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Entenda por que Obama corre para salvar seu legado

Na reta final de seu mandato, Obama está longe de ser um "pato manco". Veja as razões

 (Bill Pugliano/Getty Images)

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Rafael Kato

Publicado em 6 de janeiro de 2017 às 15h46.

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NOVA YORK — No presidencialismo americano, o termo “pato manco”, apelido dado ao presidente que aguarda o fim de seu mandato, tem historicamente duas conotações opostas: enfraquecido politicamente, ele não toma decisões impactantes; livre de preocupações com sua reeleição ou com fazer um sucessor, ele põe em prática o que realmente acredita, visando seu legado e ignorando resistências e controvérsias.

Em geral, prevalece o primeiro conceito, mas o segundo também pode ocorrer. O que é muito raro é o que Barack Obama vem fazendo nas últimas semanas: deixar um campo minado de decretos e nomeações, fatos consumados no terreno que vão frontalmente contra as políticas de seu sucessor, introduzindo um certo fel nos 100 dias de lua de mel a que todo presidente recém-empossado costuma ter direito. Normalmente contido e sóbrio, o pato manco Obama resolveu colocar as asas de fora.

O governo Obama se absteve numa votação do Conselho de Segurança da ONU condenando o antes aliado quase incondicional, Israel; impôs novas sanções à Rússia, em retaliação pela ação de hackers contra a campanha de Hillary Clinton; tornou a normalização com Cuba diretriz da política externa americana; proibiu a extração de petróleo na costa atlântica; transferiu presos de Guantánamo e consolidou as normas sobre tortura e ações das Forças Armadas no exterior; garantiu verbas para planejamento familiar (leia-se aborto) na rede pública de saúde; estuda formas de proteger o Obamacare, o sistema que obriga todos os americanos a terem um plano de saúde, do desmantelamento anunciado pelos republicanos; indultou 78 presos e reduziu as sentenças de 232, sobretudo ligados a drogas; e, desde a eleição do dia 3 de novembro, fez 103 nomeações para cargos no funcionalismo, em comissões e conselhos importantes e em comandos militares.

Todas essas decisões contradizem as políticas defendidas por Trump na campanha, e envenenaram o clima entre o atual presidente e o eleito, tornando inócuo o anúncio de Obama, ao se reunir na Casa Branca com seu sucessor apenas dois dias depois da eleição, de que a “prioridade número 1” de sua reta final no cargo seria promover uma transição “suave”.

Trump se mostrou perplexo com a hiperatividade de Obama. Depois da aprovação no Conselho de Segurança da resolução que condenou Israel pela expansão dos assentamentos judaicos nos territórios ocupados palestinos, o presidente eleito se queixou de que isso dificultaria as negociações de paz. “Que pena, mas vamos fazer de qualquer jeito”, arrematou ele, com seu otimismo, digamos, ligeiramente ingênuo. E ainda pediu para Israel “aguentar firme” até sua posse no dia 20. Durante a campanha, Trump se reuniu com o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, prometeu reverter o acordo nuclear com o Irã, ao qual se opõe Israel, e até mesmo reconhecer Jerusalém como sua capital — o que quebraria um tabu na comunidade internacional.

Dois dias depois, ele manifestou no Twitter sua decepção: “Tentando desconsiderar as muitas declarações inflamatórias e obstáculos do presidente. Pensei que seria uma transição suave — NÃO!” Depois dessa queixa, Obama telefonou para Trump e, segundo um porta-voz do presidente, ambos se comprometeram a fazer a tal transição suave. Impressionável, Trump garantiu depois do telefonema que tinha sido uma conversa “muito, muito simpática”, e que a transição estava indo “muito, muito suavemente”.

O fator Rússia 

Todos os temas nos quais Obama tem empregado sua poderosa caneta são importantes e entram em confronto direto com as intenções de Trump, mas nenhum é mais emblemático para a democracia americana do que a intromissão da Rússia na eleição presidencial. A CIA concluiu que hackers contratados pelo Kremlin, e com aval do presidente Vladimir Putin, estiveram por trás da invasão do banco de dados do Partido Democrata e da caixa de emails de John Podesta, coordenador de campanha de Hillary.

Vazados por meio do site Wikileaks, os emails mostraram o uso da máquina do partido em favor de Hillary na sua disputa com o senador Bernie Sanders durante as primárias democratas, assim como um aparente tráfico de influência em benefício de doadores da Fundação Clinton no Departamento de Estado sob a gestão da candidata, entre 2009 e 2013.

Esses vazamentos reforçaram a imagem de manipulador do casal Clinton e a já elevada rejeição contra Hillary, mesmo entre eleitores democratas, levando sua equipe e analistas do partido a concluir que contribuíram diretamente com a derrota. Trump, de seu lado, assumiu uma atitude defensiva, menosprezando a importância eleitoral dos vazamentos e sobretudo apontando a falta de provas contra o governo russo. A implicação é explosiva porque Trump manifestou admiração por Putin e teve como coordenador de sua campanha o marqueteiro Paul Manafort, que trabalhou para políticos ligados a Putin na Ucrânia.

Sem contar que, em uma entrevista coletiva em julho, com sua irreverência, Trump pediu: "Rússia, se estiver ouvindo, espero que possa encontrar os 30 mil emails que estão faltando”, numa referência a uma informação de que o FBI suspeitava de que esse número de emails tinha sido apagado do servidor privado usado por Hillary quando era secretária de Estado. “Acho que você será muito recompensada por nossa imprensa.”

Depois de muito ponderar sobre como retaliar, o governo Obama anunciou as sanções na quinta-feira 29: expulsou 35 diplomatas russos, ordenou o fechamento de dois edifícios do país em Maryland (parte do Distrito de Colúmbia, onde fica Washington) e em Nova York e, numa atitude incomum, revelou a identidade de dois agentes russos, sobre os quais pairam recompensas para quem ajudar a localizá-los. Em todos os casos, as acusações são de que esses funcionários e esses prédios se dedicavam a espionagem.

Como é usual, a chancelaria russa recomendou ao presidente que reagisse com medidas recíprocas, que é o que Putin tem feito nos últimos anos, face, por exemplo, às sanções econômicas impostas pela anexação da Crimeia e pelo apoio a separatistas russos na Ucrânia em 2014. Dessa vez, no entanto, o presidente preferiu esperar que Trump tome posse. O gesto acabou colocando uma espada sobre o próximo presidente, que, para demonstrar sua boa vontade, teria de reverter as medidas e assumir o ônus político de favorecer o tradicional rival dos Estados Unidos.

Trump reagiu com cautela ao anúncio das sanções. “É hora de nosso país avançar para coisas maiores e melhores”, disse ele numa declaração. “Entretanto, no interesse de nosso país e de seu grande povo, vou me reunir com líderes da comunidade de inteligência na próxima semana (nesta) para ser atualizado sobre os fatos desta situação.”

Sean Spicer, que será o novo chefe de imprensa da Casa Branca, especulou que as sanções podem ter tido motivação política. “Talvez tenha tido, talvez não”, disse ele, em entrevista no domingo à rede de TV ABC. “A China roubou um milhão de arquivos. E a Casa Branca nem sequer emitiu um comunicado”, lembrou ele, referindo-se à invasão chinesa de vários bancos de dados do governo americano em 2015, que afetou ao menos 4 milhões de funcionários públicos, e foi considerada a maior da história. “Então há uma questão aqui sobre se foi uma retaliação política ou uma resposta diplomática.” Segundo Spicer, “não se viu uma resposta como essa na história moderna por ação alguma”. Ele também colocou em dúvida as provas contra a Rússia: “Todo mundo na mídia quer tirar conclusões baseadas em fontes anônimas da comunidade de inteligência”.

Numa amostra do descompasso entre a visão de Trump e a do establischment republicano com relação à Rússia, vários dirigentes do partido criticaram as sanções não por terem sido tomadas, por sua demora. “A Rússia não compartilha dos interesses americanos”, declarou o presidente da Câmara dos Deputados, Paul Ryan, que depois das primárias relutou em apoiar Trump. “De fato, ela tem consistentemente tentado miná-los, semeando uma perigosa instabilidade ao redor do mundo. Embora a ação de hoje do governo tivesse de ter sido tomada há bem mais tempo, é uma forma apropriada de pôr fim a oito anos de política fracassada em relação à Rússia. E serve de exemplo da política externa ineficaz desse governo que enfraqueceu a América aos olhos do mundo.”

Essa é uma percepção também difundida por Trump, de que os EUA perderam os dentes. Mas ele não inclui as relações com a Rússia nessa abordagem. Ao contrário, fala em cooperar com Putin no principal interesse dos EUA em relação ao Oriente Médio: o combate ao terrorismo.

Os senadores republicanos John McCain e Lindsey Graham divulgaram uma nota conjunta, pedindo ações mais duras em relação à Rússia: “As medidas retaliatórias anunciadas pelo governo Obama hoje deviam ter sido tomadas havia muito tempo. Mas no fim das contas são um preço pequeno para a Rússia pagar por seu ataque frontal à democracia americana”, diz o texto, fazendo referência direta ao possível favorecimento do candidato de seu partido. “Pretendemos liderar o esforço no novo Congresso de impor sanções mais fortes contra a Rússia.”

Não é apenas Barack Obama que precisa se entrincheirar para defender posições diante do furacão representado pela chegada de Trump à Casa Branca. Em várias questões, não só as relações com a Rússia, mas também o livre comércio, os gastos públicos e talvez mesmo uma certa contenção de Israel para evitar que o Oriente Médio pegue ainda mais fogo, o próprio Partido Republicano já está demarcando o seu território. A batalha de Washington não termina com a transição Obama-Trump. Na verdade, ela apenas começa.

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