O heroísmo e os arrependimentos de John McCain
Em autobiografia, John McCain, um dos principais líderes republicanos e ex-candidato à presidência dos EUA, faz reflexão sobre ações militares americanas
Da Redação
Publicado em 14 de julho de 2018 às 08h53.
Última atualização em 14 de julho de 2018 às 09h22.
The Restless Wave: Good Times, Just Causes, Great Fights, and Other Appreciations
John McCain
Editora Simon & Schuster
416 páginas
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Um distinto senhor de cabeleira branca, no auge de seus 81 anos, se dirige a uma clínica médica para saber os resultados dos seus exames, motivados por pontadas de dores na cabeça. É um glioblastoma, crava o médico, o tipo mais agressivo de tumor cerebral. Tempo médio de sobrevida de 12 a 15 meses. A cena aconteceu no ano passado e foi protagonizada por um dos mais antigos senadores do Partido Republicano dos Estados Unidos : John McCain.
Enquanto procura prolongar o tempo de vida, ele se dedica a recordar sua jornada atribulada de político e militar, envolvido constantemente em disputas, sem conseguir evitar um sentimento ambíguo de nostalgia e arrependimento. E escreve uma autobiografia de grande impacto, um verdadeiro banho de honestidade e receita de vida. The Restless Wave: Good Times, Just Causes, Great Fights, and Other Appreciations (“A onda incansável: bons tempos, causas justas, grandes lutas e outras apreciações”, numa tradução livre) foi publicado em maio deste ano nos Estados Unidos (ainda inédito no Brasil) e já promete ser um dos livros mais vendidos de 2018.
Além de contar a trajetória de um homem vitorioso nas suas atividades, o livro revela fatos importantes de alguns dos acontecimentos mais significativos da política internacional dos Estados Unidos. Fatos que afetaram o equilíbrio dinâmico do planeta, influenciando de maneira significativa os rumos das nossas vidas — a maior parte deles relacionados às intervenções militares americanas ocorridas nos últimos 30 anos. John McCain teve participação direta em todas.
McCain é um típico americano conservador, patriota e imbuído dos mais sólidos sentimentos democráticos, ainda que sejam restritos à sua maneira particular de entender a democracia. É um “americanista”, admirador dos adversários, ao mesmo tempo sentimental, rígido e partidário de uma noção humanista relativizada pelos interesses do Estado. É enfim aquele típico norte-americano que defende a idolatria das instituições e que acredita, segundo a definição do filósofo Mangabeira Unger, brasileiro e professor em Harvard, que os “Estados Unidos descobriram, no momento de sua formação, a fórmula secreta de uma sociedade livre. Ou o resto do mundo aceita essa fórmula ou vegeta no despotismo e na pobreza”. Em outras palavras, McCain é um árduo defensor do Estado, mas esquece o povo que o habita.
E foi em nome desse Estado que ele atuou politica e militarmente a maior parte da sua vida. Nascido em uma família de tradição militar, McCain começou sua carreira na guerra do Vietnã, como piloto da Marinha, e hoje cumpre o sexto mandado como senador republicano. Ele defende uma atuação política bipartidária, favorável a uma negociação entre os dois partidos e, basicamente, contra seu desafeto, o presidente Donald Trump, com quem vive às turras, trocando insultos públicos. Seu principal objetivo hoje é impedir a destruição do programa Obamacare, que garante assistência hospitalar à população de baixa renda e aos idosos, e que tem sido combatido por Trump por meio de campanhas junto ao Congresso. É um objetivo humanitário que sobreveio nessa reta final da vida de McCain. Mas nem sempre foi assim.
O senador é conhecido por ser um maverick, ou seja, alguém com ideias próprias, determinado e que dificilmente se deixa convencer por argumentos opostos. Em 2008, depois de galgar todos os degraus dentro do Partido Republicano, enfrentou o democrata Barak Obama nas eleições presidenciais. Foi então que percebeu suas limitações, determinadas por ideias conservadoras e militaristas.
Um dos motivos da sua derrota nas urnas foi o fato de ter defendido a intervenção militar no Iraque, ainda na era Bush. “Era preciso defender os nobres valores democráticos contra a opressão de um tirano”, escreve ele no livro, justificando a guerra, para logo em seguida deixar escapar um tom de arrependimento. “Defendi a invasão, mas a culpa foi da inteligência, que apontou, erroneamente, a existência de armas de destruição em massa”. McCain se contradiz o tempo todo ao longo do livro, mas num esforço heróico de se retratar, se justificar e, principalmente, de mostrar seu tardios sentimentos humanitários.
Um deles é o caso que envolveu os escândalos dos interrogatórios que passaram a ser praticados depois do atentado de 11 de setembro, conhecidos por adotar a chamada “técnica aprimorada de interrogatório” (enhanced interrogation technique), um elaborado eufemismo para tortura. São vários os casos que McCain denuncia no livro, e o mais eloquente é o da prisão de Abu Ghraib.
Em 2004, a rede de televisão CBS divulgou fotos chocantes, detalhadas, sem restrição, das torturas praticadas pela guarda americana no cárcere. McCain garante que não conhecia, até então, esses métodos de interrogatório, mas se chocou com o que viu e iniciou uma campanha contra o então secretário da defesa Donald Rumsfeld, que se defendia alegando serem fotos falsas. McCain fez ataques constantes a Rumsfeld no Congresso e não sossegou até que ele fosse demitido.
Há um bom motivo para McCain se opor a métodos pouco convencionais de interrogatório. Em outubro de 1967, na Guerra do Vietnã, McCain pilotava um avião Skyhawk com a missão de bombardear redutos norte-vietnamitas. Em meio à ação, ele foi abatido por um míssil quando sobrevoava a cidade de Hanói. McCain conseguiu se ejetar da cabine e, com pernas e braços fraturados, foi feito prisioneiro. Durante mais de cinco anos permaneceu preso em péssimas condições, sofrendo as mais variadas torturas e permanecendo em solitária por dois anos. Só não foi morto porque os vietnamitas descobriram que seu pai era um importante almirante da Marinha e, com isso, barganharam a sua libertação.
Ter conhecimento de que seus conterrâneos estavam usando a tortura nos interrogatórios provocou uma solidariedade incondicional no velho senador. “Meus carcereiros me trataram de maneira muito mais humana do que fizeram os soldados americanos em Abu Ghraib”, escreve ele. Alguns meses depois de publicar o livro, McCain empreendeu uma nova campanha, desta vez contra a nomeação de Gina Haspel como diretora da CIA, a agência de inteligência americana, no lugar de Mike Pompeo, que havia sido indicado por Trump para a Secretaria de Estado.
McCain se opôs à nomeação porque, apesar de Haspel ser uma militante feminista, dirigiu uma prisão secreta na Tailândia onde implantou as tais técnicas aprimoradas de interrogatório, inclusive aquela que McCain considera a mais cruel e dolorosa, a simulação de afogamento, que frequentemente leva a vítima à morte ou deixa sequelas irreparáveis. Apesar de seus esforços, McCain não teve sucesso em convencer seus colegas de Congresso e a nomeação de Haspel foi aprovada, inclusive pelos democratas. Trump aproveitou o embalo e deu uma alfinetada em McCain. “Ele não é um herói. Heróis são os que escapam da prisão”, disse o presidente. Ninguém ameniza palavras com o velho e bom McCain, nem mesmo em sua agonia.
Equilibrista
A verdade é que – sendo um conservador, contra o aborto, a legalização da maconha, o casamento gay e outras causas progressistas – McCain recebe o apoio do eleitorado conservador. Mas este mesmo eleitorado também fica enfurecido com os arroubos sentimentais, o arrependimento e as atitudes menos conservadoras do experiente senador. Não tem sido fácil para ele, nesses últimos momentos de vida, ouvir críticas contundentes nas redes sociais, do tipo: “renuncie ao cargo e vá se tratar em casa”.
Mas ele é um lutador: não há uma palavra durante todo o livro em referência à sua doença. McCain escreve como se estivesse pronto para concorrer novamente à presidência, mas com uma diferença: o reconhecimento de que não é mais possível abusar do poder norte-americano junto à autonomia de outros países. “Nós cometemos muitos erros. Nem sempre usamos nosso poder com sabedoria. Abusamos e fomos arrogantes, procurando oferecer benefícios à humanidade baseados numa causa que sustentamos com nosso poder. Eu servi a essa causa durante toda a minha vida. Hoje reconheço meus erros e estou pronto para agir de maneira diferente”, escreve ele.
E nada mais natural do que ele abordar um ponto nevrálgico de sua atuação na esfera militar: a Primavera Árabe. McCain reconstrói meticulosamente o processo que resultou nas sangrentas batalhas ocorridas principalmente no Egito, na Líbia e na Síria, a começar pela auto-imolação do um vendedor de verduras tunisiano que ateou fogo em si mesmo para protestar contra a fiscalização do governo, cuja burocracia não lhe devolvia uma balança, seu instrumento de trabalho. Uma reação em cadeia fez eclodir manifestações sangrentas no mundo árabe, mas nada aconteceria de tão grave se não fosse pelo apoio dos americanos aos rebeldes, a começar pela morte ultrajante de Muammar Gaddafi, o déspota da Líbia.
McCain confessa a participação decisiva do comitê americano (do qual fez parte) que esteve na região do conflito para negociar com os rebeldes e garantir a eles apoio militar, financeiro e bélico. “Nós achávamos que tínhamos uma boa causa, a democracia e o fim do despotismo, mas não esperávamos que esse processo fosse provocar a quantidade de mortes que ocorreram e que ainda podem ocorrer, principalmente na população civil”, escreve ele.
Por mais bem intencionada que seja a sua autobiografia, recheadas de confissões de erros e abuso de poder, não é possível deixar de notar um aspecto intrigante para nós brasileiros e sul-americanos em geral. Não há sequer uma menção à política internacional dos Estados Unidos na América do Sul — apesar de McCain mencionar a relação dos americanos em todos os continentes, inclusive o africano. A única vez em que ele se pronunciou a respeito foi durante sua campanha para a presidência quando, questionado por jornalistas, afirmou não ter a menor intenção de conversar com Evo Morales, presidente da Bolívia, e Hugo Chávez, então presidente da Venezuela, morto em 2013. O livro seria uma boa oportunidade de reparar o descaso e a falta de atenção com parceiros históricos. Esse arrependimento, o velho senador fica nos devendo.