DAVID CAMERON: o primeiro-ministro britânico tenta se defender da acusação de hipocrisia / Stefan Wermuth/Reuters
Da Redação
Publicado em 18 de abril de 2016 às 12h06.
Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h38.
Em um exaltado debate na Câmara dos Comuns na segunda-feira 11 de abril, o deputado trabalhista Dennis Skinner, de 84 anos, fulminou o primeiro-ministro David Cameron com o apelido “Dave Vigarista” (Dodgy Dave) por ter lucrado com investimentos de seu pai em empresas offshore, conforme revelado pelos Panama Papers. O presidente da Câmara, John Bercow, interveio, desempenhando sua função de bedel da Casa: ou o colega retirava o que tinha dito, ou seria conduzido para fora do recinto. No Parlamento britânico, é proibido acusar colegas de desonestidade, covardia, vícios e outras fraquezas humanas. Skinner recusou-se a voltar atrás e retirou-se.
A cena coroou o inferno astral de Cameron. Seu gabinete padece de profundas divisões por causa da permanência ou não da Inglaterra na União Europeia, uma crise na indústria siderúrgica e um recuo na decisão de cortar benefícios sociais, entre outras agruras. Agora, com sua inclusão na lista dos beneficiários das contas dos Panama Papers, o primeiro-ministro britânico tenta se defender da acusação de hipocrisia.
Cameron tem se apresentado como paladino do combate à lavagem de dinheiro e à evasão fiscal e afirma que seu governo conseguiu recuperar, desde 2010, 2 bilhões de libras (10 bilhões de reais) em impostos sobre recursos que estavam em offshores. Londres será sede de uma reunião da cúpula mundial contra a corrupção no dia 15 de maio.
Em 1979, em seu primeiro mês de governo, a então primeira-ministra, Margaret Thatcher, deu início à revolução liberal que arrancaria a Grã-Bretanha do semissocialismo para o capitalismo avançado, abolindo os controles e a taxação sobre a saída de qualquer montante de capital do país. Ian Cameron, pai do atual primeiro-ministro, aproveitou para deixar o trabalho de corretor da Bolsa de Valores de Londres e abrir fundos de investimento em paraísos fiscais. Os Panama Papers revelaram que uma dessas empresas, Blairmore Holdings Inc., detém hoje 25 milhões de libras (125 milhões de reais). Ian Cameron criou empresas também na Ilha de Jersey e em Genebra. Segundo documentos obtidos pelo jornal The Guardian, seu fundo em Jersey, chamado International Equity Growth, valia 9 milhões de libras (45 milhões de reais) em 2005.
Ian morreu no final de 2010, e seu testamento registrava um patrimônio de 2,74 milhões de libras (13,7 milhões de reais), das quais David herdou 300.000 libras (1,5 milhão de reais). A fortuna no exterior não entrou no livro.
A reação de Downing Street
Inicialmente, Downing Street 10, o gabinete do primeiro-ministro, reagiu mal às revelações, afirmando tratar-se de um tema “privado”. Com o aumento das pressões, Cameron concedeu uma entrevista ao programa ITV News na qual reconhece que têm sido “dias difíceis” e afirma que ele e sua mulher, Samantha, venderam em 2010 cotas da Blairmore, registraram lucro de 19.000 libras (95.0000 reais) e pagaram os impostos devidos. Fez isso antes de assumir o governo, “porque não queria que alguém dissesse que tinha outras agendas ou interesses ocultos”. Bem-vindo à escala dos escândalos britânicos. Um verdadeiro tédio, dinheiro de pinga para a plateia brasileira, acostumada com bilhões.
“Não tenho ações, trusts ou fundos offshore, nada desse tipo”, garantiu Cameron. “Tenho um salário de primeiro-ministro e algumas economias, sobre as quais recebo juros, e uma casa, onde morávamos, que alugamos enquanto estamos vivendo em Downing Street. Isso é tudo o que eu tenho.” Ele acrescentou que nunca escondeu que vinha de uma família rica e que seu pai foi um homem exemplar.
Mesmo assim, Cameron anunciou no Parlamento um pacote de medidas para aumentar o controle sobre as atividades financeiras offshore. No debate de segunda-feira, Cameron disse que seu governo apresentará um projeto de lei para tornar crime as empresas não impedirem seus funcionários de instruir os clientes sobre métodos de sonegar impostos. Ele afirmou também que a maioria dos territórios ultramarinos britânicos — paraísos fiscais que abrigam contas offshore e empresas de prateleiras usadas para sonegar impostos e esconder riquezas — concordou em trocar informações entre si, criar registros centralizados sobre os verdadeiros donos desses recursos e enviar esses dados aos órgãos de fiscalização em Londres. Anguilla e Guernsey ficaram de fora. Cameron disse esperar que elas se unam mais adiante ao esquema, sem explicar o motivo da exclusão.
“É correto endurecer a lei, mudar a cultura em torno do investimento, banir ainda mais a sonegação de impostos e desencorajar a evasão fiscal agressiva”, discursou ele no Parlamento. “Mas, ao fazer isso, devemos diferenciar os esquemas desenhados para reduzir impostos daqueles que encorajam investimento. Aspiração e geração de riqueza não são palavrões, mas os motores do crescimento e da prosperidade no nosso país, e temos sempre de apoiar os que querem ter ações e fazer investimentos para sustentar sua família”, pregou o líder conservador.
As medidas atraíram críticas de todos os lados. Os que defendem controles mais rigorosos, representados no Parlamento pelo Partido Trabalhista e fora dele por organizações não governamentais, exigem que essas informações sejam tornadas públicas. O mercado teme que a regulação mais estrita afugente os capitais e tire da City londrina a posição de centro financeiro mundial.
“As medidas são uma distração do que realmente precisa ser feito, que é tornar públicos todos os dados a respeito dessas contas e empresas offshore”, disse Robert Palmer, diretor da Global Witness, ONG que monitora a corrupção e a lavagem de dinheiro. “A lei permite que bandidos e funcionários corruptos se escondam por trás do segredo de empresas cujos proprietários são anônimos”, continuou Palmer, especialista em políticas públicas. “No mundo todo, as leis permitem que empresas sejam abertas com conselhos e proprietários ‘no papel’, que na verdade estão só servindo de laranja para quem manda nos bastidores.”
Palmer alerta que o problema não está só nas offshores. Segundo ele, os Estados Unidos são “o lugar mais fácil do mundo para abrir uma empresa com proprietários anônimos”. A Global Witness enviou em janeiro um investigador a 13 escritórios de advocacia de Nova York, disfarçado de ministro africano tentando trazer ilegalmente dinheiro para comprar uma casa, um iate e um avião nos EUA. Segundo Palmer, 12 dos 13 advogados deram sugestões de como entrar com o dinheiro. Desses, 11 propuseram abrir empresas de prateleira nos EUA para encobrir a identidade do “ministro”.
Do outro lado do balcão está Jason Russell, diretor do Tax Experts, escritório de planejamento tributário em Cardiff, no País de Gales. “Qualquer coisa que tornar a City menos atraente em termos tributários levará à diminuição dos negócios”, diz Russell. “As pessoas querem privacidade, eficiência tributária. Se não tivessem isso, não procurariam Londres.” O especialista alerta também que pelo menos 60% dos imóveis comerciais na City são propriedade de fundos e empresas offshore. “Se forem taxar isso, haverá uma queda brutal no valor desses imóveis.”
Russell argumenta que nunca foi ilegal ter contas e empresas offshore. “A única coisa ilegal é ter uma receita no Reino Unido e não declará-la ao HMRC [o Fisco britânico]. Muitas pessoas fazem isso, e é sonegação de impostos.” A atratividade das empresas offshore não está só na isenção de impostos. Há outros motivos para criar empresas no Caribe, segundo o especialista, como a maior facilidade de fazer negócios, com menos regulação e burocracia; o desejo de esconder suas atividades dos concorrentes ou mesmo de manter sua riqueza fora da vista dos outros, para se proteger. Russell lembra que, pagando uma taxa de 1 ou 2 libras na Grã-Bretanha, pode-se ter acesso às informações das empresas e do patrimônio das pessoas dentro do país.
O que especialistas como ele fazem é “criar uma estrutura para que o beneficiário ou dono da empresa não seja considerado você, que está baseado no Reino Unido”. Ou seja, uma barreira de proteção entre a conta e o contribuinte britânico. O tributarista se queixa de que a mídia e o cidadão médio confundem planejamento tributário com sonegação, lavagem de dinheiro e corrupção. “O que Cameron fez é a coisa mais entediante e mundana: quando retirou o lucro, pagou o imposto no Reino Unido”, observa Russell. “As pessoas fazem isso todos os dias.”
(Lourival Sant’Anna)