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O isolamento dos democratas nos Estados Unidos

Mark Lilla coloca o dedo na ferida ao criticar o partido, e traz à tona novos elementos para entender a realidade política americana

Hillary e Sanders: democratas que não conquistaram a presidência, em 2016 (Darren McCollester/Getty Images)

Hillary e Sanders: democratas que não conquistaram a presidência, em 2016 (Darren McCollester/Getty Images)

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Da Redação

Publicado em 18 de novembro de 2017 às 08h33.

Última atualização em 18 de novembro de 2017 às 16h35.

The Once and Future Liberal: After Identidy Politics

Autor: Mark Lilla

Editora: Harper

Páginas: 160

Preço: R$ 78,59

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Passado um ano da vitória do republicano Donald Trump na eleição presidencial dos Estados Unidos, a liderança do Partido Democrata continua evitando fazer o mea-culpa para uma derrota que parecia improvável até o dia da eleição. À exceção do livro da candidata Hillary Clinton, What happened (“O que aconteceu”, em tradução livre) – no qual atribui sua derrota ao FBI, à influência de hackers russos e a um ou outro deslize de campanha –, não houve uma autocrítica mais abrangente que explique como um candidato sem experiência política, que passou a campanha repetindo mensagens racistas, misóginas e preconceituosas, conseguiu arregimentar apoio de metade do eleitorado americano, vencendo inclusive em redutos democratas.

Coube a um dos mais respeitados historiadores americanos, Mark Lilla – catedrático da Universidade Colúmbia, em Nova York –, colocar o dedo na ferida com um livro crítico aos democratas, mas que traz à tona novos elementos para entender a realidade política americana. Em The Once and Future Liberal: After Identidy Politics (“O liberal do passado e do futuro: depois da política de identidade”, em tradução livre), Lilla deixa de lado o fenômeno Trump e aponta a principal razão para o resultado da eleição: a perda de conexão do Partido Democrata com a sociedade americana como um todo, um processo iniciado nos anos 80, com a eleição do republicano Ronald Reagan à presidência. Esse distanciamento, segundo ele, foi aprofundando ao longo do tempo com a opção democrata pela defesa de temas de identidade, ligados a minorias (como raça, gênero e orientação sexual), em detrimento da elaboração de políticas públicas mais amplas.

De início, é preciso lembrar que a palavra “liberal”, que aparece no título do livro, tem conotações diferentes nos Estados Unidos e no Brasil. Enquanto aqui é normalmente associada ao conceito do liberalismo econômico – que defende a livre iniciativa e a economia de mercado –, nos EUA o termo se refere mais a temas sociais. Portanto, ser liberal nos Estados Unidos equivale a estar à esquerda do espectro político, em oposição à direita conservadora e republicana.

Autor de várias obras sobre filosofia política (incluindo “A mente imprudente”, recém-lançado no Brasil pela Editora Record), Lilla se autodenomina liberal, o que lhe dá autoridade para abordar o assunto. Ele já havia causado polêmica no ano passado, ao assinar um artigo publicado pelo jornal The New York Times dez dias após a eleição, no qual apresentou de forma resumida sua argumentação. No artigo, ele sustenta que a derrota para Trump se deveu à fixação democrata pela questão da diversidade (movimento feminista, LGBT, comunidade negra, etc). Segundo Lilla, o Partido Democrata se tornou um mero porta-voz de grupos minoritários, que sequer conversam entre si. “Isso produziu uma geração de liberais e progressistas narcisisticamente inconscientes das condições de vida das pessoas de fora de seu autointitulado grupo”, escreveu.

Na época, Lilla foi tachado de reacionário pelos democratas, para quem o autor se limitou a reproduzir a crítica recorrente da direita americana ao partido. Foi então que ele decidiu escrever um livro para desenvolver sua linha de raciocínio e contextualizar as referências históricas citadas no artigo. O resultado é uma obra essencial para entender a transformação da sociedade americana nas últimas décadas.

Lilla argumenta que a vitória de Reagan — um conservador que defendia o empreendedorismo, o individualismo e o Estado mínimo –, na eleição de 1980, rompeu quatro décadas de políticas de proteção social, presença estatal e de populismo econômico do New Deal, estabelecido pelo presidente democrata Franklin Delano Roosevelt depois do fim da Segunda Guerra. Os democratas, segundo ele, não souberam enxergar essa guinada conservadora como um sinal de desgaste do modelo econômico e social baseado no fortalecimento da cidadania que vigorava desde o pós-Guerra. Na prática, o reaganismo trouxe uma nova perspectiva, na qual os desejos e necessidades dos indivíduos ganharam prioridade sobre os da sociedade. Lilla observa que essa revolução subliminar fez mais para moldar a política americana nas últimas décadas do que qualquer evento histórico em particular.

Assim, aquela geração de democratas que, entre o pós-Guerra e a eleição de Reagan, viu florescer grandes avanços sociais, como o movimento dos direitos civis, o feminismo e a luta pela causa gay, reagiu ao modelo conservador proposto por Reagan com o que ele qualifica de “liberalismo de identidade” – espécie de aprofundamento dessas lutas, mas restritas ao universo de cada minoria. Embora reconheça os avanços obtidos por esses grupos, Lilla diz, com ironia, que na prática os liberais aderiram a um individualismo semelhante ao de Reagan, “só que à esquerda”. Para exemplificar essa transformação, Lilla compara os sites dos Partido Republicano e do Partido Democrata. No dos republicanos, a homepage traz em destaque o link para um documento intitulado “Princípios para uma Renovação Americana”, com posições referentes a 11 temas, de Constituição à imigração. No site democrata não há nada parecido. O que se destaca é uma lista de links intitulada “Pessoas”. Cada link leva a uma página dedicada a um grupo de identidade diferente: mulheres, hispânicos, comunidade LGBT, negros e etc. São 17 grupos com 17 mensagens diferentes. “Parece que o internauta está navegando no site do governo do Líbano, e não no de um partido com uma visão do futuro dos Estados Unidos”, escreveu.

Cidadania esquecida

O espaço onde esses movimentos de identidade ganharam espaço se deu principalmente nas universidades, tradicional reduto liberal. Lilla vai além e identifica criticamente as universidades americanas como percursoras do politicamente correto dos dias de hoje. “O problema é que as universidades deixaram de ensinar a noção de cidadania, de objetivos comuns que devemos partilhar como sociedade”, escreveu. Isso explica, segundo ele, o fosso entre o Partido Democrata e boa parte da sociedade americana, em especial a parcela indiferente às causas de minorias, como a classe média branca e a população rural. “O liberalismo de identidade baniu o ‘nós’ do discurso político”, adverte.

É interessante notar como esse distanciamento cresceu de forma dramática a partir de 2010, quando os republicanos passaram a dominar a Câmara dos Deputados e o Senado em pleno governo de Barack Obama. De lá para cá, dois terços das assembleias estaduais e a maioria dos governos estaduais também passaram a ser controlados pelos republicanos, mostrando que o drama democrata vai além da vitória, ainda que apertada, do errático Trump.

Embora consiga desenvolver com clareza e argumentos a identificação desse distanciamento, o livro decepciona ao apontar os possíveis caminhos para os democratas recuperarem o espaço perdido. Lilla cita a necessidade óbvia de elaborar uma agenda que atenda os interesses da sociedade, e não apenas de minorias. Outra prioridade é a eleição de candidatos do partido em eleições em todos os níveis – como fizeram os republicanos. Segundo ele, pouco adianta os democratas reclamarem que direitos adquiridos nos anos 60 estão sob ameaça em regiões controladas pelo conservadorismo republicano. “Em vez de fazer seminário na universidade ou organizar protestos, precisamos eleger os candidatos democratas no Congresso, nas prefeituras e nos governos estaduais, só assim o partido terá força política”, assegura. Segundo ele, o momento de virada é agora, com a direita republicana demonstrando sinais de divisão diante do precoce desgaste do governo Trump.

Outra falha do autor foi não ter aprofundado uma reflexão sobre o desenvolvimento do que Lilla chamou de “modelo de identidade de Facebook” – o culto da identidade pessoal que vem avançando nas universidades americanas desde a era Reagan. Há um paralelo interessante a explorar com a forma de comportamento da era digital, com cada pessoa mergulhada em seu smartphone e interagindo apenas com sua bolha ou tribo pelas redes sociais. O autor, porém, não avança nessa correlação. Afinal, as ferramentas desenvolvidas pelo Vale do Silício não deixam de refletir o liberalismo de identidade, o mesmo que está levando o Partido Democrata ao ocaso, como o livro de Lilla sentencia.

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