O que explica o triunfo de Fernández e Kirchner (e o vexame de Macri)
Enquanto se esperava uma disputa acirrada nas primárias das eleições na Argentina, o que se viu foi um recado duro dos eleitores para Mauricio Macri
Gabriela Ruic
Publicado em 14 de agosto de 2019 às 11h40.
Última atualização em 15 de agosto de 2019 às 10h32.
São Paulo – A semana começou com surpresa na Argentina . Num movimento extraordinário, Alberto Fernández e a ex-presidente, Cristina Kirchner (Frente de Todos), se consolidaram como a chapa favorita entre os argentinos, superando o atual mandatário, Mauricio Macri (Juntos por el Cambio), nas primárias realizadas no domingo, 11.
Até então, analistas esperavam uma disputa eleitoral apertada, sem um vencedor claro até o 2º turno. O cenário, no entanto, mudou drasticamente.
Segundo dados oficiais, o Frente de Todos conquistou 47,35% dos votos, enquanto a coalizão governista alcançou 32,22%. O sucesso da dupla peronista-kirchnerista foi tão expressivo, que agora se fala em uma vitória em 1º turno. A consultoria Eurásia, por exemplo, vê 90% de chances de Fernández e Kirchner se consagrarem eleitos no dia 27 de outubro, quando acontece a primeira fase da eleição presidencial.
“Nem os peronistas mais otimistas ou os macristas mais pessimistas esperavam uma diferença tão grande, e isso apesar dos números do Macri terem variado pouco na comparação com as primárias de 2015”, avaliou Caio Lopes, analista da consultoria de riscos políticos Control Risks, a EXAME.
Na ocasião, o empresário conquistou 34,33% dos votos em uma primária que contou com cerca de 75% de participação, similar ao que foi observado no último domingo. Macri virou o jogo e venceu, em 2º turno, com 51,34%. A diferença é que seu então rival, Daniel Scioli, em nenhum momento abriu uma vantagem tão expressiva quanto Fernández e Kirchner em 2019.
“Essa diferença de 15 pontos entre Fernandez e Macri é muito difícil de ser revertida e isso faz com que uma vitória em 1º turno seja perfeitamente plausível”, continuou Caio Lopes. Na Argentina, uma eleição em 1º turno exige do candidato 45% dos votos ou 40% e uma diferença de ao menos dez pontos. No momento, Fernández e Kirchner reúnem os números para qualquer um destes cenários.
O que explica essa vitória avassaladora? O sucesso da estratégia de posicionar Fernández como cabeça da chapa, numa tentativa de balancear o populismo de Cristina, que disputa como vice-presidente, e neutralizar os efeitos das investigações de corrupção contra ela. Embora próximo do kirchnerismo, Fernández sempre foi um crítico das políticas mais radicais dos Kirchner, o que reforça o seu perfil moderado. Além disso, há a economia, é claro.
Ex-prefeito de Buenos Aires, Macri assumiu a presidência em 2015 com a promessa de tirar os argentinos do buraco. O problema é que, desde então, a economia da Argentina só piorou e o país agora enfrenta seu terceiro ano consecutivo em recessão.
Em 2019, mostra o Fundo Monetário Internacional (FMI), a queda no Produto Interno Bruto (PIB) é prevista para 1,3% e a inflação chegou a 55,8% no acumulado dos últimos doze meses. O desemprego no primeiro semestre saltou de 9,1% para 10,1% e a pobreza aumentou, atingindo 32% da população, de acordo com os dados oficiais mais recentes.
O caos econômico, evidentemente, não passou despercebido dos argentinos e impactou o desempenho de Macri. Em 2015, sua chegada à Presidência, 38% das pessoas acreditavam que a economia estava melhorando. A maré virou, e muito: hoje, 62% avaliam que a economia está piorando. Os números são da consultoria Gallup, que explica que a percentagem de pessimistas é um recorde para o país e só aumentou nos últimos quatro anos.
Nesse sentido, o resultado de domingo mostra que os argentinos estão insatisfeitos com os efeitos das políticas econômicas de Macri e estão saudosistas, avalia a cientista política Denilde Holzhacker, professora de Relações Internacionais da ESPM. “É verdade que, durante a presidência da Cristina, o desempenho econômico dava sinais negativos, mas há uma percepção positiva dos argentinos sobre o governo do seu marido, Néstor Kirchner”.
Ele assumiu a presidência em 2003 e encontrou uma Argentina que vivia os efeitos da maior moratória da dívida externa da sua história, em 2001, declarada pelo então presidente Fernando De La Rua, que viria a renunciar ao cargo no final daquele ano. Nos anos seguintes da posse de Néstor, o crescimento econômico ficou na casa dos 8%. Com a sua morte, em 2010, Cristina se tornou a sucessora natural.
“Néstor conseguiu reverter o cenário econômico com a ajuda do boom das commodities. Era um governo populista, mas que conseguiu bons resultados”, avaliou Denilde, “e é essa a lembrança: é possível um peronismo defensor da população, dos mais pobres, e ainda conseguir realizar uma retomada”.
Mas nem tudo são flores para os favoritos, Fernández e Kirchner, e os mercados deixaram isso evidente na segunda-feira, quando a notícia da sua vitória avassaladora foi sentida. A bolsa argentina perdeu 23,7 bilhões de dólares e o peso fechou em queda de 16,96% a 53 por dólar. E esta pode ser a principal cartada de Macri na tentativa de reverter o resultado, embora esta seja uma tarefa difícil a essa altura.
“Macri precisa demonstrar o quanto a expectativa de retorno dessa visão de esquerda pode trazer ainda mais instabilidades e mostrar a fragilidade da campanha deles”, notou Denilde, “além disso, precisa trabalhar para trazer mais eleitores para as urnas, ainda que a participação nas primárias tenha sido alta“.
Nesta quarta-feira, Macri deixou claro que não irá cair sem brigar e anunciou um pacote econômico para tentar aliviar a sua situação ante a população. Entre as medidas,o aumento do salário mínimo e o congelamento do preço da nafta (como chamam a gasolina na Argentina) por 90 dias. Se tudo isso irá surtir efeitos na sua popularidade, o mundo só saberá no dia 27 de outubro, quando acontece o 1º turno das eleições na Argentina.