Chile: um golpe das urnas nos políticos tradicionais
Piñera foi o mais votado no 1º turno, mas o surpreendente resultado da jornalista e feminista Beatriz Sánchez lança dúvidas sobre quem vencerá as eleições
Da Redação
Publicado em 20 de novembro de 2017 às 07h50.
Última atualização em 20 de novembro de 2017 às 08h35.
Santiago — A tendência mundial do voto contra os políticos tradicionais chegou ao Chile . A conhecida jornalista e feminista Beatriz Sánchez, que decidiu em março entrar para a política, como candidata da nova Frente Ampla, de esquerda, foi a grande surpresa da eleição presidencial deste domingo, quase passando para o segundo turno, com cerca de 20% dos votos.
O ex-presidente Sebastián Piñera, um bilionário investidor de centro-direita, saiu na frente no primeiro turno, como previam as pesquisas, mas com uma votação bem menor que a esperada: em torno de 37%.
Em segundo lugar ficou o também jornalista Alejandro Guillier, que entrou para a política há apenas quatro anos, como senador. Candidato da presidente socialista Michelle Bachelet, Guillier obteve cerca de 23% e enfrentará Piñera no segundo turno, dia 17.
A própria filha de Bachelet, a psicóloga Sofia Henriquez, votou em Sánchez em vez de Guillier. A candidata da Frente Ampla atraiu muitos antigos eleitores socialistas, como a própria coordenadora de sua plataforma política, a economista Claudia Sanhueza: “Agora Beatriz Sánchez é que está liderando as transformações para um Chile mais justo”, justifica Sanhueza.
Por várias razões, o perfil de esquerda de Sánchez, grande fiel da balança do segundo turno, não garante uma virada de Guillier, embora a disputa talvez já não seja aquele passeio que as sondagens antes indicavam.
A primeira razão é que, segundo as análises preliminares feitas neste domingo em Santiago, conforme os resultados da contagem saíam, Sánchez roubou votos de Piñera.
Esses votos, que foram principalmente de protesto contra o governo Bachelet, poderiam voltar ao candidato liberal no segundo turno.
A presidente encerra o governo com uma melancólica aprovação de 27%. A economia sofreu uma estagnação, por causa da queda do preço internacional do cobre, que responde por metade das exportações do país. O crescimento foi de apenas 1,6% no ano passado. A projeção é de 1,5% este ano. Com o aumento do preço do cobre, o ano que vem aponta um incremento do PIB de 3% — um patamar mais próximo dos 5% com o qual os chilenos estavam mais acostumados.
Depois de chegar a 7,4% em março, o desemprego vem caindo, e está em 6,7%. A economia está arrumada, com uma taxa de inflação de 2,4%. Mas os chilenos, tanto à direita quanto à esquerda, estão descontentes.
Os primeiros, por causa da guinada à esquerda de Bachelet, que atraiu o Partido Comunista para o seu governo e fez reformas tributárias e trabalhistas que inibiram os investimentos, ao dar mais poder aos sindicados e aumentar os impostos para os empresários.
Os últimos, por considerar que Bachelet não foi suficientemente longe, por exemplo ao garantir bolsas de estudos nas universidades para “apenas” os 50% mais pobres. Antes, eram 40%. A esquerda exige ensino superior gratuito para todos. As universidades públicas cobram mensalidades no Chile.
Piñera procurou aproveitar esses descontentamentos. Ele se deslocou da direita para o centro, com uma plataforma social-democrata, que inclui investimentos de 14 bilhões de dólares na educação básica, em bolsas de estudo para o ensino superior, saúde e previdência. As leis de responsabilidade fiscal são rigorosas no Chile, e o candidato promete levantar esse dinheiro reativando a economia, depois de reverter em parte as reformas esquerdistas de Bachelet, e eliminando gastos “desnecessários” e burocracia.
Outra surpresa dessa eleição foi a votação do deputado José Antonio Kast, que se apresenta como herdeiro político do general Augusto Pinochet, ditador entre 1973 e 1990. Kast obteve cerca de 8% dos votos, o triplo do que indicavam as pesquisas. Piñera deve atrair seus eleitores.
O candidato de centro-direita também deve ir atrás dos eleitores de Carolina Goic, presidente da Democracia Cristã (DC), que obteve em torno de 6%. Tradicional aliada do Partido Socialista na Concertación, que governou o Chile pela maior parte do período pós-ditadura (com exceção do primeiro mandato de Piñera, entre 2010 e 2014), a DC lançou pela primeira vez candidata própria.
A ruptura ocorreu por causa da entrada dos comunistas no governo, e da guinada de Bachelet para a esquerda, que alienou a DC, mais ao centro. Em sexto lugar, ficou Marco Enríquez-Ominami, cineasta e político que deixou o PS em 2009, fundou o Partido Progressista e foi deputado entre 2010 e 2014. MEO, como é conhecido, apresentava-se como uma promessa da esquerda na disputa presidencial de quatro anos atrás, mas tem decepcionado. Agora esse lugar passa a ser ocupado por Sánchez.
Essa foi a segunda eleição presidencial em que o voto não é obrigatório. Até 2010, a inscrição dos eleitores era voluntária e o voto dos inscritos, obrigatório. A partir de 2014, por iniciativa de Piñera, a inscrição se tornou obrigatória e o voto, facultativo.
As projeções mostram que a votação para deputados e senadores seguiu a tendência dos candidatos a presidente, com a formação de uma expressiva bancada da Frente Ampla. Nem Piñera nem Guillier garantiriam maioria absoluta no Congresso, e teriam que negociar com outras bancadas.
O comparecimento, de cerca de 46%, esteve abaixo do primeiro turno de 2013, que foi de 49%, mas acima das eleições municipais do ano passado: 35%. Esses dados confirmam o desânimo dos chilenos com a política. Muitos eleitores disseram a EXAME que não se identificavam com nenhum dos oito candidatos — que vão da extrema direita à extrema esquerda.
Agora, Piñera e Guillier terão de se desdobrar para interpretar os sentimentos dessa “maioria silenciosa”. Afinal, o Chile está mudando. Uma das principais marcas de Sánchez é sua defesa do direito ao aborto. Bachelet aprovou no Congresso esse direito em três casos: estupro, ameaça à saúde da mãe e inviabilidade do feto.
Há muito tempo que Brasil e Chile estão indo em direções opostas, sob vários aspectos.