascimento dos dialetos na Itália

Carlo Cauti, de Roma A série de TV de maior sucesso na Itália é Gomorra, inspirada no famoso livro do jornalista Roberto Saviano, que conta os bastidores da máfia napolitana: a Camorra. Seria natural não fosse por um detalhe: Gomorra é inteiramente falada em napolitano. Quando é transmitida na televisão nacional, a série ganha legendas […]

CENA DE GOMORRA: a série falada em napolitano virou a mais assistida da Itália  / Divulgação

CENA DE GOMORRA: a série falada em napolitano virou a mais assistida da Itália / Divulgação

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Da Redação

Publicado em 8 de abril de 2017 às 07h59.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h38.

Carlo Cauti, de Roma

A série de TV de maior sucesso na Itália é Gomorra, inspirada no famoso livro do jornalista Roberto Saviano, que conta os bastidores da máfia napolitana: a Camorra. Seria natural não fosse por um detalhe: Gomorra é inteiramente falada em napolitano. Quando é transmitida na televisão nacional, a série ganha legendas em italiano.

O sucesso de Gomorra mostra, em primeiro lugar, que a máfia continua atraindo interesse, mas revela, principalmente, a ressurreição dos dialetos no País de Dante. No cinema, a coisa começou a ganhar tração há exatamente uma década, quando o comediante Marco Papa dublou uma versão de 300 inteiramente em um dialeto da região do Abruzzo. Mesmo com uma qualidade de som muito precária, a versão em dialeto, intitulada 300 & 1/2 – La vera storia di Camill Bill Capill (300 & 1/2 – A verdadeira história de Camilo Belos Cabelos), gerou furor na internet, tanto que muitos cinemas italianos projetaram a versão original e também a dublada.

É uma aventura que começou por brincadeira por Papa, cuja carreira artística não conseguia decolar, e que uma tarde, assistindo o filme na TV com amigos comediantes, tirou o som e começou a improvisar uma dublagem em dialeto, mudando completamente o roteiro. Entre gargalhadas e piadas sem fim um dos amigos percebeu o potencial da coisa e lhe propôs de gravar a redublagem em dialeto.

Papa acabou dublando em dialeto muitos outros filmes, conseguindo relançar sua carreira. Hoje ele está entre os comediantes mais bem pagos da Itália e tem uma intensa agenda de shows. Papa lançou um verdadeiro novo gênero cinematográfico: a redublagem dos filmes famosos em dialetos locais. Muitos outros comediantes da Sicília, da Toscana ou da Puglia copiaram sua ideia, conquistando também milhões de fãs. E logo muitos cantores começaram também a reinterpretar músicas famosas em dialeto.

A Itália vive um renascimento dessas línguas arcaicas, precedentes ao italiano oficial falado hoje. Na Itália, cada cidade medieval, cada vilarejo de pescadores, cada aldeia das montanhas tem sua própria igreja, seu próprio santo, seu próprio vinho e sua própria língua: o dialeto. Povoados localizados a distância de poucos quilômetros têm dialetos completamente diferentes, muitas vezes incompreensíveis. Segundo as estatísticas, na Itália existiriam cerca de 11.000 dialetos, mas apenas 8.000 municípios. Ou seja, até dentro da mesma área urbana, entre bairros distantes que um tempo foram vilas independentes, se falam línguas diferentes.

É uma tradição que vem do final do Império Romano, quando o latim perdeu sua função de língua universal, e para se proteger das invasões bárbaras cada cidade não somente se cercou de altos muros e de castelos mas elaborou seu próprio idioma, para dificultar a compreensão das comunicações pelos inimigos. Logo, essa língua autóctone se tornou uma questão de orgulho local.

Acontece por exemplo em Nápoles, onde o dialeto napolitiano sempre foi amorosamente preservado e promovido, especialmente graças a musicas românticas e irônicas. Ou na Sardenha, onde o fato de ser uma ilha permitiu um isolamento linguístico ainda maior, fazendo do dialeto local parte integrante da identidade. Tanto que a brigada de infantaria do Exercito Italiano formada exclusivamente por jovens da Sardenha, a “Sassari”, é a unica unidade das Forças Armadas que teve o privilégio de manter um hino cantado não em italiano, mas sim em sardo: o famoso Dimonios (Demônios).

A influência de dialetos importantes é tão forte que o iPhone oferece opções nesses idiomas e a Wikipedia tem seções escritas em todos os principais dialetos italianos, do vêneto até o romano. Há até um ranking sobre o “dialeto mais sensual”. Segundo a agência Speed Date, uma concorrente do Tinder, o dialeto mais sexy seria o toscano. Ou seja, quem fala na língua de Florença e redondezas tem mais chances de se dar bem.

Um dos mais conceituados e conhecidos linguistas do mundo, o italiano Tullio de Mauro, falecido há poucas semanas, sempre foi fascinado pela força penetrante dos dialetos na Itália, dedicando a esse assunto boa parte de seus estudos acadêmicos. Em uma de suas últimas entrevistas, concedida ao jornal “La Repubblica”, de Mauro lembrava como em 1974 a maioria dos italianos falava apenas dialeto, com pouco ou nenhum conhecimento do italiano “oficial”.

Hoje as estatísticas dizem que apenas 5,4% usa exclusivamente a língua local, especialmente idosos com baixo nível de educação formal. A escolarização de massa impôs o italiano para todos, mas também a televisão nacional, como a rede pública RAI, permitiram uma difusão capilar da língua. Entretanto, hoje o dado surpreendente é o aumento da porcentagem das pessoas que usam alternadamente o italiano e um dialeto: em 1955 eram 18% da população, hoje mais de 44,1%. Segundo muitos especialistas, esse renovado interesse pelos dialetos se tornou uma questão de identidade territorial, já que os mais atraídos pelos dialetos são os jovens, fascinados pela antiga língua de seus avós.

De Mauro definiu essa situação como “um marcado multilinguismo” presente na Itália, modificando o conceito de masse parlante do famoso linguista francês Ferdinand de Saussure. Em uma conversa, nem sempre de forma programada, os italianos trocam o dialeto com o italiano e vice-versa com muita facilidade. Os britânicos chamam essa atitude de code switching, ou code mixing. Uma ferramenta valiosa que acaba enriquecendo o discurso, melhorando a expressividade. E é também por isso que a Itália é famosa por sua expressividade verbal, por suas músicas, por sua literatura e por suas poesias.

Um povo em construção 

A demanda de produções em dialeto cresce, e o mercado, naturalmente, responde. Já existem cursos de dialeto on-line, livros que ensinam como aprender essas línguas arcaicas e até encontros organizados em castelos ou palácios históricos para conversar no dialeto da própria região. Alguns jardins de infância e escolas secundárias em Nápoles introduziram cursos sobre Napulitanamente (“a maneira napolitana”). Em Roma se estuda o Romanesco, o colorido vernáculo do grande poeta romano do século 19 Giuseppe Gioachino Belli.

O Reino da Itália foi proclamado em 1861; a República, apenas em 1946. O primeiro rei italiano vinha da região da Savóia e só falava francês. É verdade que o processo de formação da língua italiana começou com Dante em 1300, mas por muitos séculos ficou restrito à elite. Somente em meados de 1800 o romancista Alessandro Manzoni ajudou a espalhar o italiano como padrão linguístico comum para as massas. Mas até os anos 1960, a maioria das pessoas nas regiões mais pobres da Itália não tinham nenhuma ideia do que era o italiano. Os próprios imigrantes italianos que chegaram no Brasil no final do século 19 só falavam dialeto, e ainda hoje no estados do sul se preservam línguas como o “talian”, o dialeto do Vêneto, falado por 500.000 pessoas e ensinado em muitas escolas.

O atraso na criação do Estado-nação é uma das razões pelas quais os italianos têm um sentimento de nacionalismo aparentemente menos forte do que outros países como a França ou a Espanha. O que é importante é a ligação com a própria cidade, somente depois com o País. Tanto que um dos primeiros governantes da Itália, no século 19, Massimo d’Azeglio, logo apòs a unificação disse: “Agora que fizemos a Itália, precisamos fazer o povo italiano.” Um trabalho que continua em construção.

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