Irlanda acaba com tabu do aborto com "revolução silenciosa"
A vitória que abre a porta às interrupções da gravidez sem restrições durante as primeiras 12 semanas de gestação
EFE
Publicado em 26 de maio de 2018 às 15h42.
Última atualização em 28 de maio de 2018 às 11h57.
Dublin, 26 mai (EFE).- A Irlanda, país profundamente católico, culminou uma "revolução silenciosa" ao aceitar a reforma da lei do aborto no referendo de sexta-feira, com uma contundente vitória que abre a porta às interrupções da gravidez sem restrições durante as primeiras 12 semanas de gestação.
"O que vimos hoje é a culminação de uma revolução silenciosa que ocorreu nos últimos 10 ou 20 anos ", comemorou o primeiro-ministro, o democrata-cristão Leo Varadkar, que comentou que as urnas lhe outorgaram um mandato firme para liberalizar a legislação vigente, uma das mais duras da Europa.
A mudança prevista é enorme, pois, ainda hoje, nove mulheres deste país, segundo números oficiais, viajarão para o exterior para abortar e três tomarão uma pílula comprada pela internet para interromper sua gravidez, sem a assistência de um médico devido à ameaça de penas de prisão de até 14 anos para ambos.
Segundo a apuração final do referendo, o "sim" à reforma ganhou com 66,4 % dos votos, frente ao 33,6% do "não", enquanto a participação, fundamental para a vitória, chegou a 64%, a mais alta em 22 anos.
Em um referendo realizado em 1992, as mulheres ganharam o direito a sair do país para abortar, embora tenha continuado sendo ilegal em território nacional, e em outro de 2002 o eleitorado rejeitou avanços nesse assunto, quando a influência da Igreja católica era ainda forte e se desconheciam os milhares de casos de abusos sexuais cometidos contra menores.
"A população falou e disse que quer uma Constituição moderna para um país moderno, no qual respeitemos as mulheres e confiemos nelas para que tomem suas próprias decisões sobre a sua saúde", afirmou o primeiro-ministro, de 39 anos, médico de profissão e gay.
O triunfo do "sim", segundo disse o líder do partido Fine Gael desde 2017, é fruto da "democracia direta" que este país abraçou, refletida, por exemplo, na chamada "Convenção Cidadã", estabelecida pelo governo em 2015 para estudar a fundo esta questão e apresentar propostas para uma nova lei do aborto.
Composta por uma centena de pessoas representativas de diferentes setores da sociedade, esse organismo escutou durante dois anos os testemunhos, entre outros, de analistas legais e médicos sobre o aborto, assim como o de mulheres afetadas.
Suas recomendações serviram de base para que o governo redigisse, dentro de uma comissão multipartidária, um projeto de lei que espera tramitar nas próximas semanas no parlamento, quase sem oposição, para que entre em vigor no final deste ano, o que também permitiria o aborto até as 24 semanas em casos excepcionais.
O trabalho da Convenção abriu os olhos de muitos políticos, como o líder da oposição e do partido centrista Fianna Fáil, Micheal Martin, que se pôs ao lado do governo neste tema, apesar de a maioria de seus deputados ter permanecido contra ou não ter se pronunciado.
Em sua opinião, foram "fundamentais" as histórias de centenas de mulheres contadas em primeira pessoa durante a campanha pelo "sim", "rompendo seu silêncio" e "acabando com o estigma" que, erroneamente, lhes acompanhou durante anos.
"A população esteve à nossa frente", comentou hoje Mary Lou McDonald, presidenta do Sinn Féin - terceira força nacional -, que também apoiou Varadkar e foi uma das faces mais visíveis do "sim".
McDonald agradeceu o trabalho da coalizão "Juntos pelo Sim", uma maquinaria perfeitamente azeitada que contou com milhares de voluntários, especialistas, ativistas e celebridades para divulgar sua mensagem por todo o país.
O Sinn Féin, no entanto, consultará agora suas bases para dar seu sinal verde aos pontos mais controversos da nova lei, o que demonstra as tensões internas que o aborto ainda provoca neste país.
Nesse referendo o governo tinha pedido à população que se pronunciasse sobre a eliminação da chamada "oitava emenda", incluída em 1983 na Constituição e que garante da mesma maneira o direito à vida do "não nascido" e da mãe.
De acordo com esta provisão, a lei promulgada em 2013 pelo Executivo do Fine Gael, a primeira na história da Irlanda, só permite a interrupção da gravidez nas circunstâncias excepcionais citadas, uma situação que mudará radicalmente antes do final deste ano.
Os grupos pró-vida, apoiados pela Igreja católica durante a campanha, asseguraram hoje que o "sim" do eleitorado na consulta "é uma tragédia de proporções históricas".
"O aborto estava errado ontem e segue estando errado hoje, embora a maioria diga o contrário. É um dia muito triste para a Irlanda", lamentou a plataforma "Save the Eighth" ("Salve a Oitava"). EFE