Celso Atahyde, fundador da Central Única das Favelas (CUFA) (EXAME/Exame)
Para Celso Athayde é necessário "mais favela" em ambientes como o Fórum Econômico Mundial de Davos.
Em entrevista exclusiva à EXAME direto de Davos, Athayde falou sobre a necessidade de mudança de percepção sobre a favela, até mesmo por parte dos que discutem o assunto.
"Davos precisa entender qual a importância da favela", diz Atahyde, "ter um favelado aqui, ter a favela holding ganhando prêmio aqui em Davos, é um reconhecimento importante".
O fundador da Central Única das Favelas (Cufa), há 27 anos, e há dez anos da Favela Holding, foi um dos vencedores do prêmio Empresário Social da Fundação Klaus Schwab, fundador do fórum de Davos.
O carioca, ex morador de rua, passou os últimos dias intensamente, entre simpósios sobre economia e encontros com lideranças empresariais e políticas mundiais.
Segundo ele, entretanto, o desafio da favela não é apenas ficar guardando convites. É fazer suas próprias plataformas.
"Vamos lançar um Fórum Econômico das Favelas no Brasil em 2023, convidando empresas do asfalto de pessoas que podem mudar o jogo com a favela. Precisamos de um coadjuvante de um processo que é nosso", diz Athayde.
Confira os melhores trechos da entrevista à EXAME.
Claro! A favela não pode ficar apenas discutindo cestas básicas. Isso não faz sentido nenhum para quem quer ter um país livre de favelas. Falar de cestas básicas é sobrevivência. Não é desenvolvimento.
Esse prêmio representa o reconhecimento da importância das organizações sociais e das pessoas envolvidas nisso. E o que Davos está fazendo é se rendendo a isso.
Parte das críticas que Davos recebe são extremamente legítimas. Quando você fala de livre mercado, você pode falar sobre isso, mas também com responsabilidade. Muitas vezes é muito contraditório quando certos empresários falam de fome, de sustentabilidade, e são as mesmas pessoas que contribuem para que tenha fome no mundo. Mas essas críticas têm funcionado. E agora Davos está incorporando mais aspectos sociais, e o prêmio que ganhei é um reconhecimento, de fato, para as pessoas. Até pelo fato que o "estado mínimo" já existe: ele se chama favela.
Sim, pode até ser. Mas são importantes ainda que seja apenas um docinho. Assim como as cotas, na medida que você vai dando apenas um docinho, as pessoas vão percebendo que aquilo é importante. E tanto aquele que deu essa oportunidade quanto aquele que recebeu, tanto a sociedade, começam a querer mais. Mas obviamente Davos vai continuar elitizado pois nem todo o mundo pode estar aqui, que é um espaço físico limitado. E você vai sempre precisar ter aqui aquelas pessoas que são as maiores referências naquele âmbito. E, obviamente, que quando a gente fala de poder, seja individual, seja coletivo, é sempre espaço de uma certa opressão e de uma certa arrogância.
Tem gente que não tem noção do que está falando, como tem em todos os lugares. O cara faz curso em Harvard sobre tema social, sobre favela, mas não incorpora a favela. Nunca entrou em uma. Ou fez apenas uma visita. Mas o que eu senti aqui em Davos foi uma macrorreprodução do que eu vejo em todos os lugares. Aqui se potencializa tudo que eu vejo. No Brasil é o mesmo. Há muita gente que fala sobre temas que não conhece.
Uma de nossas iniciativas de sucesso é o Expofavelas, que realizamos em abril em São Paulo. Eu era convidado a participar de eventos sociais e em nenhum desses eventos que eu já fui tinha uma única pessoa que sofria as consequências desses impactos. Era eu, uma série de empresários e uma plateia totalmente branca e do asfalto. E falando em "share", "trade", "match", "networking", que para a favela não faz sentido nenhum. Não que a favela não possa fazer isso, mas ela precisa vivenciar isso. E se você falar sobre aquelas pessoas é uma coisa. Mas se quiser falar com aquelas pessoas é outra. E esse é o centro do problema: as pessoas da favela nunca estão nesses espaços físicos. Ou a gente esquece essa pessoas ou a gente integra essas pessoas.
Muito positiva. Estou fazendo reuniões até quase 1 hora da manhã, com organizações de favelas de vários países do mundo, criando laços com outras entidades, que sempre vieram o pediram dinheiro para as empresas, se colocando como carentes ou marginalizados. E a gente está tentando fazer com que elas entendam que precisamos ver a potência desses lugares.
Se essas empresas querem falar com a gente, não querem fazer isso porque somos legais. Querem fazer isso porque querem vender produtos customizados. Dizem que somos carentes, mas os bancos fazem microcrédito customizado, as operadoras de telefonia fazem um pacote que cabe no bolso etc. É tudo business. Só que o mercado entende que a favela é um laboratório, os favelados são camundongos e eles são cientistas.
A favela está sendo um caso de estudo para criar produtos específicos para as empresas que estão aqui, para aumentar o nível de faturamento. Para entrar em um mercado onde elas não estavam. Elas já bateram no teto das outras classes sociais, agora só sobrou a favela para crescer. E quando falo em favela nesse espaço, falo não apenas de 17 milhões de pessoas, que é aquilo que o IBGE fala de "aglomerado subnormal". Mas o próprio IBGE fala que 52% da população ganha menos de um salário-mínimo. Então a favela deve ser muito maior do que isso.
A percepção, o medo que as pessoas têm é muito grande. A maior crise que podemos ter em nosso país não é nem a recessão. É a crise de perspectivas. E o Brasil teve uma crise de perspectivas desde a pandemia para cá, quando não conseguimos ter respostas claras do poder público em relação ao que vai acontecer, mais do que está sofrendo, mais do que vê gente morrendo, você não consegue olhar para a frente. E isso quase provocou uma convulsão social no Brasil.
Eu achava que isso iria acontecer. Não aconteceu, graças a Deus. Os mercados não foram saqueados, como se imaginava, mas chegamos muito próximo a isso. Até porque os empresários sociais foram muito rápidos, seja por marketing, por compromisso social, ou por medo dessa convulsão, que iria nivelar tudo por baixo, fato é que se fez muito investimento. As organizações comunitárias e sociais também foram muito ágeis em fazer essa interface rápida e poder chegar nas pontas rapidamente. Do contrário, estaríamos próximos de um caos estabelecido.
O sinal, por parte das autoridades, de que as pessoas iriam ser ajudadas, deu esperança e acalmou os ânimos. E as pessoas começaram a ter mais um pouco de paciência. Pois quando você anuncia uma ajuda, mesmo que no futuro, cria expectativa e esperança nas pessoas. Mas chegou um certo momento que achei que a coisa realmente iria desandar, e que a gente iria acabar no caos.
Muita gente tem esse pensamento sim. Nem entende muito o que é inflação, mas vai vivendo o dia dia, vê que está mais caro. Não sabe muito bem de quem é a culpa. E começa a surgir uma guerra de narrativa o tempo todo: imprensa dizendo uma coisa, governo dizendo o contrário e ninguém sabe onde isso tudo vai parar. Entretanto, é preciso considerar que a favela é um espaço físico de 17 milhões de pessoas. É um lugar de todo o tipo de gente. É quase um país à parte. Esse número de pessoas é maior do que o estado do Rio Grande do Sul. Seria o quinto maior estado em termos de economia. Então, as opiniões podem ser diferentes.
Na favela tem muita gente que empreende. Não empreende necessariamente formalmente. Mas como a renda é baixa, todo o mundo precisa empreender por uma questão de sobrevivência. Então você acaba "se virando", "dando seus pulos" e "fazendo seus corres". A inflação para esse povo também é um problemão. Pois isso acaba criando problemas para seus negócios.
Quando se fala de ESG, não se fala de favela. Se fala de qualquer coisa, mas não desse tema. A favela não está sendo colocada nesse lugar. Acaba sendo mais importante a arvorezinha que o cara que mora na favela.
Eu estava falando com Paulo Guedes aqui em Davos, junto com outros colegas de países africanos, e lancei um desafio para ele reduzir os impostos para ajudar os trabalhadores de favelas que querem exportar, ou criando zonas econômicas exclusivas.
Ele se comprometeu a fazer um estudo. Mas uma coisa é o que ele responde, outra é o que se pode fazer. Mas é necessário um projeto de estado, e não de governo. Ninguém fez até agora, independentemente do partido.
É importante, é expressivo, mas precisamos de mais favelas em Davos. Mais favelados em Davos. Não para ser o grande acontecimento do Fórum. Mas é preciso que as favelas do mundo se reúnam aqui para discutir das exigências das favelas, para que as favelas sejam discutidas tratando das exigências dos favelados como lugar de potência. Aliás, faço uma provocação final.
Vamos lançar um Fórum Econômico das Favelas no Brasil em 2023, convidando empresas do asfalto de pessoas que podem mudar o jogo com a favela. Precisamos de um coadjuvante de um processo que é nosso.