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Schulz: o aliado virou ameaça

Thiago Lavado A chanceler alemã Angela Merkel costumava ter um aliado importante no Parlamento Europeu. Quando algum assunto continental precisava de atenção, ela podia contar com o auxílio solícito de Martin Schulz, um homem forte no Partido Social Democrata Alemão (SPD) que entre 2012 e o início deste ano presidiu o Parlamento Europeu em Bruxelas. […]

HORA DO MARTIN: Schulz, novo líder do SPD, se põe como uma alternativa a Angela Merkel nas eleições alemãs, em setembro / Steffi Loos/Getty Images

HORA DO MARTIN: Schulz, novo líder do SPD, se põe como uma alternativa a Angela Merkel nas eleições alemãs, em setembro / Steffi Loos/Getty Images

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Da Redação

Publicado em 24 de fevereiro de 2017 às 19h14.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h34.

Thiago Lavado

A chanceler alemã Angela Merkel costumava ter um aliado importante no Parlamento Europeu. Quando algum assunto continental precisava de atenção, ela podia contar com o auxílio solícito de Martin Schulz, um homem forte no Partido Social Democrata Alemão (SPD) que entre 2012 e o início deste ano presidiu o Parlamento Europeu em Bruxelas. Os dois partilham de valores semelhantes, em torno da construção de uma Europa unida. Frente ao crescente sentimento eurocético, Schulz era um dos principais nomes com o qual Merkel podia contar.

Mas os chás da tarde e os telefonemas entre Merkel e Schulz, que há pouco eram tão frequentes, ficaram no passado. No final de janeiro, ele decidiu voltar ao seu país para liderar o SPD e se lançar como candidato nas eleições federais alemãs em setembro. Schulz assumiu a árdua missão de se opor a Merkel, que vai concorrer ao quarto mandato. O desafio é tão grande que Sigmar Gabriel desceu do posto de líder do SPD para abrir o caminho para Schulz. “Se eu permanecesse [como candidato] eu iria falhar, e comigo iria junto o SPD. Schulz marca um novo começo. E é disso que se trata uma eleição ao Bundestag [o parlamento alemão]”, disse Gabriel quando passou a liderança do partido para Schulz. A decisão encontrou respaldo no partido: 79% dos eleitores do SPD apoiaram a renúncia de Gabriel e quase 70% deles acredita que Schulz trará vida nova ao partido nas eleições de setembro.

Desde 2013, o SPD — e Gabriel — compõem a grande base aliada de Merkel no parlamento. Gabriel é, atualmente, o ministro de Relações Exteriores e, antes disso, ocupou por 4 anos a posição de vice-chanceler. Neste cenário, Schulz é realmente um nome “novo” dentro do SPD e da política alemã, principalmente porque, até pouco tempo, era um político mais europeu do que alemão. Em Bruxelas, Schulz teve a oportunidade de trabalhar com Merkel em questões importantes — como manter a Europa unida após o Brexit, por exemplo —, mas, ao mesmo tempo, ficou distante dos assuntos internos mais polêmicos, como a política de refugiados. Mas isso não significa que ele esteja alheio ao que acontece no país e nem que será presa fácil nos debates eleitorais. À revista alemã Der Spiegel, ele afirmou que teve boas chances de estudar Angela Merkel e conhecê-la bem. “Trabalhei ao lado de Merkel por mais tempo do quase qualquer outro político do SPD”, disse.

Quando assumiu a liderança do partido, Schulz prometeu “acabar com todo o populismo”, além de afirmar ser uma alternativa da esquerda alemã frente ao conservadorismo de centro-direita, formada pela União Democrata Cristã (CDU) de Merkel e a União Social Cristã (CSU). Segundo o cientista político Konstantin Vössing, da Universidade Humboldt em Berlim, a candidatura de Schulz é a única viável para o SPD, principalmente porque passa a pressionar Merkel. “Ele se encaixa no partido. É realmente um social-democrata, ao contrário de Sigmar Gabriel. Ele consegue falar com o trabalhador tradicional e se opor ao populismo”, afirma o professor.

Em sua conta no Twitter, Schulz se posiciona cada vez mais como um social-democrata. “Não somente hoje, todos os dias devemos nos levantar e nos opor ao antissemitismo e à xenofobia. Meu primeiro dever como chanceler é dizer: nunca mais”, escreveu ele, em uma alusão ao nazismo e ao sucesso crescente de partidos como o Alternativa para Alemanha (AfD), de extrema-direita.

“Um bom desempenho de Schulz nas eleições vitaminaria todos os sociais-democratas da Europa”, diz Argemiro Procópio Filho, professor de relações internacionais da Universidade de Brasília. Segundo ele, Schulz é um homem de grande visibilidade no continente, o que o coloca como uma alternativa para uma Europa unida sem passar por Merkel.

Vida internacional

Martin Schulz, 61 anos, nasceu em 20 de dezembro de 1955 na Alemanha Ocidental, na vila de Hehlrath, próximo da fronteira com a Bélgica e a Holanda. Schulz é filho de um pai policial social-democrata e uma mãe conservadora que era membro ativa da CDU. Nascido e criado próximo à fronteira, ele sempre teve parentes em outros países, e conviveu desde pequeno com o internacionalismo. Segundo Werner Weidenfeld, professor e diretor do Centro de Pesquisa de Política Aplicada da Universidade Ludwig-Maximilians, em Munique, e um dos principais consultores do governo alemão, ter sido criado nessa região foi determinante para a visão europeia de Schulz. “A região onde ele cresceu é bastante aberta ao internacionalismo e obteve grandes vantagens da integração da Europa”, diz.

Aos 19 anos, Schulz entrou na política ao se filiar ao SPD e participar da Juventude Socialista do partido. Em 1984, depois de compor o conselho municipal de Würselen, Schulz foi eleito o prefeito da cidade, no estado de Nordrhein-Westfalen — à época ele, então com 31 anos, havia sido o político mais jovem a alcançar o posto no estado. Schulz é um homem de origem simples, que não tem diploma do ensino médio, algo incomum no país. Treinado como vendedor de livros, se comunica de maneira clara e  tem como hábito contar histórias da época em que era prefeito na região do Rio Reno

Dez anos depois, se candidatou para ser membro do Parlamento Europeu, sendo eleito ao cargo que ocuparia pelos próximos 23 anos, deixando para trás a política alemã. Isso até agora. Schulz, de volta à terra natal, é descrito por partes da imprensa alemã, como o jornal Die Zeit, como “um socialista de classe” e tido como um político forte, que “não tem nada a perder”. Outras partes da imprensa, como a rádio hr1, duvidam da capacidade dele de conseguir maioria no parlamento frente à coalização CSU/CDU.

Segundo o professor Vössing, da Universidade Humboldt, Schulz só é viável como candidato justamente porque conseguiu unir o SPD. “Ao contrário de Gabriel, que tinha uma visão sobre levar o SPD mais próximo do populismo, Schulz aproxima o partido da social-democracia. Ele conversa com a classe trabalhadora e com o jovem urbano de maneira melhor do que Merkel e Gabriel”, afirma.

Na internet, Schulz virou meme entre o público mais jovem. A página Memes da Social Democracia da Europa (Sozialdemokratie Memes aus Europa, em alemão) usa imagens que misturam a campanha de Barack Obama em 2008 com a de Donald Trump em 2016, além da hashtag #Gottkanzler (chanceler Deus). Há também um cartaz bastante utilizado, este com as cores da esperança de Obama e com os dizeres MEGA, Make Europe Great Again, em referência ao slogan de Trump. No site de discussões Reddit, Schulz tem sua própria página, agremiando fãs e memes — sempre voltados para a social-democracia e para a integridade da União Europeia.

As pesquisas mostram que o fenômeno não está só na internet. Schulz aparece praticamente empatado com Merkel nas pesquisas de opinião, feitas após ser anunciado líder do partido. Segundo pesquisa do instituto INSA, divulgada no dia 21 de fevereiro, o SPD tem 30,5% das intenções de voto, frente aos 31% da coalizão CDU/CSU. Uma pesquisa do grupo Forsa, do dia 22 de fevereiro, mostra Merkel ligeiramente na dianteira, com 34% a 30%. Se as eleições fossem majoritárias e não dependessem da composição do parlamento, Schulz teria 50% das intenções de voto, frente a 34% de Merkel, apesar de ambos desfrutarem de cerca de 55% de simpatia dos eleitores.

Mas as eleições na Alemanha não são majoritárias. Schulz precisará mais do que seu carisma para reerguer o partido, que nos últimos 12 anos teve que discutir seus termos por meio de apoios na coalizão que manteve Merkel no poder. “Eu avaliaria com muito cuidado a oscilação das pesquisas. O CDU, de Merkel, é historicamente muito forte”, afirma o cientista político Bruno Speck, da Universidade de São Paulo.

Contra todas as chances

Apesar de o SPD estar despontando nas últimas pesquisas e na política —  Frank-Walter Steinmeier, ex-ministro de Relações Exteriores de Merkel, foi eleito presidente no início de fevereiro com pouco mais de 75% no Bundesrat, espécie de Senado do país — o sistema alemão de eleições e escolha não é tão simples para cravar com certeza uma vitória.

É importante entender como funciona a política alemã para compreender o cargo de chanceler, as eleições, a composição partidária e até mesmo as chances do SPD frente à coalizão CDU/CSU. A Alemanha tem um sistema eleitoral de representação proporcional mista — metade das 598 cadeiras do parlamento é eleita por votos distritais diretos, em que o candidato mais votado vai para o parlamento, o Bundestag. Os outros 299 assentos são eleitos por um segundo voto, feito em um partido que escolhe representantes de uma lista fechada. A proporção de votos na legenda indica quantas cadeiras pode-se ocupar no parlamento.

Se o número de representantes eleitos diretamente é maior do que a proporção daria direito, novas cadeiras são dadas às outras legendas representadas para equalizar as proporções— isso significa que o número de parlamentares não é fixo, mas sujeito ao resultado das eleições, algo que acontece com frequência. O sistema é dessa maneira para evitar a concentração de poderes nas mãos de poucos e foi adotado na Alemanha Ocidental após a Segunda Guerra Mundial para, posteriormente, ser incorporado ao país todo quando da reunificação.

Geralmente, o partido mais votado no sistema de lista elege seu líder como chanceler. Historicamente, essa característica é uma prerrogativa, mas não é uma regra. Em 1969, o SPD conseguiu eleger Willy Brandt como chanceler ao negociar a “coalizão social-liberal” com o Partido Democrata Liberal (FDP), embora a CDU/CSU tenha sido a facção com mais votos.

A regra é a necessidade de formar uma coalizão para conseguir governabilidade. “Em um sistema parlamentar como o alemão, o que conta é a capacidade de governar. Nesse cenário que se configura, nem a CDU e nem o SPD teriam uma maioria confortável para governar sozinhos, então quem vencer provavelmente irá precisar do outro” afirma o professor Bruno Speck.

É realmente a hora?

Com um sistema eleitoral e político tão complexo, mesmo que o SPD ou a coalizão CDU/CSU ganhem o voto partidário, teriam que negociar com outros partidos uma coalizão para governar. Na Alemanha, não é possível fazer negociações com membros específicos do parlamento, já que os acordos de coalizão são firmados por documentos assinados entre os partidos.

Dito isto, sobram poucas legendas com representação no Bundestag para negociar — há uma regra que cada partido só pode ter parlamentares caso tenha alcançado 5% dos votos partidários. Atualmente, além da União e do SPD, há no Bundestag o Partido Verde (Grüne) e a Esquerda (Linken), que juntos têm 127 cadeiras e não fazem parte da coalizão de governo. A outra legenda forte da Alemanha, o Partido Democrata Liberal (FDP), não conseguiu percentagem suficiente para estar no parlamento em 2013, mas é esperado que volte este ano. No atual cenário das pesquisas, mesmo que fizessem alianças com seus grupos de afinidade política histórica — o Grüner no caso do SPD, e o FDP no caso da CSU/CDU — ainda não haveria como se resolver o impasse da maioria necessária para governar. Os partidos menores têm diversas regras internas de coalizão, o que torna as conversas difíceis. Além disso, não se negocia apoio de partidos extremistas, como o AfD, à direita, que ainda não tem participação no Bundestag, mas aparece com cerca de 10% nas pesquisas e deve conseguir seu lugar ao sol nas eleições de setembro.

O SPD, antes de Schulz, era um partido dividido. Agora, a situação se inverteu — Merkel precisou fazer concessões, principalmente em termos da política de portas abertas para refugiados, para conseguir apoio dentro da sua própria coalizão, principalmente da CSU. A situação a coloca em um impasse: se pender à esquerda, tentando ganhar os votos de Schulz, pode irritar os aliados do CSU e desfazer uma aliança histórica.

Angela Merkel está, portanto, em um território novo. Seu governo tem 74% de aprovação popular, um número invejável para qualquer mandatário nos dias atuais. Mas, pela primeira vez, uma ameaça concreta se põe diante da chanceler, agravada pela incerteza das negociações de coalizão. Segundo o professor Weidenfeld, o SPD planeja sair da dependência da União para negociar com outros partidos do parlamento. “Há muito pouca chance de o SPD conseguir a maioria dos votos, mas, na situação atual, não há como um dos grandes partidos formar uma coalizão sem o outro”. Se até setembro nem Schulz nem Merkel despontarem nas pesquisas, estará armado o impasse alemão.

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