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Impactos globais de um problema africano

Contaminação do lago Vitória coloca em risco economias africanas e a vida de consumidores de perca do Nilo

DANIEL ZACHARIAH E SUA FAMÍLIA: pai de seis filhos, ele abandonou o cultivo de alimentos para trabalhar como minerador / Cibele Reschke

DANIEL ZACHARIAH E SUA FAMÍLIA: pai de seis filhos, ele abandonou o cultivo de alimentos para trabalhar como minerador / Cibele Reschke

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Da Redação

Publicado em 24 de junho de 2017 às 09h12.

Última atualização em 30 de junho de 2017 às 15h55.

MWANZA, TANZÂNIA — O amanhecer é escuro para os pescadores de Mwanza, a segunda maior cidade Tanzânia, banhada pelo lago Vitória, cuja linha de costa é compartilhada também por outros dois países do leste africano: Uganda e Quênia. Diariamente a partir das três horas da madrugada, as margens desse que não apenas é o maior lago da África, mas também o segundo maior do mundo, congregam milhares de homens e mulheres que dedicam a vida à captura e processamento artesanal de peixes. Só na fração tanzaniana do lago, a atividade emprega mais de um milhão de pessoas, direta ou indiretamente, e beneficia mais de cinco milhões de pessoas, em um regime de aprendizado familiar que funciona há gerações. Nos últimos anos, porém, a pesca que serve como fonte de nutrição e renda para a população tem sido prejudicada por um processo de industrialização e capitalização do lago, que o transformou em um dos principais polos globais de exportação de proteína animal.

A questão tem raízes na década de 50, com a introdução de uma espécie não nativa no lago Vitória: a perca do Nilo, um dos tipos de peixe branco mais consumidos na Europa, na América do Norte e também na Ásia. A pesca industrial da perca do Nilo no lago Vitória se tornou uma atividade extremamente lucrativa. Somente em 2015, mais de 600.000 toneladas de peixe foram produzidas na região do lago na Tanzânia, das quais entre 80 e 90% foram destinadas à exportação, segundo dados oficiais do Ministério da agricultura, pecuária e pesca. “O desenvolvimento do mercado de exportação incentivou a instalação de nove fábricas de processamento de peixe na região do lago nas últimas duas décadas,” diz Lameck Mongo, chefe do escritório regional de monitoramento de pesca, em Mwanza.

Pesca ilegal

David Masatu: abandonou a profissão de pescador após a baixa oferta de peixes nativos no lago Vitória (Foto: Cibele Reschke)

O aparente impacto positivo da industrialização do lago Vitória mascara um problema não contemplado pelas estatísticas oficiais: estima-se que uma quantidade de peixe aproximadamente 50% maior do que a registrada seja capturada ilegalmente, reporta a Organização de Pesca do lago Vitória (LVFO). Isso representa uma das mais altas taxas de pesca proibida do mundo. “A internacionalização do lago Vitória foi o principal atrativo para a pesca ilegal, já que as pessoas estão dispostas a fazer o que for necessário para obter lucro, inclusive desrespeitar os limites ecológicos impostos pela lei,” diz Modesta Medard, pesquisadora chefe do projeto de preservação dos grandes lagos africanos da The Nature Conservacy, organização não governamental que trabalha em escala global para a conservação do meio ambiente, em Mwanza.

A despeito dos constantes alertas da Organização de Alimentos e Agricultura das Nações Unidas (FAO) para a urgente necessidade de reduzir a pesca no lago Vitória, a produção não para de crescer. Em 2015, o volume de pescados chegou a 609.024,40 toneladas, enquanto em 2008 a produção era de 579.853 toneladas, de acordo com o Ministério da agricultura, pecuária e pesca. A consequência drástica desse crime ambiental é a redução considerável da biomassa disponível – o que, dada a importância no contexto global, pode ter grandes impactos no mercado internacional. “O pior de tudo é que o consumidor europeu e norte americano não faz ideia de que, ao comprar esse peixe, pode estar contribuindo para reforçar a pesca ilegal na Tanzânia,” complementa Modesta.

O impacto global da industrialização do lago Vitória ainda produz significantes replicações em nível local. Por ser um animal predador e de grande porte, a perca do Nilo dizimou em mais de 50% as espécies naturais da região, o que representa não só um prejuízo ecológico, mas também social. “A fauna local não pode ser substituída por uma espécie de grande porte, padrão exportação, cuja captura demanda equipamentos caros e sofisticados que são inacessíveis para a população local,” afirma Magreth Musiba, diretora do Instituto de Pesquisa de Pesca da Tanzânia (TAFIRI), em Mwanza. Por se tratar de um peixe caro, a presença da perca do Nilo tem reduzido as possibilidades de emprego e alimentação de quem vive às margens do lago. “A perda de biodiversidade acelera o processo de malnutrição e pobreza em uma região já carente de recursos,” complementa Mwanahamisi Salehe economista social do TAFIRI.

A baixa oferta de peixes nativos para o comércio local resultou na queda da renda dos pescadores em Mwanza em quase 70% nos últimos dez anos, o que tem levado muitos profissionais a involuntariamente buscar outras fontes de renda para sobreviver. Pescador desde a adolescência, David Masatu, de 42 anos recentemente decidiu abandonar a profissão e tornar-se um comerciante de frutos do mar. “Apesar de preferir trabalhar como pescador, meu esforço diário para incrementar a renda nos últimos anos não trouxe resultados,” desabafa David. “A mudança foi inevitável, mas confesso que as coisas não vão bem no ramo das vendas, porque o mercado local como um todo está quebrando.” A falta de esperança na atividade econômica que sustentou os pais e avós da nova geração tem levado os jovens profissionais de hoje a buscar novas fontes de subsistência, o que nessa região se limita a dirigir mototáxi, envolver-se com agricultura ou processamento de ouro.

Novo sonho eldorado

Exploração de ouro na Tanzânia: minas sem equipamentos de segurança adequado e uso de metais tóxicos como mercúrio e cianeto (Foto: Cibele Reschke)

Embora registros mais antigos documentem descobertas de jazidas de ouro no entorno do lago Vitória durante o período colonial, em 1894, a produção do metal se tornou praticamente insignificante na região desde o período pós-guerra. A partir da década de 2000, com a queda da produção de gigantes mineradores como a África do Sul, Gana e Mali, as jazidas tanzanianas voltaram a atrair atenção. A Tanzânia se tornou o novo sonho eldorado para diversas organizações ocidentais. Enquanto a produção sulafricana caiu de 500 para 140 toneladas anuais, entre 1990 e 2015, a produção da Tanzânia cresceu 700% nesse período. O país hoje produz 50 toneladas anuais e é o quarto principal produtor de ouro no continente e um dos principais produtores em nível global, com grande potencial de crescimento, segundo dados do Tanzania Invest, consultoria de investimentos. A mineração foi o setor que mais recebeu investimentos estrangeiros nos últimos anos, e também o setor que mais contribuiu para a média de crescimento do PIB nacional de 7% ao ano.

A promessa de uma renda mais enxuta tem atraído pescadores e agricultores para a trabalhar com mineração de forma autônoma em Geita, cidade anfitriã de uma das maiores multinacionais mineradoras do país, a cem quilômetros de Mwanza. Sem qualquer tipo de proteção, centenas de garimpeiros se dirigem a pequenas minas para extrair e limpar o metal precioso, utilizando metais tóxicos como mercúrio e cianeto em mãos nuas e expondo-se ao risco de envenenamento crônico ou agudo. Sintomas apresentados por esses garimpeiros incluem tremores musculares, coceira persistente, sensação de queimação na pele e alterações de personalidade. Em casos extremos, a ingestão desses metais pode levar à morte em menos de uma semana. Pai de seis filhos, Daniel Zachariah, de 43 anos, abandonou o cultivo de alimentos para trabalhar como minerador. “Eu acredito que presença das mineradoras na região tem influenciado a fertilidade do solo e, mesmo que eu esteja ciente dos perigos de lidar com o mercúrio, eu preciso trabalhar para sobreviver e essa é a minha única opção,” afirma Daniel, de Geita.

Faz sentido a crença de Daniel. A extração e processamento descontrolado de ouro utilizando metais pesados, como mercúrio e cianeto, tem contaminado a água em níveis inaceitáveis, de acordo com a Organização Mundial de Saúde. “Embora as grandes mineradoras prometam tratar o lixo industrial antes de deposisitá-lo no lago, a água não é devolvida no seu estado natural e não há como controlar a efetividade do tratamento,” afirma Anthony Sanga, diretor executivo da Autoridade de Abastecimento Urbano de Água e Saneamento de Mwanza (Mwauwza). Masalu Mwanamila, presidente do conselho executivo da Mgusu, cooperativa que reúne quase 700 mineradores independentes, reforça esse argumento: “nós tentamos sempre evitar o despejo de mercúrio no solo e na água, mas é inevitável que haja vazamentos,” admite Masalu, em Geita.

Uma pesquisa da Universidade de Waterloo indicou que as águas do lago Vitória apresentam concentrações de mercúrio elevadas o suficiente para considerá-las contaminadas, sobretudo nas regiões próximas a grandes minas de ouro. O risco de intoxicação humana pode ser direto, já que a população ribeirinha utiliza a água para consumo e higiene pessoal, – ou indireto, através do consumo de peixe e gado expostos à água do lago. “A poluição é significativa, existe um grande risco de contaminação de alimentos não só na pesca e pecuária, mas também em produtos agrícolas irrigados com a água do lago,” diz Donald Kasongi, diretor executivo da Governance Links, organização não governamental que monitora assuntos como administração de alimentos, saúde e comércio, em Mwanza. “Os peixes ‘padrão exportação’ não estão imunes ao contato com essas substâncias, mas isso não é muito comentado porque os grandes marajás da indústria da pesca não querem manchar a imagem da produção do lago Vitória.” Somada à contaminação tóxica, há uma grande concentração de esgoto não tratado e agrotóxicos no lago.

Perigo global

As consequências da contaminação da água representam um problema não apenas no contexto africano, mas também global. Continentalmente falando, o lago Victoria é drenado pelo rio Nilo, que além de ser o segundo maior rio do mundo, cobrindo onze países, é também a principal fonte de água para o Egito e o Sudão — e deságua no mar Mediterrâneo. “Se não tomarmos conta do lago Vitória, muitos países estarão encrencados, isso pode se tornar um problema crônico,” diz Omari Myanza, diretor do Projeto de Administração Ambiental do lago Vitória (LVEMP), em Mwanza. Do ponto de vista internacional, a poluição da água significa que o peixe exportado em grande escala para o mundo todo também pode estar contaminado com substâncias extremamente tóxicas.

Ao passo que o problema avança, ONGs e governos se reúnem para criar soluções. Sob a liderança de Modesta Medard, foi organizada a primeira African Great Lakes Conference no mês passado, na Uganda. O evento reuniu cientistas, agências de investimento e autoridades africanas pra discutir formas de preservar e desenvolver a região dos lagos africanos. “Se dividimos uma fonte de água, precisamos nos unir para assegurar que a preservação do lago seja garantida em todas as fronteiras,” afirma Ogoma Mangasa, diretor do escritório de preservação da bacia do lago Vitória, em Mwanza. O reconhecimento continental do problema já representa um grande avanço nos esforços de preservação ambiental do lago Vitória. No entanto, dada a magnitude internacional do problema, esforços maiores devem ser levantados, a começar pela conscientização da comunidade global a respeito do tema. O consumidor de perca do Nilo precisa estar atento à procedência do peixe, para evitar suporte à pesca ilegal no lago Vitória. É preciso compreender que um problema que começa impactando o bolso de um pescador tanzaniano pode acabar no estômago de um europeu.

* A International Women’s Media Foundation apoiou a reportagem de Cibele Reschke na Tanzânia, como parte da Africa Great Lakes Reporting Initiative.

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