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Crise no Sudão: em um ano, 'guerra esquecida' deslocou 8,6 milhões de pessoas

Especialistas falam em situação humanitária ‘catastrófica’ na região, comparam com Gaza e Ucrânia, e alertam para falta de apoio da comunidade internacional

Mulher espera para se registrar em programa de distribuição de alimentos, no Sudão do Sul (Siegfried Modola/Reuters)

Mulher espera para se registrar em programa de distribuição de alimentos, no Sudão do Sul (Siegfried Modola/Reuters)

Agência o Globo
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Agência de notícias

Publicado em 15 de abril de 2024 às 11h23.

Última atualização em 15 de abril de 2024 às 13h01.

Um ano após o início de uma sangrenta disputa entre dois generais, o Sudão vive “uma das maiores e mais desafiadoras crises humanitárias e de deslocamento do mundo”, com milhões de pessoas desalojadas, segundo uma porta-voz do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur).

Cerca de 40% da população também enfrenta grave insegurança alimentar e centenas de milhares crianças sofrem de desnutrição aguda, de acordo com a ONU. Para especialistas ouvidos pelo O Globo, o cenário é “humanamente inadmissível” e revela um profundo descaso da comunidade internacional, que participa ativamente das guerras em Gaza e na Ucrânia, “mas não dá a mesma atenção” para o povo sudanês.

Dados do Acnur revelam que 8,6 milhões de pessoas foram deslocadas à força no Sudão no último ano. O conflito fez com que mais de 6,7 milhões de sudaneses deixassem suas casas e outro mais de 1,8 milhão cruzasse as fronteiras do país rumo a territórios vizinhos como o de Chade e República Centro-Africana — que se veem diante de um fluxo inédito de refugiados enquanto suas populações já enfrentam, historicamente, instabilidades sociais e econômicas

"Os números de deslocados e refugiados são assustadores", destaca Alexandre dos Santos, professor de História da África no Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio. "Cidades inteiras, como a capital, Cartum, viraram cidades fantasmas."

A crise teve início há exatamente um ano, em 15 de abril de 2023, entre as tropas dos dois generais que tomaram o poder em um golpe de Estado em 2021, mas romperam e passaram a disputar o controle do país: o comandante do Exército, Abdel Fatah al-Burhan, líder de facto do Sudão, e seu então número dois, Mohammed Hamdan Dagalo, conhecido como Hemedti, comandante do grupo paramilitar Forças de Apoio Rápido (FAR).

Antes aliados, os dois passaram a divergir sobre os planos de integração das FAR ao Exército oficial, uma condição crucial do acordo final para a retomada da transição democrática no Sudão, que teve início em 2019, com a queda do ditador Omar al-Bashir após três décadas no comando.

"Milhões de vidas foram completamente destruídas [desde o início do conflito] e as pessoas estão vivendo com medo", afirma Olga Sarrado, porta-voz do Acnur, baseada em Genebra. "As pessoas perderam muitas coisas, membros da família, suas casas, e os ataques a civis continuam."

O medo é tanto, diz Sarrado, que transcorridos 365 dias de conflito, milhares de pessoas continuam deixando o país diariamente, “como se a guerra tivesse começado ontem”.

"Estamos trabalhando para realocar os refugiados que chegam aos assentamentos que já existiam ou em alguns novos que criamos, mas ainda há cerca de 150 mil pessoas na fronteira e em áreas remotas, onde não há nada. Isso envolve muitos desafios logísticos", explica.

Enquanto os deslocados internos concentram as camadas mais pobres da população sudanesa, uma parte significativa da classe média urbana (cerca de 500 mil pessoas, de acordo com o Acnur) busca refúgio no Egito, em especial a capital, que possui uma ligação direta por terra com Cartum.

"São arquitetos, médicos, professores, engenheiros, enfermeiras, estudantes universitários", elenca Sarrado.

Além do deslocamento recorde, quase 18 milhões de sudaneses enfrentam grave insegurança alimentar e mais de 730 mil crianças sofrem de desnutrição aguda, segundo as Nações Unidas. No campo de deslocados de Zamzam, em Darfur do Norte, ao menos uma criança morre a cada 2 horas, de acordo com a ONG Médicos sem Fronteiras (MSF), enquanto esse número chega a "mais de duas crianças a cada 12 horas" no campo de Kalma, em Darfur do Sul, segundo o grupo humanitário Alight.

"É humanamente inadmissível que a gente compactue com 40% da população de um país passando fome sem que a comunidade internacional tome ações contundentes para acabar com esse conflito ou para, pelo menos, oferecer assistência a essas pessoas", diz Alexandre dos Santos.

Colapso do sistema de saúde

As Nações Unidas alertaram na sexta-feira que a crise humanitária desencadeada pelo conflito no Sudão pode piorar drasticamente nos próximos meses, levando algumas regiões à fome. A emergência também pode se espalhar para os países africanos vizinhos, a menos que a luta termine.

"O tempo está se esgotando", disse o porta-voz da Organização Mundial da Saúde, Christian Lindmeier, em Genebra. "Sem o fim dos combates e o acesso irrestrito para a entrega de ajuda humanitária, a crise do Sudão se agravará drasticamente nos próximos meses e poderá afetar toda a região. Estamos vendo apenas a ponta do iceberg."

A Organização Mundial da Saúde (OMS) tem alertado sobre o colapso do sistema de saúde, que sofre com escassez aguda de pessoal, medicamentos, vacinas, equipamentos e suprimentos, enquanto o país enfrenta surtos de sarampo e de cólera.

Segundo Adnan Hezam, porta-voz do Comitê Internacional da Cruz Vermelha no Sudão, 70% das instalações de saúde do país não estão funcionando devido aos combates, e as que ainda funcionam, estão operando "de forma crítica e com escassez de suprimentos e de pessoal qualificado”.

"Enquanto os generais disputam o poder, as pessoas estão simplesmente morrendo", afirma Alexandre dos Santos. "O país entrou em colapso."

Financiamento insuficiente

Apesar dos dados alarmantes, o conflito parece estar longe do fim, avalia dos Santos. Enquanto o governo domina o mercado de exportação de petróleo, as FAR controlam a exploração das minas de ouro (antes nas mãos do Grupo Wagner, de mercenários russos). Assim, "cada lado garante o financiamento de suas próprias tropas", mas sem conseguir avançar de fato no terreno.

Até o momento, os esforços de mediação internacional conseguiram apenas anúncios de tréguas que rapidamente foram violadas. As sanções ocidentais ou um apelo de cessar-fogo do Conselho de Segurança da ONU no mês passado também não apresentaram resultados.

E ainda que a guerra acabasse hoje, o Sudão precisaria reconstruir "praticamente tudo", diz dos Santos:

"Nem a riqueza gerada pelo petróleo vai possibilitar que o Sudão se reconstrua rapidamente. O país vai precisar da ajuda da comunidade internacional, mas essa mesma comunidade tem dado a entender que o conflito no Sudão não merece a mesma atenção que Gaza ou Ucrânia, apesar de serem situações igualmente graves."

Uma conferência humanitária internacional para o Sudão e seus vizinhos será realizada em Paris nesta segunda-feira. O encontro tem como objetivo lidar com a falta de financiamento, já que apenas 7% do US$ 1,4 bilhão solicitado (R$ 7,1 bilhões) para enfrentar a crise foram arrecadados até o momento, segundo o Acnur.

"Sabemos o que precisa ser feito, mas não temos os meios financeiros para colocar em prática uma resposta humanitária que consideramos digna", conclui Sarrado, porta-voz do Alto Comissariado.

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