Francis J. Kelly, chefe de Relações com o Governo e Assuntos Públicos para as Américas do Deutsche Bank: "acreditamos que tudo será buscado de forma muito diplomática com o Brasil" (Alejandro Cegerra/Bloomberg/Getty Images)
Carolina Riveira
Publicado em 4 de dezembro de 2020 às 08h42.
Última atualização em 4 de dezembro de 2020 às 09h01.
A eleição de Joe Biden nos Estados Unidos levantou em analistas e empresários brasileiros uma pergunta óbvia: o Brasil pode sair prejudicado, após quatro anos de elogios rasgados do presidente Jair Bolsonaro a Donald Trump? Não é o que acredita o americano Francis J. Kelly, chefe de Relações com o Governo e Assuntos Públicos para as Américas do Norte e Latina do banco alemão Deutsche Bank.
Para o executivo, que conversa com frequência com políticos e gestores em Washington, a gestão Biden terá grande foco em relações internacionais -- dada a experiência do próprio Biden com o assunto -- e não buscará um confronto com o Brasil. Amazônia, acusações de fraude na eleição americana e "pólvora" à parte. "Estávamos muito acostumados ao Trump, que é muito decidido, se move rapidamente, muda políticas e de repente você está 'Uau, o que acabou de acontecer?'. Não deve ser esse o caso com Biden", diz.
Kelly conversou com a EXAME minutos depois de o Dow Jones ter superado os 30.000 pontos pela primeira vez na história, no último mês de novembro. O motivo, entre outros, era a nomeação de Janet Yellen, ex-presidente do Fed, para secretária do Tesouro. A equipe de Biden é um bom resumo do que Kelly espera dos próximos quatro anos. "Os mercados estão vendo previsibilidade", diz. "Havia uma preocupação com o crescimento da ala progressista e mais à esquerda no Partido Democrata. Biden não parece estar abraçando esse grupo."
A previsibilidade não impede o analista de avaliar que algumas mudanças serão "dramáticas". Mas uma coisa não deve mudar tanto: as políticas com relação à China. "O presidente eleito entende que o mundo mudou [desde o governo Obama] e a China é um lugar diferente agora. Acho que o que se verá com a China é uma continuação de negociações comerciais muito duras e até do que vimos sob Trump", diz.
Para o Brasil, o que isso significa? Kelly aposta em políticas americanas para se aproximar do Ocidente, sobretudo da União Europeia, mas também do Brasil. "Todo mundo quer ser amigo do Brasil", brinca. Kelly falou sobre as oportunidades para empresas brasileiras sob Biden, sua aposta em um "renascimento da globalização", o desafio da imigração nos próximos anos e a crise da desigualdade no pós-pandemia. Leia abaixo os principais trechos da entrevista.
Após a vitória do presidente eleito Joe Biden e dada a relação anterior próxima do presidente brasileiro Jair Bolsonaro com o presidente Donald Trump, como o senhor vê a relação entre os dois governos a partir de agora?
Eu não posso afirmar como vai ser a relação pessoal deles. Mas uma coisa importante é que Joe Biden é muito experiente em relações internacionais e política externa. Outro dia mesmo eu estava lendo sobre o papel crítico que ele desempenhou em uma reunião muito importante com líderes de Israel há 30 anos. Digo isso pelo seguinte: ele faz isso há bastante tempo. E de muitas formas é diferente do presidente Trump, busca menos o confronto, é mais diplomático. Estávamos muito acostumados ao Trump, que é muito decidido, se move rapidamente, muda políticas e de repente você está 'Uau, o que acabou de acontecer?'. Não deve ser esse o caso com Biden. Na relação com o Brasil, não acredito que vão haver movimentos repentinos de nenhum dos dois lados.
Recentemente o presidente Jair Bolsonaro respondeu a uma declaração de Biden sobre a Amazônia afirmando que "quando acaba a saliva, tem que ter pólvora". O senhor avalia que as questões climáticas podem interferir nas relações entre os dois países -- ou ao menos ser um tema de debate persistente? E sobretudo em meio à escolha de John Kerry para liderar a área ambiental.
Eu vou ser contrário ao que vejo muitas pessoas dizendo. Não acredito que isso vai ser necessariamente um problema [a questão climática no Brasil]. Eu conversei com John Kerry no dia anterior à eleição e conversamos sobre as mudanças climáticas. O que é muito importante de ver é que temos o mais alto diplomata do governo anterior [Kerry era secretário de Estado no governo Obama] nesse papel de 'czar do clima'. Ou seja, vai haver muita diplomacia. Nós acreditamos que essa não vai ser uma administração que vai espalhar terror... Essa era uma estratégia do presidente Trump, mas não deve ser uma estratégia do governo Biden.
O que foi interessante na conversa com Kerry -- e não falamos sobre o Brasil, para ser claro -- é a visão de que os países têm de trabalhar juntos e trazer forças do mercado para auxiliar nos avanços sobre as questões climáticas. Foi muito positivo. Por incrível que pareça, ele não me disse uma única coisa negativa, e olha que falamos de muitos outros temas difíceis.
Tem havido uma pressão de empresas brasileiras e de alguns países do exterior com relação à política climática do governo. A disputa maior tem sido com a União Europeia até agora, mas, no caso dos EUA, a eleição de Biden pode mudar algo na forma como as empresas brasileiras e latino-americanas fazem negócios com os americanos?
Na minha opinião, o que é interessante sobre Biden, na comparação com os anos de Trump, é que Trump era muito bilateral em seus esforços. Ele saiu do TPP [Tratado Transpacífico] e mesmo renegociando o Nafta [bloco da América do Norte], deixou claro que preferia acordos bilaterais. Há uma grande diferença com Biden, que vai buscar muito mais coalizões. Como trazemos todos para a mesa, como garantir que possamos chegar a um acordo? Talvez leve tempo. De novo, estávamos acostumados a decisões muito rápidas sob Trump.
Mas basta olhar para os anos do governo Obama, quando John Kerry trabalhou com os principais países da União Europeia, China, Rússia, para chegar a um acordo nuclear com o Irã. Isso foi um grande progresso em um tema que era considerado insuperável. Acho que vai haver uma abordagem muito parecida. Algo que ficou claro na campanha é que Biden dará grande foco aos países vizinhos neste hemisfério [no Ocidente]. Por várias razões, e que vão além do clima, como segurança e imigração. Por exemplo, por que temos uma migração significativa para os EUA? Bem, é em busca de oportunidades. Então o que podemos fazer para ajudar os países de onde essas pessoas estão vindo?
Como o senhor mencionou, os anos de Trump não foram o ápice do multilateralismo no mundo. Na América do Sul, Mercosul e União Europeia também têm tido dificuldade em avançar com um acordo. Que abordagem os EUA terão com relação ao Mercosul e com outros acordos multilaterais?
Nós às vezes esquecemos que já havia uma rejeição crescente à globalização antes da pandemia. O alvo fácil foram os blocos multilaterais, seja Mercosul, Nafta, TPP, mesmo com o Brexit. De várias formas, começo a me perguntar se essa onda já não passou. Fizemos uma ampla análise da globalização, coisas que não gostamos nela -- perda de empregos, perda de identidade... Mas, no fundo, vimos que nós precisamos dela também. Portanto, vejo uma espécie de renascença para os acordos multilaterais e multinacionais. Acredito que há muita oportunidade nos anos que virão. E a pandemia pode inclusive estar acelerando isso. Teremos de trabalhar juntos para erradicar a doença, garantir que não volte, porque se um país pegar, todos pegam. Teremos de fazer isso de um jeito multilateral, seja a OMS, seja a ONU, sejam blocos comerciais. Não temos escolha, nós temos que cooperar uns com os outros.
Como o senhor avalia a nomeação do gabinete de Biden, sobretudo a escolha de Janet Yellen [ex-presidente do Fed] para secretária do Tesouro?
John Kerry, Yellen, todas essas pessoas são "mãos firmes" e são bem conhecidas. Por exemplo, é surpreendente quantas pessoas em Washington conhecem Tony Blinken [nomeado secretário de Estado, chefe da diplomacia] dos dias em que ele era só um jovem empregado da Comissão de Relações Exteriores do Senado, 30 anos atrás. Ele está lá desde então. É um cara muito agradável, afável, extremamente inteligente, com muita experiência. O que estou dizendo é: os mercados estão vendo previsibilidade. Eles entendem essas pessoas, não são novas pessoas.
Em segundo lugar, os mercados estavam muito preocupados com o crescimento da ala progressista e mais à esquerda no Partido Democrata, e o quanto eles iriam fazer um lobby forte para emplacar alguns nomes... A senadora Elizabeth Warren, por exemplo, queria ser secretária do Tesouro, havia discussão do senador Bernie Sanders como secretário do Trabalho. Mas não parece que Biden está abraçando essa ala do partido. O que é muito positivo para os mercados. Basta ver o Dow Jones, que passou de 30.000 pontos pela primeira vez na história com a notícia sobre Yellen.
Como o senhor vê a relação entre China e EUA agora no governo Biden? Haverá mais diálogo em meio à guerra comercial?
Primeiro, temos ouvido muito de pessoas da transição de Biden afirmando que este não será um governo "Obama 3.0". E eu não acho que é dito de forma desrespeitosa. É só que o presidente eleito entende que o mundo mudou nos últimos quatro anos -- independentemente da gestão Trump, a China é um lugar diferente agora, é muito mais forte militarmente, politicamente. Acredito que haverá uma continuação de negociações comerciais muito duras e até do que vimos sob Trump. Veremos mais tarifas? Não sei, acredito que não. Mas o time de Biden deve continuar trabalhando a partir de onde estão agora.
Uma mudança é que acredito que veremos os EUA se engajar muito mais com a União Europeia. As questões climáticas também serão um grande tema, a transferência e compartilhamento de tecnologia, que é tão crucial para o futuro. São questões difíceis. Mas acredito também que o governo Biden vai levantar de forma mais vocal as questões de direitos humanos, o que está acontecendo em Hong Kong, o que está acontecendo com a população uigur, e podemos ver isso se tornar parte das conversas comerciais, assim como as questões climáticas, a obediência ao Acordo de Paris.
E como essas mudanças americanas vão impactar a relação entre a China e o Brasil? O senhor vê os EUA prestando atenção a essas relações de alguma forma?
O que é importante saber sobre Biden, algo que a administração dele deixou claro, é que nos seis primeiros meses eles querem focar muito nos EUA, no que ele fala sobre "cicatrizar a nação" -- tanto economicamente quanto, espera-se, com uma vacina contra a covid. Eu não sei como o governo Biden vai endereçar a relação Brasil-China, mas de uma perspectiva macro e global, há um entendimento de que é preciso ajudar todos os países a voltarem ao normal da melhor forma possível.
São situações diferentes, mas o que o senhor menciona é parecido por exemplo ao Plano Marshall pós-Segunda Guerra...
Sim, de fato. Se você não fizer isso, termina tendo uma instabilidade global em todos os lugares. São tempos muito frágeis globalmente. Eu suspeito que o time de Biden, que é muito internacionalista na sua visão -- e estudantes ávidos do plano Marshall --, entendem isso também.
O ano de 2020 foi difícil, mas em 2021 teremos de lidar com uma desigualdade crescente. Analistas têm apontado que, se políticas não forem implementadas, a desigualdade entre países ricos e pobres pode chegar a níveis estratosféricos. Como países desenvolvidos como os EUA podem ajudar a evitar este cenário e como o senhor vê isso acontecendo no governo Biden?
O que me encoraja é que esse cenário é algo que vem sendo rigorosamente discutido. Todo mundo percebe que há um problema e que precisamos encontrar soluções. Para citar um desafio aqui do Ocidente, temos o problema da migração. Pode haver uma crise migratória massiva em nosso hemisfério e globalmente. A UE, por exemplo, viveu uma onda gigante de migração vinda da África e do Oriente Médio. O custo disso foi alto. Se algo não for feito, a probabilidade de isso acontecer de novo é muito alta.
Então, tudo isso somado, acredito que haverão muitas políticas e que podem ser muito efetivas. Acima de tudo, é preciso criar oportunidade. No comércio, você começa a ver cadeias de fornecimento indo para fora da China. A China está se tornando mais uma nação consumidora do que apenas exportadora. E para onde isso vai? Essas cadeias não desaparecem simplesmente. Por que não transportarmos elas para a América Central e do Sul? Por que não garantir que isso aconteça? E temos de entender que papel os governos podem ter, juntos, para garantir que essas oportunidades vão para os lugares em que mais se precisa -- e onde, inclusive, há mais sentido econômico.
E dado tudo isso, como o senhor enxerga as oportunidades para as empresas brasileiras no comércio com os EUA neste momento?
Oportunidades não faltam. Eu vejo oportunidades tremendas para os dois países, EUA e Brasil. No agronegócio, os investimentos brasileiros nos EUA são enormes -- e crescendo. E são muito bem recebidos e respeitados. E em especial no setor de tecnologia, em meios alternativos de energia. Com o potencial e o tamanho do Brasil, não há nada que as empresas brasileiras não possam fazer aqui.
Ao que o senhor estará prestando atenção nos próximos meses quanto ao governo Biden e também quanto a essa relação com o Brasil?
Acredito que será interessante ver o que Biden vai fazer em termos de política para os países desse lado do hemisfério. Deve haver algo nos próximos três, quatro meses, uma ampla política para o Ocidente, que seja econômica e política e busque como trabalhar de forma mais próxima conjuntamente. Acho que provavelmente será uma mudança dramática, quase histórica. E, para o Brasil... todo mundo quer ser amigo do Brasil agora, todo mundo vê oportunidades no Brasil. O Brasil tem a oportunidade de decidir seu futuro, escolher com quem faz negócio.