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Eleições americanas: uma democracia pouco democrática?

Votar nos Estados Unidos é um direito de todos — ou pelo menos de todos aqueles que conseguem superar certos obstáculos

Fila de votação em Austin, no Texas: estado foi um dos que não flexibilizaram a legislação em 2020 para facilitar a votação à distância (AFP/AFP)
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Fabiane Stefano

Publicado em 27 de outubro de 2020 às 18h52.

Última atualização em 27 de outubro de 2020 às 20h36.

No dia 12 de outubro, a Justiça Federal americana decretou a legalidade de uma decisão tomada pelo governo do Texas que simboliza um dos temas mais controversos da política americana: a supressão do voto. A democracia mais antiga do mundo, no fim das contas, não seria tão democrática assim. Quer saber como as eleições americanas podem afetar seu bolso? Assine gratuitamente a EXAME Research.

Dez dias antes, o governador do estado, o republicano Greg Abbott, havia determinado que cada condado poderia ter somente uma urna para receber os votos dos eleitores que queriam entregar pessoalmente as cédulas recebidas pelo correio.

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Essa modalidade de votação permite que os votos sejam devolvidos também pelo correio, mas cortes de custos realizados pela estatal anunciados neste ano — e depois suspensos — causaram atrasos na entrega de correspondências. Muitos eleitores temem que suas cédulas não cheguem a tempo.

Condados são subdivisões administrativas. No Texas, segundo maior estado americano, eles são 254. Loving, o menor deles, tem apenas 169 habitantes; o maior, Harris, tem 4,7 milhões.Os críticos da decisão apontam que a medida imposta pelo governador é mais uma tentativa de criar obstáculos para o comparecimento dos eleitores.

O Texas foi um dos cinco estados que não flexibilizaram a votação à distância. Só pode pedir cédulas pelo correio quem tem mais de 65 anos ou tem algum tipo de deficiência. Em Houston, a quarta maior cidade americana, o único local para depositar esses votos fica no estacionamento de um estádio de futebol americano, sem acesso fácil por transporte público.

“Minha definição de supressão do voto é qualquer coisa que diminua a probabilidade de o eleitor votar”, disse numa entrevista à rádio NPR o responsável pela eleição no condado de Harris, o democrata Chris Hollins. “Criar inconveniências e obstáculos. Durante a pandemia, as pessoas têm de escolher entre arriscar a saúde ou abrir mão de seu direito de votar.”

Um sistema eleitoral confuso

Para um eleitor brasileiro, pode ser difícil entender a ideia de “suprimir o voto”. As eleições no Brasil são coordenadas por um órgão central, as regras são as mesmas no país inteiro, os locais de votação são muitos e o voto é obrigatório.

Nos Estados Unidos, a situação é muito diferente. Em primeiro lugar, ninguém é obrigado a votar. Mas isso também é verdade em diversas outras democracias, e em nenhuma delas existe um fenômeno remotamente parecido.

A principal explicação está no sistema federalista. Cada estado americano cria suas próprias regras eleitorais. Elas vão desde questões prosaicas como o horário de fechamento das urnas a quem pode votar — porque, mesmo com o direito assegurado, muitos cidadãos na prática são impedidos de participar do processo eleitoral.

Uma das maiores conquistas do movimento dos direitos civis foi a Lei do Direito ao Voto, de 1965. Ela determinava que mudanças nas regras eleitorais nos estados que pudessem prejudicar a participação negra em eleições tinham de antes ser aprovadas pelo governo federal.

A lei foi proclamada depois de uma onda de protestos no sul do país, onde o direito ao voto da população negra era restrito por medidas que incluíam o pagamento de taxas e provas de que o eleitor era alfabetizado, entre outras.

Mas a lei foi derrubada em 2013 pela Suprema Corte, com votos da maioria conservadora, sob a alegação de que o país havia mudado nas cinco décadas que tinham se passado.

O resultado imediato da decisão foi uma nova onda de regras e leis que ostensivamente servem para garantir a lisura do processo eleitoral — mas na prática criam barreiras para eleitores negros, latinos e eleitores de baixa renda.

Você é você mesmo?

Vários estados exigem que o eleitor apresente algum tipo de documento oficial de identificação para votar (nos Estados Unidos não existe o equivalente à carteira de identidade brasileira, então o documento mais usado é a carteira de motorista).

Estima-se que 25% dos negros com idade para votar não tenham carteira de motorista, ante apenas 8% dos brancos. Estima-se que até 10% do total de eleitores não tenha um documento de identificação oficial.

O objetivo declarado dessa regra é impedir fraudes, embora os casos de pessoas votando no lugar de outras sejam raros, segundo estudos. As regras também são confusas. No Texas, o documento de porte de arma é suficiente para votar, mas a identificação da Universidade do Texas, não.

Em alguns lugares, as complicações começam muito antes do dia da eleição. Uma das práticas é conhecida como “purga” dos eleitores registrados. Manter os registros atualizados é natural, afinal de contas, as pessoas vêm e vão.

Mas alguns estados criaram regras curiosas. Em Ohio, o eleitor que não votar em três eleições é automaticamente excluído do sistema e precisa registrar-se novamente — a menos que responda a um aviso enviado pelo correio, no formato de um cartão-postal. E os eleitores nem sequer são avisados da exclusão.

No ano passado, o estado planejava cancelar o registro de 240.000 eleitores, mas 20% deles haviam entrado na lista por erro do governo. Outros oito estados têm regras semelhantes.

Menos urnas

Outra medida utilizada para criar obstáculos à votação é o fechamento de seções eleitorais. Desde a derrubada da Lei do Direito ao Voto, quase 1.700 locais de votação foram fechados nos estados que estavam sujeitos à supervisão federal.Os fechamentos ocorrem de maneira desproporcional em áreas onde há presença significativa de minorias.

Considere o exemplo do Texas.Nos 50 condados que registraram o menor aumento da população negra e latina — na realidade houve uma redução de 13.000 habitantes — 34 seções eleitorais foram fechadas, segundo uma análise do jornal inglês The Guardian relativa ao período entre 2012 e 2018. Já nos 50 condados onde houve o maior aumento dessas duas populações — 2,5 milhões de pessoas a mais —, houve 542 fechamentos de locais de votação.

Nacionalmente, quase 1.700 seções eleitorais foram fechadas no mesmo período, segundo um relatório do The Leadership Conference on Civil and Human Rights. “Depois da cédula eleitoral, o elemento mais identificável do processo de votação da nossa democracia é a seção eleitoral”, afirma a entidade. “Mudar o local ou fechá-las é uma ruptura democrática.”

Isso significa mais gente em cada seção e filas mais longas — o que é especialmente problemático pois as eleições americanas sempre acontecem às terças-feiras. Muitas pessoas não podem se ausentar do trabalho para votar ou não têm com quem deixar os filhos.

“Eles usam o argumento da responsabilidade fiscal, mas é claro qual é o objetivo”, disse numa entrevista recente Carol Anderson, historiadora da Universidade Emory e autora de um livro sobre supressão do voto nos Estados Unidos.

Quem fiscaliza os fiscais?

A organização estadual das eleições dá origem a uma outra peculiaridade do sistema americano: os responsáveis pelas regras podem ser os próprios políticos que participam da disputa.

Foi o que aconteceu em 2018, quando Brian Kemp (republicano) disputou o governo da Geórgia contra Stacey Abrams (democrata).Kemp ocupava a secretaria de estado, responsável por estabelecer e fiscalizar as regras da votação e decretar oficialmente o vencedor da eleição no estado.

Mais de 53.000 inscrições de eleitores ficaram em suspenso por diferenças entre os nomes em seus documentos e o dos registros eleitorais (às vezes por uma abreviação ou pela falta de um hífen). Sete entre dez desses eleitores eram negros; três em cada dez habitantes da Geórgia são negros.

Votos enviados à distância foram invalidados porque as assinaturas não batiam com aquelas do sistema. Em algumas seções eleitorais, as filas eram de 3, 4 ou 5 horas. Prevendo o caos, a campanha de Abrams criou uma linha telefônica para receber denúncias de problemas.

Depois de inúmeras ações na Justiça e sem admitir a derrota nas urnas, Abrams encerrou sua campanha dez dias depois da eleição. Kemp foi eleito com uma vantagem de cerca de 55.000 votos, de um total de 4 milhões.

Partidários de Abrams afirmam que milhares de votos deveriam ser validados — pela lei do estado, caso a diferença entre os candidatos fosse inferior a 25.000 votos, haveria uma nova votação. Kemp só deixou a secretaria de estado dois dias depois da confirmação do resultado.

O excelente documentário Até o Fim: A Luta pela Democracia, disponível na Amazon Prime Video, conta a história da supressão do voto nos Estados Unidos e da eleição de Kemp.

 

Confusão e desinformação

Uma forma menos óbvia de supressão do voto é a desinformação. Alguns eleitores não vão votar porque não sabem se sua seção ainda está aberta. Outros não têm certeza se seus registros ainda são válidos.

Em 2020, muitos têm medo que seus votos não contem porque serão enviados pelo correio. O maior divulgador dessa teoria — comprovadamente falsa, de acordo com décadas de experiência — é o presidente Donald Trump.

Há meses, Trump vem afirmando que a votação à distância abre o caminho para fraudes massivas, embora ele próprio tenha votado pelo correio em eleições passadas.

Trump tenta fazer uma distinção que não faz sentido, afirmam os especialistas em eleições. O voto pelo correio normalmente é uma opção para quem não poderá votar no dia, o chamado “voto ausente”.

Neste ano, por causa da pandemia, as regras para essa modalidade foram flexibilizadas, e em alguns estados todos os eleitores receberam cédulas pelo correio para evitar aglomerações no dia 3 de novembro.

O presidente diz que não há problemas com o “voto ausente” (modalidade que ele usou no passado), mas sim com a votação à distância “universal”. Mas o sistema é o mesmo para ambas.

Ao que tudo indica, as teorias da conspiração promovidas por Trump não têm surtido o efeito esperado. Até nesta quarta-feira, cerca de 65 milhões de eleitores já haviam votado antecipadamente (outra particularidade americana: algumas seções abrem dias antes da data oficial).

Mas o risco de contestações judiciais ainda não foi afastado. Mais de 300 processos em relação ao voto à distância já foram apresentados. Eles vão desde o prazo limite para recebimento das cédulas até a aderência às regras estabelecidas.

Na Pensilvânia, um dos estados-chave no colégio eleitoral, os eleitores têm de colocar suas cédulas num envelope em branco (para garantir o anonimato), que por sua vez vai dentro de outro envelope para postagem.

Se o eleitor esquecer de usar o envelope “de sigilo”, seu voto não será contabilizado. Quatro anos atrás, Donald Trump levou todos os 20 delegados da Pensilvânia no colégio eleitoral com uma vantagem de 44.000 votos. Um integrante da comissão eleitoral do estado afirmou que até 100.000 votos podem ser anulados neste ano por falta do segundo envelope.

 

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